domingo, 22 de agosto de 2010

Adorno contra a cultura

Crítico ferrenho da chamada indústria cultural, filósofo alemão é o centro dos debates no Seminário Nacional Theodor Adorno, que acontece em Passo Fundo na próxima semana.
 

Segundo ON

Ele se projetou como um dos críticos mais ácidos dos modernos meios de comunicação de massa por perceber muito cedo que, mais do que suprimir horas de lazer ou transmitir informações, eles reproduziam uma atmosfera conformista, criando um verdadeiro exército de pessoas dóceis e insuportavelmente passivas. Assim, mais do que um dos filósofos mais importantes do século 20, Theodor Adorno é também peça fundamental para o entendimento da filosofia do novo século, onde os meios de comunicação ganham contornos cada vez mais importantes e influentes, assim como a tecnologia e toda a indústria cultural que o pensador alemão tanto condenou.
Por essa importância dentro do contexto atual, seu nome ganha destaque em Passo Fundo na próxima semana, com a realização do Seminário Nacional Theodor Adorno, promovido pelo Curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Educação e o Instituto de Filosofia Berthier entre os dias 25 e 27 de agosto. Tendo como objetivo a promoção de debates sobre o pensamento de Adorno e sua contribuição para a filosofia contemporânea, com ênfase nas dimensões da ética, educação e estética, o evento é voltado a professores, acadêmicos, pesquisadores e interessados em geral. Com certificação de 30 horas e investimento entre R$ 15 e R$ 30, o evento acontece no Ifibe, localizado na rua Senador Pinheiro, 350.

Da escola de Frankfurt

Entre 1093 e 1969, Adorno estudou filosofia, psicologia, sociologia e música, com um pensamento que acolheu e reinterpretou o legado marxiano, freudiano, kantiano e nietzscheano. Ao entrar no Instituto de Pesquisa Social, dirigido por Max Horkheimer, que veio a ser conhecido como Escola de Frankfurt, tornou-se um dos mais significativos pensadores do século 20, reconhecido por sua desconstrução dos sistemas totalitários. Seu pensamento se opôs a todas as formas de violência e barbárie em defesa da formação cultural e da educação emancipadora. Suas obras mais importantes são Dialética do Esclarecimento, Mínima Moralia, Personalidade Autoritária, Dialética Negativa e Teoria Estética.

sábado, 14 de agosto de 2010

Sobre o que nos torna maus, por Marcelo Doro


Uma notável capacidade de, deliberadamente, causar destruição e infringir sofrimento tem marcado negativamente a história da humanidade. Com maior ou menor consciência todos podemos produzir o mal, e, de fato, muitas fezes o produzimos. Explicar e compreender esse comportamento constitui, ainda hoje, um desafio. Por que existe o mal? Já nascemos maus ou nos tornamos maus? Ao longo dos anos, os filósofos ofereceram diferentes perspectivas para essas questões.

Na antiguidade clássica, Sócrates sustentou a tese de que o mal praticado pelos homens é uma conseqUência de sua ignorância. Para ele, o esclarecimento conduz necessariamente a virtude. Nesse sentido, seria forçoso dizer que o homem nasce mau, pois quando muito ele nasce ignorante, e da ignorância, quando não educada, nasce a maldade.


Santo Agostinho, no período medieval, refutou a acusação de que Deus, enquanto criador do mundo, também seria o criador do mal - o que comprometeria a ideia de que Deus é absolutamente bom - e indicou a ação humana livre como autora do mal. Sendo criaturas de Deus, feitos a sua imagem, os homens são essencialmente bons, assegurou o Santo. O problema é que, no exercício da liberdade permitida por Deus, os homens podem se afastar de sua natureza divina, dando assim origem ao mal. Nesse sentido, o mal seria uma espécie de "efeito colateral" da liberdade.

No século 18, ao teorizar sobre a origem do Estado Civil, Thomas Hobbes caracterizou a natureza humana como egoísta e dominadora. Para ele, quando deixado livremente, guiando-se por seus próprios impulsos, o homem converte-se no lobo do próprio homem. Daí que, para Hobbes, não foi outro o propósito de criação do Estado Civil senão o de regrar e limitar a natureza bélica dos homens, permitindo assim a vida conjunta.

Sucessor de Hobbes entre os filósofos que se ocuparam em explicar a origem do Estado Civil, Jean-Jaques Rousseau defendeu uma percepção totalmente diferente do ser humano. Para ele o homem é originalmente bom, assim como era boa a vida antes de a sociedade mudar e aceitar a propriedade privada, precursora imediata do Estado Civil. Seu entendimento é expresso na famosa máxima de que "o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe". Não existe, para Rousseau, maldade alguma na natureza humana; todo mal é consequência da estrutura social doentia, que retira os homens de sua igualdade e liberdade natural.

Hoje, com o considerável avanço das ciências do comportamento e, sobretudo, da neurociência, temos indícios de que alguns indivíduos já nascem, sim, com uma "predisposição para o mal" ou, tecnicamente falando, com distúrbios da personalidade dissocial. A sociedade pode exercer certo controle sobre tais predisposições, inibindo-as ou favorecendo-as. Sob essa perspectiva Rousseau não estava completamente enganado: aparte o fato de os seres humanos não nascem todos imaculadamente bons, ele estava certo sobre a influência social na conduta dos indivíduos. E considerando que a influência social pode ser para o bem ou para o mal, nesse sentido também Hobbes estava parcialmente correto.

Se a maldade humana é, assim, fruto de uma combinação biológica e social, uma inclinação para o mal não necessariamente resultara em maldades. Muito dependerá do ambiente, do modo como são conjugadas nele a liberdade e o esclarecimento. Pois, se como disse Agostinho, a liberdade é a fonte de todo mal, o conhecimento, observou Sócrates, é o caminho para a virtude. Inclinações existem, mas o decisivo é o que fazemos com elas. Pelo esclarecimento podemos educar até mesmo nossas vontades (liberdade).


*Marcelo Doro
Professor da área de Ética e Conhecimento (UPF)

sábado, 7 de agosto de 2010

Kierkegaard - O tremor, por José Francisco Botelho


Para o filósofo dinamarquês, a angústia é o fruto estonteante da liberdade humana. Descubra esse paradoxo

 


Texto de José Francisco Botelho e  ilustração  de Isabel Falleiros 


Ao longo do século 20, poucas correntes filosóficas fizeram tanto sucesso quanto o existencialismo – escola de pensamento que sublinha, entre outras coisas, a reflexão sobre o absurdo da vida humana, deixando de lado a busca pela verdade suprema ou o bem absoluto. Após duas guerras mundiais, genocídios, fracassos ideológicos e algumas bombas atômicas, esse elegante evangelho do desespero caiu no gosto de pensadores profissionais e leigos. No século passado, a figura mais célebre do cânone existencial foi sem dúvida o mandarim materialista Jean-Paul Sartre: graças a ele, o existencialismo acabou associado a um ateísmo militante que, em momentos extremos, beira a intolerância contra qualquer forma de religiosidade (os atuais chiliques contra o véu islâmico na França são exemplos disso). Vale lembrar, no entanto, que o pai do pensamento existencialista moderno não foi um ateu, nem mesmo um agnóstico, mas um homem fervorosamente religioso que via no cristianismo sincero uma afirmação de individualismo e rebeldia: o dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855).

Inimigo declarado de todos os sistemas (embora cristão, ele era um crítico feroz das religiões organizadas), Kierkegaard escreveu uma obra cheia de exaltação, espiritualidade e agonia. Seus livros são, ao mesmo tempo, um dilacerante testemunho de fé e uma virulenta zombaria contra a sociedade europeia do século 19. Para ele, a triunfante feiura da Revolução Industrial e a empolada moralidade da burguesia estavam criando uma civilização de pseudoindivíduos acostumados a viver sem paixão e conformados com o próprio tédio. Em um de seus textos, ele escreve com delicioso azedume: “A maior parte da humanidade hoje é composta por chatos. E ninguém será tão chato a ponto de negar essa verdade”. Foi por causa de sua arrasadora honestidade intelectual que esse cristão renitente chegou a influenciar, 100 anos após sua morte, toda uma geração de descrentes. Com efeito, o pensamento de Kierkegaard tem ressonâncias que vão muito além da fé (ou da falta dela). Isso porque o tema mais prolífico e eloquente na obra do cristianíssimo rebelde dinamarquês é um daqueles assuntos que jamais envelhecem, e que podemos realmente chamar de universais: a angústia da condição humana.
Mal de família Para compreender o gênio conturbado de Kierkegaard, é preciso entreabrir o baú de sua história familiar. Michael Kierkegaard, pai do filósofo, nasceu em absoluta miséria nas charnecas gélidas da Jutlândia, no norte da Dinamarca, e passou a infância pastoreando rebanhos alheios debaixo de chuvas, ventanias e granizos. Era um garoto profundamente religioso e, por isso mesmo, não compreendia como Deus podia tratá-lo com tanta indiferença. Rezava constantemente por uma vida melhor, mas seus apelos pareciam cair em moucos ouvidos divinos. Certo dia, quando tinha 10 anos, Michael se revoltou contra aquela cósmica falta de consideração: subiu à encosta de um penhasco e, com o punho erguido contra o céu ventoso e gelado, lançou uma terrível e solene maldição contra Deus.

Nos anos seguintes, Michael Kierkegaard mudou-se para Copenhague e tornou-se um comerciante imensamente rico. Mas a lembrança de sua épica blasfêmia perseguia-o como uma sombra. Acabou se convencendo de que a maldição se voltaria contra ele: Deus, mais cedo ou mais tarde, haveria de punir sua petulância. A sina familiar sustentou sua paranoia: ele se casou duas vezes, e duas vezes tornou-se viúvo; dos sete filhos que teve, cinco morreram ainda moços. Um dos sobreviventes foi precisamente o caçula Soren – que teve uma infância soturna, marcada pelas mortes consecutivas dos irmãos e assombrada pelo temperamento sinistro do pai.

Soren Kierkegaard herdou a religiosidade atormentada de Michael e passou a juventude obcecado pelo pecado e a culpa. Sua tábua de salvação foi a filosofia. Ainda moço, entregou- se ao estudo dos pensadores gregos. Tinha especial apreço por Sócrates – com ele, aprendeu a esgrimir a lâmina da ironia. Nos anos seguintes, o sarcasmo e a maledicência erudita serviriam ao retraído Soren como uma espécie de escudo contra o mundo.

Aos 24 anos, Kierkegaard quase conseguiu livrar-se de sua herança de culpa e melancolia: foi nessa época que se apaixonou por Regine Olsen, uma garota bela, culta e abastada. Após um namoro platônico, ambos noivaram, planejando um futuro de idílios intelectuais e amorosos. Dois dias após o noivado, contudo, Kierkegaard teve uma misteriosa crise de pânico. Subitamente, o compromisso pareceu-lhe um grande erro – e Soren acabou por repudiar Regine sem qualquer explicação. Até hoje ninguém sabe ao certo por que o filósofo rejeitou a mulher que amava. Alguns opinam que ele pretendia levar uma vida de reflexão pura, na qual haveria pouco espaço para os deveres conjugais. Outros sugerem que Kierkegaard tinha um medo paralisante do sexo, o que tornaria esses deveres conjugais ainda mais assustadores.

Seja como for, o fato é que Kierkegaard acreditava-se incapaz de levar uma vida normal. Em vez de lamuriar-se, contudo, ele resolveu transformar sua miséria em objeto de reflexão. Se seu destino era a infelicidade, ele seria apaixonadamente infeliz – o que, em todo caso, parecia-lhe mais interessante que ser alegremente tedioso.
Existência X essência Ao longo dos 20 anos seguintes, mergulhado na solidão, remoendo suas frustrações e pensando sempre em Regine Olsen (que, àquela altura, já se casara com outro homem), Kierkegaard lançou as bases do existencialismo moderno em obras como Ou Isso ou Aquilo, Tremor e Temor e O Conceito de Angústia. Para compreender sua obra, antes é preciso recapitular duas ideias de imensa importância para toda a história do pensamento: os conceitos de “essência” e “existência”.

Ao escrever seus Diálogos, no século 5 a.C., Platão legou à filosofi a a divisão entre o mundo das coisas e o mundo das ideias – ou seja, entre os seres concretos e os conceitos racionais. Para Platão e seus discípulos, as ideias são anteriores (e superiores) às coisas. Os indivíduos seriam apenas manifestações mais ou menos confusas e deturpadas de conceitos gerais, ou “essências” – por isso, esse viés filosófico foi chamado de “essencialismo”. Ao longo dos séculos, esse modo de pensar levou à construção de grandes sistemas abstratos em que a existência individual se dilui na generalização: sob tal ponto de vista, a ideia unificada de “humanidade” seria mais importante e significativa do que as estranhezas e particularidades de cada um dos 6 bilhões de seres humanos que hoje habitam a Terra.

Foi contra essa obsessão de unanimidade, essa febre da abstração que Kierkegaard se rebelou. Para o filósofo dinamarquês, o que realmente importava não era a essência do todo, mas a existência de cada ser em particular – inclusive naquilo que possa ter de excêntrico, de louco e de inclassificável. A existência é, precisamente, aquilo que escapa ao crivo do pensamento, o cerne irracional que torna cada criatura única, insubstituível. As verdades subjetivas – próprias e inseparáveis de cada ser humano – são mais importantes que as verdades objetivas: a ideia geral de humanidade pode servir para livros de biologia ou manuais psicológicos, mas jamais dará conta de explicar ou definir plenamente um único indivíduo. Você, eu, Sócrates e o próprio Kierkegaard somos ou fomos criaturas ferozmente singulares, irredutíveis a ideias abstratas. Somos, fomos e seremos, no fundo de nós mesmos, inexplicáveis. E também imprevisíveis: já que a Razão não nos decifra, já que os conceitos não nos enquadram, como poderíamos quantificar a nós mesmos? E é nessa incapacidade de prever, de explicar ou de controlar nossa própria estadia sobre a Terra que Kierkegaard baseia seu conceito de angústia.
Angústia terapêutica Segundo Kierkegaard, a angústia é o fruto estonteante da liberdade humana. Para compreender essa ideia aparentemente contraditória, é preciso esmiuçar a ambígua teologia do cristão mais amado pelos ateus. Kierkegaard acreditava apaixonadamente em Deus, mas também afirmava que sua existência não podia ser provada pela razão. A divindade de Kierkegaard estava além da inteligência humana – e de nada adiantaria recorrer a Ele em busca de dicas ou soluções para nossos dilemas. Nesse sentido, o livre arbítrio do ser humano é absoluto e inviolável: Deus jamais interfere em um único ato de suas criaturas, por mais desastrosas que venham a ser suas consequências. Quando Adão mordeu a fruta proibida, cometendo o pecado original e condenando toda sua descendência a uma história de barbaridades e sofrimentos, a mão de Jeová não se estendeu para impedi-lo – e a culpa disso tudo não jaz na omissão divina, mas na escolha de nosso tataravô mítico.

Alguém poderia argumentar: mas, antes de comer a fruta proibida, Adão desconhecia o bem e o mal; como poderia adivinhar que sua escolha traria milênios de desgraça? E é precisamente aí que se encontra a originalidade de Kierkegaard. Para ele, a cada momento de nossas vidas, somos como Adão no Paraíso, com o terrível pomo nas mãos, obrigados a fazer escolhas potencialmente catastróficas – e sem nenhuma força superior que nos guie e coordene, ou que ao menos nos impeça de errar. Distante de Deus, e perante a falência da razão, o homem carece das ferramentas necessárias para se assegurar de que escolhe o caminho certo. A angústia é, precisamente, a consciência dessa liberdade sem freios, sem bordas e sem qualquer segurança – a tontura diante do abismo de possibilidades que se abre diante de nós a cada segundo.

No entanto, Kierkegaard não vê a angústia como uma patologia a ser curada – para ele, meditar sobre nossa sombria companheira de viagem pode ser terapêutico. “Aprender a angustiar-se é uma aventura que todos têm de experimentar”, escreve Kierkegaard. “O homem educado pela angústia chegou ao supremo saber: ele compreende que não pode exigir absolutamente nada da vida; que o horror, o aniquilamento e a perdição moram ao lado, e que o mesmo ocorre com todos os homens”. A sabedoria existencial está em aceitar nossa insegurança como a outra face de nossa liberdade – uma espécie de barganha tácita entre Deus e suas criaturas. Condenado a dar saltos no escuro, o homem tem de assumir plena responsabilidade pelos inevitáveis erros de sua frágil inteligência – lembrando que, a cada segundo, pode enterrar os dentes, por engano ou distração, no fruto fatídico.

Em seus últimos anos, Kierkegaard afundou ainda mais no ostracismo. Em uma série de artigos publicados na imprensa, lançou ataques à moral protestante, e suas diatribes lhe renderam a execração pública – coisa de pouca monta para um homem que sempre fora solitário. O único ser humano cuja opinião lhe importava talvez fosse Regine, a mulher que ele continuara amando por toda vida, sem jamais ter coragem de lhe explicar seus confusos sentimentos. Viu-a pela última vez em 1855, num passeio pelas ruas de Copenhague. Regina estava prestes a sair do país, pois seu marido fora apontado para um posto administrativo no exterior. O filósofo e sua musa cumprimentaram-se cortesmente. “Que Deus o acompanhe, e que tudo corra bem para você”, disse Regine, e se foi. Nunca mais se falaram. Kierkegaard morreu oito meses depois, assombrado até o fim pela misteriosa renúncia à mulher amada – uma dessas escolhas irracionais e arbitrárias que, segundo o próprio filósofo, norteiam a passagem do homem sobre a Terra. Kierkegaard bebeu até a última gota seu cálice de angústia, seguindo à risca seu próprio ideal de humanidade. Pois, como ele escreveu em um de seus tratados: “Se o homem fosse um animal ou um anjo, não sentiria angústia. Mas, sendo uma síntese, angustia-se. E tanto mais sente a angústia, quanto mais humano for&rdquo
Kierkegaard  O filsósofo que marcaria a reflexão sobre o ser ao longo do século 20 nasceu em Copenhague em 1813 e morreu na mesma cidade em 1855. Cristão, iria influenciar filósofos ateus como o francês Jean-Paul Satre, entre outros nomes do pós-guerra.


LIVROS
O Conceito de Angústia,  Soren Kierkegaard, Vozes
Kierkegaard, Valls & Almeida, Jorge Zahar

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