sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O advento do homem-massa - Matéria de capa da Revista Filosofia, por Renato Nunes Bittencourt

Na decadente conjuntura da degradação cultural promovida pelo nivelamento vulgar das qualidades humanas, vivemos sob o jugo da "ditadura da massificação", na qual se dilui todo destaque pessoal, todo brilho singular.



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Renato Nunes Bittencourt é doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e professor do curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA
As inúmeras transformações sociais e valorativas ocorridas na modernidade oitocentista a partir da queda do ideário aristocrático e sua substituição pela visão de mundo burguesa trouxeram consigo um projeto cultural de instauração da noção de "igualdade" na esfera política, econômica ou social. Todavia, o projeto moderno de estabelecimento da "igualdade" humana se revelou uma farsa, pois nenhum ser humano manifesta qualquer tipo de característica semelhante a outrem, e se falamos de "igualdade", estamos certamente estabelecendo uma redução simbólica da condição individual.
Ortega y Gasset foi um dos principais filósofos a problematizar a questão da massificação da cultura na modernidade ocidental, e suas diversas implicações na esfera simbólica e social da vida humana.
Ao criar o conceito de "homem-massa", o filósofo forneceu um importante aparato intelectual para compreendermos de que maneira vivemos sob a égide moralista do nivelamento humano, e de que forma nossa criação cultural se submeteu a tais parâmetros normativos motivando, assim, nada mais do que o empobrecimento existencial e a legitimação do grotesco. Para Ortega y Gasset, "de repente a multidão tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida. Ocupava o fundo do cenário social; agora, antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonistas, só coro" (A Rebelião das Massas, p. 43).
É importante destacar que a configuração valorativa do "homem-massa" não segue parâmetros sociais ou econômicos específicos, mas a análise da existência ou não de uma nobreza de espírito interior. Assim, uma pessoa detentora de posses materiais, caso avalie sua existência pelos parâmetros quantitativos da ganância, da falta de finesse e da degradação do gosto cultural, associa-se ao grupo dos "homens-massa"; por sua vez, uma pessoa desprovida de instrução formal e de bens materiais, mas que é dotada de espírito avaliativo e sensibilidade cultural para apreciar aquilo que é belo ou sublime, se encontra longe da esfera vulgar da tipologia da massa, caracterizada justamente pela ausência de critérios seletivos em suas avaliações. Para Ortega y Gasset, "massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor - bom ou mau - por razões especiais, mas que se sente como todo "mundo" e, certamente, não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais" (A Rebelião das Massas, p. 45)
Filisteu da cultura
Encontramos no "filisteu da cultura" um dos principais avatares do "homem-massa" tal como delineado por Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas. O "filisteu da cultura", conceito criado pela intelligentsia alemã do período oitocentista e analisado filosoficamente por Nietzsche na sua Primeira Consideração Intempestiva, se satisfaz plenamente com o cotidiano da vida privada pacata e confortável, não sendo capaz de estabelecer para si próprio a realização de quaisquer tipos de projetos superiores, mas apenas propostas práticas passíveis de ser contabilizadas em melhorias para a sua vida privada imediata. Ao "filisteu da cultura" nada mais interessa do que cumprir as determinações burocráticas que lhe são impostas pelo meio social e, realizando tal intento, poder dormir placidamente sobre os louros da vitória.
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A confonfonfiguração valorativa do "homem-massa"
não segue parâmetros sociais ou econ ômicos específicos


                                                                                                                   

O desenvolvimento da indústria promoveu a inserção cada vez mais vertiginosa dos bens culturais no sistema de mercado, promovendo assim a vulgarização da arte e das realizações culturais. Podemos afirmar que o maior malefício cultural promovido pela obtusidade intelectual e existencial do tipo "filisteu" ocorre quando ele detém o poder sobre as instituições artísticas e educacionais, pois essas organizações passam a ser gerenciadas pela óptica do lucro imediato e da comercialização das realizações culturais, que se tornam assim meros objetos consumíveis e, por conseguinte, descartáveis. Esse dispositivo comerciário, incompatível com o florescimento autêntico da vida cultural, se manifesta até mesmo na mercantilização do ensino pela especulação empresarial.
A burocracia nos diversos setores sociais também é fruto da ação deletéria do "homem-massa", pois impede que as ações humanas se desenvolvam com a agilidade necessária para que elas motivem a transformação para melhor da sociedade. A burocracia institucionalizada faz que as forças criativas dos indivíduos se cristalizem e, por conseguinte, fiquem estagnadas. Quando o espírito burocrático atua no âmbito do sistema educacional, por exemplo (veja box abaixo), os malefícios intelectuais são evidentes: ausência de estímulo para a constante superação das competências profissionais, submissão aos valores normativos estabelecidos, supressão dos ideais progressistas e desmotivação intelectual. Um dos maiores responsáveis para essa degradação da experiência de ensino ocorre pela interferência de questões alheias ao desenvolvimento do saber e da troca de conhecimentos na realidade pedagógica, ao se criar parâmetros avaliativos para a classe de estudantes, homogeneizada em sua raiz, e para o próprio professor, obrigado a se submeter a um sistema castrador de seu próprio potencial didático.
Favorecer o comum

Na contramão, Ortega y Gasset ressaltou a multidão ao discutir o advento do homem-massa
Ora, uma vez que a estrutura escolar não pretende favorecer o desenvolvimento da exceção, mas o comum, não é estranho vermos a instituição de ensino como um instrumento promotor da estagnação das forças criativas dos indivíduos. Projetos educacionais e planejamentos econômicos são instâncias diametralmente opostas, mas na realidade da sociedade de massas tal intercessão é a regra. Quando uma instituição de ensino promove a facilitação dos conteúdos didáticos como forma de promover a progressão dos estudantes, ela gera a supressão da disciplina intelectual necessária para que o aluno possa continuamente se esforçar em prol da aquisição de novos patamares cognitivos. Tal como afirma Ortega y Gasset, "o 'homem--massa' jamais teria apelado para qualquer coisa fora dele se a circunstância não o tivesse forçado violentamente a isso. Como as circunstâncias atuais não o obrigam, o eterno 'homem-massa', de acordo com sua índole, deixa de apelar e se sente senhor de sua vida" (A Rebelião das Massas, p. 95).
A sociedade tecnicista faz triunfar os valores da massificação da cultura e o nivelamento por baixo entre os indivíduos, pois o ato de despertar da singularidade é considerado prejudicial para a manutenção da ordem pública, que se sustenta pela homogeneização dos comportamentos e qualidades humanas. Por conseguinte, vive-se sob o império moralista da "igualdade absoluta", pois nesse sistema de padronização extrínseco da vida humana é considerado como algo moralmente indecente a singularização individual. Conforme destaca Ortega y Gasset: "a massa faz sucumbir tudo o que é diferente, egrégio, individual, qualificado e especial. Quem não for como todo mundo, quem não pensar como todo mundo, correrá o risco de ser eliminado" (A Rebelião das Massas, p. 48).

Filisteu da Cultura
é o tipo humano que avalia as criações superiores do espírito humano a partir de critérios puramente materiais, mensurando sob o mesmo padrão avaliativo a Arte, a Cultura e as necessidades corriqueiras da existência
Ensino de massa
Não é de se estranhar quando um "filisteu da cultura" que, porventura, venha a conquistar o cargo de diretor de uma escola diz que o "estudante é um cliente", discurso muito próximo ao da ideologia comerciária que dá ao freguês a razão incondicional sobre todas as coisas, impedindo que o indivíduo saia do estado de menoridade intelectual e vivencie com responsabilidade as suas escolhas e decisões existenciais. Tanto pior, o "filisteu da cultura" infiltrado no sistema educacional interferirá continuamente no planejamento pedagógico da instituição ao vislumbrar obter o lucro incondicional, pois a sua relação com a cultura superior é absolutamente artificial, movida apenas pelo aproveitamento usurário dos bens educacionais. Explorando as capacidades profissionais dos professores, o diretor-burocrata, alheio ao autêntico espírito educacional, exigirá de cada docente a máxima dedicação aos seus afazeres, sem que, todavia, lhes forneça condições adequadas para o exercício das suas funções pedagógicas.
A s escolas, em geral, promovem a legitimação da massificação da cultura, pois os estudantes se encontram na obrigação imediata de se adequarem intelectualmente aos parâmetros pedagógicos estabelecidos pelo sistema de ensino, regido por uma lógica burocrática estranha ao plano imanente da sala de aula; mais ainda, torna-se praticamente impossível que um estudante seja avaliado singularmente em suas competências específicas, circunstância que o torna mero número diante da lógica fria dos fluxogramas acadêmicos.
No sistema de ensino massificado, o estudante é despojado de tudo aquilo que lhe é singular para que possa se tornar "igual" aos demais, e tal objetivo se realiza não apenas pelo uso do uniforme escolar, mas acima de tudo pela uniformização do pensamento. Por conseguinte, a escola regida pelo sistema burocrático e massificador de valores, em vez de promover a afirmação da criatividade humana e da cultura, motiva em verdade a barbárie. Por tal motivo a escola pode ser considerada como uma esfera normativa da sociedade de massa, pois ela sutilmente "educa" o indivíduo a ser, desde a sua infância, uma pessoa desprovida de senso crítico para que assim viva sempre ao serviço da realização plena da ordem estabelecida. Para isso, tal pessoa deve se adequar à autoridade pedagógica, mantenedora do projeto burocrático da "sociedade de iguais". A moral de rebanho não se manifesta, portanto, apenas na esfera religiosa de caráter repressor da ousadia da singularidade, mas também no âmbito educacional, catequizando os indivíduos na cartilha da "igualdade".
A globalização também traz tendências "culturais" da massificação do gosto e a degradação da experiência estética das cidades e de toda a sociedade

     Estamos sob a constante ameaça de, na decadente conjuntura da degradação cultural promovida pelo nivelamento vulgar das qualidades humanas, vivermos sob o jugo da "ditadura da massificação", na qual é diluído todo destaque pessoal, todo brilho singular. Esse sistema normativo impede o florescimento de disposições agonísticas entre os indivíduos, processos rigorosamente interativos que, mediante o embate de qualidades, faz vencer aquele que no momento da oposição é o mais apto. Entretanto, o espírito massificado não quer "viver perigosamente" e, desprovido de sentimentos que instigam ações transformadoras, vive confortavelmente na sua medíocre banalidade existencial. Dessa maneira, ocorre a vitória social do "homem-massa" que, incapaz de se realizar como ser humano no decorrer da sua existência e se destacar por seus méritos intelectuais, culturais e valorativos, não mede esforços para impedir que outros o façam. O "homem-massa", nessas condições, atua sob a influência do espírito de ressentimento, caracterizado pelo ódio figadal contra o indivíduo que consegue dar vazão aos seus impulsos criativos e, assim, realizar ações extraordinárias para maior benefício da cultura social. Afinal, nada mais desagrada ao homem sem qualidades superiores do que ver o triunfo dos indivíduos ousados, capazes de se destacarem socialmente por seus méritos pessoais. O talento é o maior fantasma para a mediocridade. Tal como enunciado por Ortega y Gasset, "a característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte" (A Rebelião das Massas, p. 48).
A moda tenta pregar nos consumidores uma ideia de destaque, mas insere o indivíduo na massificação orgânica ao fazer seguir os preceitos de uma tendência ditada e homogênea

A indústria da propaganda e do slogan cria na população a vinculação entre a mercadoria e a felicidade
Slogans e publicidade
A massificação do gosto vem atender também ao estado de degradação da experiência estética da sociedade moderna, na qual se elaboram tendências "culturais" padronizadas para determinados grupos sociais, exigindo simultaneamente pouca reflexão e grande capacidade de assimilação das tendências projetadas a cada estação. Como o "homem-massa" segue afoitamente as palavras de ordem de slogans e os mandamentos seculares dos ícones sociais explorados pela publicidade (instrumento por excelência do processo massificador da sociedade), sua mente se torna um grotesco depositário de ideias heteróclitas, perdendo assim qualquer autonomia nas suas escolhas. Vive-se, por conseguinte, conforme a "moralidade do impessoal", pois agir de forma destacada da coletividade anônima é algo ofensivo para o falso pudor da moderna civilização das massas; esta, em vez de promover o refinamento intelectual e cultural do indivíduo, se esforça acima de tudo por anular as próprias noções de singularidade e originalidade, criando blocos humanos desprovidos de personalidade, para que se possa assim melhor controlá-los.
Segundo Ortega y Gasset, "viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive, quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir" (A Rebelião das Massas, p. 73). Podemos dizer que nobreza é sinônimo de vida dedicada, sempre disposta a superar a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência. A vida nobre se contrapõe à vida vulgar e inerte que, estaticamente, se restringe a si mesma, condenada à imanência perpétua, a não ser que algum fator externo a obrigue a reagir. Por isso, chamamos massa a esse modo de ser homem - não tanto por ser multitudinário, mas por ser inerte.

O ato de despertar da singularidade é considerado
prejudicial para a manutenção da ordem pública






A Educação também tem a sua forma de massificação ao tirar do aluno a possibilidade de expor o que lhe é singular e promover a uniformização do pensamento
A moda é uma grande promotora da massificação orgânica da sociedade regida pelo sistema de burocratização da existência, pois ao prometer de forma falaciosa ao consumidor a oportunidade deste se destacar gloriosamente dos demais ao adquirir determinado gênero, faz na verdade que tal sujeito siga o sistema aglutinador de massificação. Se, na Antiguidade grega, um indivíduo obtinha o reconhecimento social pela realização de feitos extraordinários que superavam o padrão ordinário, em nossa moderna ordem burocrática da existência conquistamos o reconhecimento público consumindo os produtos previamente estabelecidos pelos "sacerdotes" da massificação cultural.
Como ninguém quer ficar fora de moda e assim ser estigmatizado como "extravagante", todo um grupo social segue passivamente as palavras encantadas dos publicitários, que promovem uma relação fetichista entre a mercadoria e a felicidade que supostamente pode vir a ser alcançada mediante o consumo do produto alardeado. Acreditando se destacar do seio da massa ao usar determinada coisa, o indivíduo, ludibriado pela propaganda, chafurda ainda mais na essência da própria massa da qual pretensamente queria se emancipar.
A obra de Ortega y Gasset se revela, conforme vimos no decorrer deste texto, como um libelo contra a ameaça da supressão da singularidade do homem ocidental, oprimido continuamente por um ideário valorativo sectário da redenção da mediocridade diante da demonização da singularidade.
 
Povo marcado, povo feliz
O advento do homem massa cresce a cada vitória do capitalismo, que se mostra vertiginosamente eficiente, uma poderosa máquina de esvaziar reflexões e ideias próprias ao estimular o "ter" em detrimento do "ser", e fazendo com que pessoas busquem satisfação apenas no material. Esse processo favorece o mercado da propaganda, já que irreflexivos são mais maleáveis aos estímulos dos slogans. A necessidade do ter, entretanto, afunda ainda mais na massa os que seguem uma tendência específica ditada, caso que acontece na moda ou na necessidade de aquisição de bens do efeito da modernização e que movimentam o capitalismo. Exposições dessa nova realidade trazida com a globalização pelo mundo moderno é frequentemente encontrada nas expressões da Arte. Na Literatura, o escritor inglês Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, descreve uma sociedade em que pessoas vivem uma harmonia seguindo uma série de regras para qual foram condicionadas biológica e psicologicamente. Drogas e sexo são estimulados e o amor reprimido para extirpar qualquer forma de revolução e estabelecem uma ordem por meio do conformismo. O cantor Zé Ramalho, numa clara referência ao romance de Huxley, compôs, no final dos anos 70, em um período de ditadura no Brasil, a música de denúncia social chamada Admirável Gado Novo, exaltando os mecanismos de alienação tão presentes na época e que vemos crescer nos dias de hoje.


Referências
NIETZSCHE, Friedrich. Consideraciones Intempestivas, 1 - David Strauss, el confesor y el escritor. Trad. Esp. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2000. ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Trad. de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2002.



sábado, 23 de outubro de 2010

Por que eu não voto e não acredito nas eleições, por LUCAS PETRY BENDER*


“O voto é individual e secreto. A escolha é sua. Pense bem, avalie os candidatos e exerça seu direito”. Estas são as frases às quais se agarra o senso comum e também o senso institucional, como a última tábua da salvação da consciência de cada indivíduo. Os motivos pelos quais nossa consciência afunda são bem conhecidos – ou, pelo menos, por demais sentidos. O que espanta é que, em circunstâncias que se revestem da mais pura individualidade, as fraseologias como a que abrem este artigo escondam um mundo cuja força social atropela e sufoca o indivíduo.

Quem ainda acredita que há um poder de escolha individual – ou que os instrumentos democráticos são tangidos pelos indivíduos? E por que falta a coragem de enfrentar este monstruoso moinho de vento? Por outro lado, ao que corresponde então, efetivamente, o regime democrático de Estado de Direito, onde as eleições livres representam pilar fundamental?

O presidente não será ou deixará de ser eleito por causa de um voto a mais ou a menos. Ou seja, meu voto não faz diferença – embora o discurso da moralidade social não o admita. Ao contrário do que afirma o pseudo-individualismo, o voto é social, e não individual. O voto só cumpre sua função social quando inserido numa ação coletiva. Nessa perspectiva, são as massas que sustentam o Estado Democrático de Direito, e não os indivíduos. Assim, o voto será tanto mais consciente e efetivo quanto mais aglutinador de forças coletivas, se constituindo num vetor das potências sociais. Foi assim, por exemplo, que um ex-operário tornou-se presidente do Brasil. Esta é a dinâmica que deslocou as bases elitistas do Estado, quando o voto era censitário, restrito e/ou limitado, em direção à inclusão das massas na universalidade eleitoral.

Entretanto, alcançado este status, surge todo tipo de reação negativa – falta consciência de classe; o país é de mentalidade subdesenvolvida; a mídia controla e comanda a política; os políticos são corruptos; os eleitores são irresponsáveis; o povo tem memória curta; o poder sempre estará com os endinheirados; eu não gosto de política; os trabalhadores estão desmotivados; o contexto histórico não é propício; as pessoas são individualistas (uma das melhores!); as massas são alienadas; etc., etc., etc. – o poço das justificativas é infinito. E, ao fim e ao cabo, volta-se ao slogan: “exerça seu direito com consciência!” – o poço da hipocrisia e da falta de coragem é infinito. Embora muitas das justificativas sejam coerentes e conseqüentes, é evidente que alguns aspectos estão sendo negligenciados. Proponho oferecer-me como modelo de análise para tornar mais nítido e franco o caráter do processo social.
Não tenho relações sociais consolidadas. Minha família despedaçou-se. Meu trabalho se justifica apenas pelo salário. Minha atividade acadêmica é frustrante porque cheia de razões retilíneas e utilitaristas. Furto-me de julgar as pessoas com que me relaciono, pois são geralmente amáveis; mas são relacionamentos débeis, e cujas perspectivas de aprofundamento não me satisfazem. Cumpre ressaltar: isto não é um desabafo, nem um lamento, nem exorcismo de demônios internos. Isto é uma realidade – nem tão desagradável quanto possa parecer –, na qual, penso, não sou o único vivente. Talvez seja mesmo um modelo social, do tipo pequeno-burguês-universitário-classe-média-branca-niilista-individualista-intelectualizado-descendente-de-colonizadores-europeus-do-sul-do-Brasil-herdeiro-de-pequenos-proprietários.

Brasil e mundo afora, devem existir outros tantos indivíduos, encaixados ou não em modelos, que tenham também relações sociais fracas – uns admitindo, outros não; uns percebendo, outros não; uns conformados, outros não. O que importa aqui é o que diz respeito à participação política, mais especificamente na via eleitoral. Sendo o voto social, é evidente que para esses indivíduos o voto não cumpre sua função. São pessoas sem qualquer influência coletiva e, geralmente, distantes das influências sociais. Por certo que não sou um átomo – basta observar que dependo de muitas forças sociais para comer, por exemplo – mas também não participo da vida de gado, sou incapaz de convencer ou de ser convencido de tal ou qual opção de voto. E – repito – voto que não se insere em determinada força social não tem qualquer sentido.

Esta é a minha própria alienação – e de outros, certamente – mas vejo que a maioria está submetida à face oposta da mesma moeda: alienação de rebanho, manipulável e suscetível (à propaganda, às lideranças, ao senso comum, à opinião do vizinho, à mídia, ao discurso técnico-científico, às pesquisas, à opinião pública!). Esta é a miséria do caráter social do voto – embora não deixe de ser exuberante a força coletiva que o anima, responsável pela trajetória formidável que universalizou o Estado Democrático de Direito.

Na raiz destas alienações sociais se encontra o caráter alienado da própria política. Na Grécia clássica, quando os habitantes da pólis começaram a escolher seus representantes para as decisões coletivas, nascia o próprio conceito de política, e com ela desenvolveu-se a democracia representativa que culmina no Estado como o conhecemos hoje – embora já tenhamos perdido de vista a antiga opção pela alienação. O voto, universal ou não, continua tendo caráter eminentemente social e alienado.

Pois se a política é a arte do exercício de poder de influência de grupos sobre a massa, por que é que continuam a convocar os indivíduos às eleições? Já não posso me calar diante dos pastores e de seus rebanhos barulhentos. Que saibam:

Primeiro, que existe de fato um fenômeno social que engendra pessoas à parte de todo e qualquer senso de identificação e ação coletivas; (resta comprovar se tal fenômeno é crescente e se tem caracteres eminentemente ligados à juventude, às novas gerações, a determinadas classes, etc.).

Segundo, que tais pessoas podem duvidar, rejeitar e combater todas as permanentes pressões sociais que tentam enquadrá-las, arrebanhá-las, seduzi-las e justificá-las em nome de bandeiras, slogans, grupos, instituições ou coletividades que fazem sentido apenas para rebanhos.

Terceiro, que, para os indivíduos, peso na consciência e apelos morais não justificam voto. Um rebanho de caprinos pode ser mais atraente do que um rebanho de bovinos, mas ainda é rebanho.
Quarto, que a resposta mais adequada ao voto compulsório é o voto nulo. Pois a condição primeira para o combate à alienação é o próprio (re)conhecimento radical de sua existência.

Previno-me contra os iluminados que votam a favor do operariado e das classes desfavorecidas; já é grandiosamente patético o histórico de oprimidos guiados por ilustrados. Que façam a revolução aqueles que realmente precisam dela, pois são os únicos imunes à fraqueza da dúvida e à certeza do auto-engano.

Ausência-de-si! Esta é a verdadeira palavra de ordem da sociedade, principalmente em tempos de eleições. Intelectuais votando em prol de operários, operários em prol de burgueses ressentidos, burgueses ressentidos em prol de ambientalistas, ambientalistas em prol de empresários, empresários em prol de cristãos, cristãos em prol de democratas, democratas em prol de trabalhadores, trabalhadores em prol de pseudo-radicais, pseudo-radicais em prol de miseráveis, miseráveis em prol deles mesmos, e eles mesmos em prol da máquina político-partidária! É a roda-viva que continua a carregar o destino pra lá, para longe de nosso primevo vigor animal repleto da liberdade transbordante que nos permite afirmar: “isso eu posso fazer sozinho”.

Os rebanhos continuarão indo bovinamente às urnas. As classes continuarão em luta. A alienação continuará com seu trabalho de feiticeira às voltas com poções mágicas. Mas os indivíduos! Estes não mais tolerarão a ilusão de um mundo pretensamente individualista; não mais calarão diante das infâmias das manadas; não mais aceitarão serem confundidos pelos supostos iguais. Indivíduos não têm direitos, mas sim um único e imenso dever: viver sem as ilusões e idealismos e falsificações que aprisionam-bestializam-santificam-padronizam-conceitualizam-absolutizam-doutrinam, ou seja, exaurem a tragédia e a beleza da vida. Ainda estamos muito longe de nos tornarmos indivíduos?

“Naquela época, meu instinto decidiu-se de maneira inexorável contra a continuação da condescendência, do seguir-aos-outros, do enganar-a-mim-mesmo. Qualquer modo de vida, as condições mais desfavoráveis, enfermidade, pobreza – tudo me parecia preferível àquela ‘ausência-de-si’ indigna à qual eu me entregara, por juventude, e na qual eu acabara ficando pendurado mais tarde por preguiça, devido ao assim chamado ‘sentimento do dever’.” (NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Porto Alegre: L&PM, 2010, pág. 100).


* LUCAS PETRY BENDER é historiador.

Publicado: 21/10/2010 por Revista Espaço Acadêmico

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blog da Revista Espaço Acadêmico

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pelo diálogo: o filosofar e a partilha... , de autoria do Prof. Dr. Silvio Wonsovicz


Vamos iniciar nossas reflexões, investigações e um filosofar vivo com um texto de Fernando Pessoa, que justifica muito bem a necessidade do dialogo sempre:

“Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um outro lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.”

            O diálogo que leva ao filosofar e à partilha de pensamentos e reflexões precisa questionar que tipo de atitude estamos realizando quando conversamos.

   Com / Versar = Com, próximo de outro, num mesmo nivel + versar, dizer a palavra, expressar

Vamos pensar como entendemos e praticamos o diálogo? É como:
-   Competição ou cooperação?
-  Arena ou ágora?
-  Patriarcal ou matriarcal?
-   Totalitário ou democrático?
- Pirâmide ou rede?
-   Negação ou aceitação do outro?
-   Esperteza ou competência?
-   Utilitário ou convenção?
-   Linear ou complexo?
-  Discussão ou debate?
            Vivemos numa grande crise do modelo civilizatório. Há a defesa dos modelos de comportamento e exaltação de valores que vêm da estrutura mecânica da organização social. Temos então, valorizado pela tecnociência: a hierarquia, o controle, a estabilidade, o individualismo, a competitividade, o levar vantagem, a sobrevivência, etc. Essa forma de viver tem desencadeado enormes problemas. Os mais graves talvez sejam a exclusão social e econômica que atinge aproximadamente dois terços da população mundial; assim como as mudanças climáticas que ameaçam toda vida na Terra.
             Toda crise coloca em perspectiva um novo caminho e um novo paradigma, com novos conhecimentos, valores e padrões de comportamentos. Há quem afirme que vivemos uma crise de significado ou “doença do pensamento” – expressão colocado pelo físico quântico David Bohm.
             A saída dessa crise? A prática do diálogo para superação dos problemas atuais e resgate da convivência entre as sociedades, relacionamentos mais consistentes entre as pessoas.
             Estamos filosofando, investigando, dialogando e partilhando o que nos é mais essencial – nossa essência enquanto pessoas. Por isso somente pelo diálogo é que:
-  podemos conhecer as muitas maneiras pelas quais nos interligamos;
-  entendermos que integramos uma única realidade compartilhada;
-  percebermos a natureza contínua das mudanças que ocorrem à nossa volta;
-  compreendermos o significado daquilo que pode parecer uma desordem. Assim com e pelo diálogo poderemos ver os grandes padrões e pensamentos que permeiam nossas vidas cotidianas;
-  construirmos a Comunidade de Aprendizagem Investigativa (C.A.I.), em sala de aula.

O que precisa haver para que aconteça o diálogo?
             Esse exercício de colocar-se “com” os outros requer o desenvolvimento de capacidades e atitudes como:

- deixar de fazer julgamento; 
- aprender a ouvir;
 - colocar-se em uma postura reflexiva

Como fazer que em todas as nossas aulas o diálogo aconteça?
             Algumas atitudes e comportamentos para que a conversação entre nós seja mais criativa e transformadora. Para que com o diálogo possamos formar cada vez mais a C.A.I. em nossa sala de aula:
· Pensar e desenvolver o diálogo sob ideias e aprendizagens compartilhadas, possibilitando diversas respostas e colocações criativas.
· Aprender a ouvir sem resistência, principalmente os pontos de vista discordantes, assimilando os significados das palavras ditas.
· Perceber que a necessidade de resultados pode levar o diálogo para um único resultado e, desta forma, restringir o poder de criação pelo diálogo.
· Respeitar as diferenças entre os participantes, isso não pode separar as pessoas.
· Entender que os papéis e status dos participantes no diálogo não podem impedir de ouvir e falar abertamente, valorizando assim a contribuição das pessoas.
· Compartilhar responsabilidade e liderança no grupo, de modo que todos sejam estimulados a ouvir e falar, garantindo a participação.
· Falar ao grupo todo.
· Participar, quando estiver realmente confiante, pois sua contribuição será útil ao grupo.
· Expressar o que sente e imagina no momento, prestando atenção aos pensamentos dos demais participantes, para buscar ir além da compreensão do grupo.
· Encontrar o equilíbrio entre o questionamento e a defesa. Ambos são necessários para a sustentação do diálogo e a busca do significado compartilhado.
            Pelo diálogo é que filosofamos, refletimos e partilhamos um pouco de nossas verdades, para estarmos abertos às verdades dos outros. Assim ampliamos a nossa compreensão da realidade e construímos um novo pensamento, capaz de atender às nossas necessidades individuais e coletivas.

Na Comunidade de Aprendizagem Investigativa (C.A.I.)
surge, pelo diálogo, uma nova inteligência e ação coletiva.

Vamos fazer em sala um júri simulado ou uma prática filosófica sobre a pergunta:
- Os pais devem ou não deixar os filhos adolescentes saírem com a turma nas noites de sábado?

Certamente esse tema pode gerar muita polêmica. Nessa atividade ninguém escolhe o lado, e terá que defender a posição que cair para o seu grupo. Caso alguém caia no grupo que defende a posição contrária à sua convicção, terá que defendê-la mesmo assim. Essa é uma maneira para treinar nossa habilidade de argumentação. Essa prática em argumentar é denominada prática forense (forense = fórum, tribunal), que é a defesa de alguma ideia, como os advogados fazem. Contudo, é justamente esta conotação de jogo e de disputa que distingue a prática forense da prática filosófica. Vamos ver o quadro abaixo e refletir sobre as diferenças:

Prática Forense (=júri simulado)
Prática Filosófica (=Comunidade de Aprendizagem Investigativa)
1. Há uma busca da invenção daquilo que é o certo.
1. Há uma busca da descoberta do que é o certo.
2. É um jogo. Portanto há o desejo de ganhar do outro, não se importando com a verdade.
2. Não é um jogo. Portanto não há competição. Aqueles que não pensam como eu me enriquecem.
3. Defende-se o lado para o qual fomos designados, não importando qual seja ele, ou se este lado combina com nossas convicções pessoais ou não.
3. Procura-se o compromisso com a verdade dos fatos.
4. O compromisso maior não é com a verdade, mas com a defesa de ideias estabelecidas anteriormente.
4. Não há compromissos cegos com a defesa das ideias preestabelecidas. Se os fatos comprovarem o contrário do que se pensava, muda-se de ideia.

Agora é hora de escolher entre a Prática Forense ou a Prática Filosófica para depois registrarmos as ideias sobre a pergunta:
- Os pais devem ou não deixar os filhos adolescentes saírem com a turma nas noites de sábado?
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O que vem a ser “discussão”?
– O método de comunicação mais encontrado nos relacionamentos humanos. Vem do latim “discutere”, que significa fragmentar, reduzir a pedaços ou quebrar em partes. A internet está repleta de “fóruns de discussão”, muito embora em alguns casos os participantes queiram mesmo é praticar o diálogo. O uso inadequado da linguagem vem dificultar nossa capacidade de percepção da realidade complexa que nos cerca. 

Diálogo
Discussão/Debate
Ver o todo entre as partes.
Desmembrar questões e problemas em partes.
Ver as ligações entre as partes.
Ver distinções entre as partes.
Questionar pressuposições.
Justificar/Defender pressuposições.
Aprender por meio de questionamento e revelação.
Persuadir, vender e dizer.
Criar significado compartilhado por muitos.
Chegar a um acordo sobre um significado.

O que queremos nas aulas de filosofia e na Comunidade de Aprendizagem Investigativa?
– Pelo diálogo como um método de reflexão conjunta, conseguir a observação compartilhada da(s) experiência(s) para ampliar a limitada compreensão individual de mundo. Em outras palavras, a maneira como eu vejo é uma perspectiva única de uma realidade mais ampla. Posso ver com os olhos dos meus colegas, e eles podem ver com os meus, assim cada um de nós verá algo que talvez não veria sozinho.

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* Introdução do Livro - Somos cidadãos reflexivos: filósofos por natureza - 9º Ano. 7ª Ed., Coleção Novo Espaço Filosófico Criativo, 2010.
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 Fonte: O Dia D: Reflexões filosóficas

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Jornal CORUJINHA - Jornal de Idéias da Filosofia com Crianças, Adolescentes e Jovens

domingo, 10 de outubro de 2010

Sentido ético do eterno retorno em Nietzsche, por Suze Piza e Daniel Pansarelli*


O conceito que não tinha um compromisso com o que se convencionou chamar de coerência racional e que pregava a honestidade instintiva.


Por Suze Piza e Daniel Pansarelli*

A inconstância, talvez, possa ser tomada como o mais constante elemento que atravessa a obra filosófica de Friedrich Nietzsche. Desde seus primeiros escritos, a presença da figura dionisíaca – ainda que ao lado da outra, apolínea – marca o descompromisso de Nietzsche com a coerência racional, ou, dito de outra forma, seu compromisso com a honestidade humana, esta que ora se manifesta correta e logicamente (Apolo), ora é puro instinto, contradição, desejo (Dionísio). Lamentavelmente, o desenrolar-se da história do Ocidente teria favorecido a característica racional dos seres humanos, levando-os à constante repressão de seus instintos e desejos. Racionalizado historicamente além do que lhe é natural, estamos hoje, segundo Nietzsche, diante desse homem distorcido, amputado de sua plenitude de ser.
do autor já demonstram sua preocupação com a inconsciente abdicação, pelos homens, de seus desejos instintivos. Se Apolo e Dionísio, como metáforas representativas da constituição do ser, são figuras presentes em O Nascimento da Tragédia, de 1871, as consequências da deformação ocidental deste humano, por meio da valorização do racional em detrimento do instintivo, parecem ser o motivador da busca procedida por Nietzsche em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral, de 1873. Nesse breve texto, o autor acusa: a humanidade habituou-se a “mentir em rebanho”, a aceitar como verdadeiras as construções falsas, improváveis ou impossíveis de se comprovar, apenas por serem estas as construções aceitas pelo conjunto da sociedade.
A distorção de valores ocasionada pelo necessidade de aceitação social, o que leva os tantos e fracos a mentirem em rebanho, tem como desdobramentos dois complicadores à construção de uma ética que possa, efetivamente, ser compreendida como tal. A primeira, e talvez mais superficial dessas complicações, envolve a impossibilidade de se determinar o que poderia, de fato, ser considerado como um agir ético. Em sua argumentação, Nietzsche explica: nada sabemos sobre a “honestidade”, mas tão-somente sobre ações isoladas, cada distinta da outra, as quais nós, arbitrariamente e descartando sua individualidade, atribuímos um sentido comum, dando-lhe o nome “honestidade”. Só assim, pela arbitrária imposição de características comuns a ações distintas, chegamos a um conceito, fictício, o qual defendemos infundadamente como ético. Um sujeito encontra uma carteira e devolve esta a seu dono com todo o conteúdo; outro ajuda uma pessoa idosa a atravessar a rua, sem tirar proveito dessa pessoa; dessas duas ações, não participa nenhum elemento que carregue o nome “honestidade”, mas, ainda assim e sem explicações adicionais, chamamos ambas de ações honestas; mais que isso, identificamos a honestidade com a postura ética. Ora, nada há de “honestidade” em nenhuma dessas ações: na primeira, há uma carteira, um dono e a devolução; na segunda, duas pessoas e uma rua a ser atravessada. Nada mais. Qualquer tentativa de aproximar duas ações tão distintas só pode fundar-se na ficção inventada por alguém e irrefletidamente acompanhada pelo conjunto da sociedade, pelo “rebanho humano.”
Mas o problema de uma verdadeira ética humana tem suas raízes mais profundamente estabelecidas, chegando à própria constituição deste homem que habita o mundo presente. Após tantos séculos sofrendo e, depois, aceitando as distorções impostas ao seu próprio ethos, ao seu modo de ser no mundo, passadas tantas e tantas gerações em que a racionalidade apolínea imperou, restringiu, coibiu, castrou o desejo e o instinto dionisíacos, o próprio homem parece ter-se perdido. Aceitar acriticamente modelos éticos impostos, viver como gado humano, é consequência, não causa. A origem desta aceitação parece estar, segundo Nietzsche, na própria distorção da humanidade do humano. Este ser mais racional que instintivo não representa o pleno desenvolvimento da potencialidade humana ou, para dizer de maneira aristotélica – e, portanto, recriminada por Nietzsche –, este ser tal como descrito representa a atualidade do homem, não sua potência. Mas há, ainda, em alguns, a vontade de potência. O desejo – dionisíaco – de deixar de ser assim, tão humano.

O último homem e o além-do-homem

A reflexão acerca da condição humana, a partir de Nietzsche, leva à pergunta: que homem é esse que vemos pela nossa janela? Que homem é esse que vemos ao olhar no espelho? Segundo o autor, um homem que vive entre a felicidade, por um lado, e segurança, comodidade, ausência de dor, por outro. Essa vida não parece problemática à primeira vista. Mas só à primeira vista, pois se olharmos mais de perto: onde está o homem?
O homem foi apequenado, amesquinhado, o tipo-homem moderno é uma possibilidade histórica infeliz, a menor das possibilidades, de tantas que poderia ser. O último homem, tal como Nietzsche caricaturiza-o, é o animal de rebanho, esse animal que almejou o advento da felicidade, o desaparecimento da desigualdade, da injustiça e do sofrimento e que, conseguindo realizar parte desses projetos, está numa vida amorfa e é fisiologicamente decadente, pois é impotente para sofrer e impotente para suportar o sofrimento, é fraco, humilde, subserviente, é um sujeito (aquele que se sujeita a).
Que conceito de felicidade é esse, almejado e conquistado? É uma felicidade pequena, domesticada, dominada por freios sociais: segurança, bem-estar, estabilidade? Que felicidade poderia haver nisso? Isso é antivida. É vida não intensa, não experimentada, não trágica. A intensidade é condição necessária de toda grandeza, é a possibilidade de elevação do tipo-homem que está num estado de mediocrização (Mittelmässigkeit), redução da vida a relações de mercadorias, prazeres pequenos, rotinas entediantes, uma vida envolta por maquinaria, como vai dizer Heidegger mais a frente; corpos adestrados, como dirá Foucault. O homem foi sucateado, enquanto a Terra é racionalizada e administrada.
Nietzsche vê no modo de vida moderno uma anulação da subjetividade humana, em que a individualidade se perde, e em que impera a massa de rebanho, o espírito gregário e o consequente embotamento do indivíduo. Ele é, sem dúvida, o grande teórico e crítico da modernidade, que faz, para usar os termos do primeiro, uma “análise implacável de tudo que existe”. As poderosas teses levantadas por Nietzsche contra a religião, a moralidade e a Filosofia misturam a análise mais crua, inspirada no Iluminismo, com uma vitalidade romântica, para atacar os aspectos da cultura moderna que contrariam a vida. Essa é uma Filosofia da vida, vitalista. Nietzsche é um autor bombástico que não tem receios de produzir uma Filosofia a golpe de martelo. Sua crítica ferrenha à modernidade passa pela despersonalização dos indivíduos e pela formação social que cria um homem, segundo ele, fraco, humano, demasiadamente humano.
Defendendo que o homem é a somatória de impulsos, desejos e vontades, acredita que a visão de animal racional aceita pelo Ocidente como definidora do ser humano é equivocada, pois a razão é um produto cultural, social. A razão seria fruto de uma vida gregária que só surge em decorrência das circunstâncias as quais os indivíduos foram expostos.
Vivendo no mundo da razão e, portanto, valorizando a consciência como seu espaço privilegiado, o ser humano cria uma série de regras morais de convivência que o limitarão como ser humano. Dentre essas morais, o cristianismo é a que Nietzsche dedica mais tempo e espaço de reflexão. O cristianismo representa para Nietzsche uma moral dos fracos, pois valoriza o servilismo, a humildade, a aceitação, o conformismo com um tipo de sofrimento que só retrai, submete.
O cristianismo seria o legítimo formador de uma massa de rebanho, sem força, individualidade ou autonomia. Seria uma moral massificadora e de escravos. A modernidade, vitimada pelo capitalismo e herdeira da moral cristã, será fatal para as possibilidades da vida humana.

A antropologia nietzschiana passa pela defesa de uma superação desse humano que aí está. Na defesa de um super-homem que teria em si resguardada a força, os instintos e os desejos, rejeita-se o homem que surgiu do tipo de sociabilidade que criamos. O homem seria o meio entre o animal e o super-homem. A defesa do super- homem, em última instância, representaria um ultrapassamento da modernidade. O retorno do homem a si mesmo, resgate daquilo que perdeu quando se tornou consciência.
Numa perspectiva vitalista, Nietzsche se apega na antiga concepção do mundo grego – entre os princípios apolíneos e dionisíacos, quando estes estavam em vigência, e advoga em favor da vontade humana.
E é em meio a esse contexto de domesticação do homem que se gesta o seu contrário, é aí que Nietzsche desenvolve seu conceito de “além-do-homem” (Übermensch) como contramovimento, visando fazer face à mediocrização em andamento na modernidade, que infelizmente toma consciência de si na figura histórica do niilismo europeu1 . Quem é o alémdo- homem? É a representação da vontade de potência, da força e do desejo, da experiência que perfura e fortalece. O além-do-homem é da arte, da vida, do corpo, amoral. Indivíduo soberano, autêntico, é uma espécie de homem mais desenvolvida. Essa seria, portanto, uma existência sobre-humana, radicalmente singular, corporal, singular, livre.
Essa vida é vida de 1fato! E essa vida vale a pena ser vivida. Uma vida de experiências intensas, de contato com a terra, de realizações de desejo, de exercício da vontade. Uma vida que ao morrer seria mais que morte, seria consumação, combustão. O avesso da morte em vida do último homem, o além-do-homem acaba, esgota-se de tanta vida, a morte é apenas o acabamento de uma existência vivida em sua intensidade. Essa vida valeria ser vivida tantas vezes quanto fosse possível. O eterno retorno de Nietzsche pode ser interpretado como um recurso hipotético de validação da vida: eu viveria tantas vezes quanto fosse possível a mesma vida, pois ela foi, de fato, vivida. O conceito funciona também como um princípio ético, um imperativo que sai em defesa da vida e do corpo: “Age de tal maneira que tua vida possa ser vivida tantas e tantas vezes exatamente da mesma maneira”.


O eterno retorno, regra de ouro

A proposição do eterno retorno, tal como formulada por Nietzsche nos textos de 1881, é uma regra de ouro para o julgamento da eticidade da vida. Se o ser humano não tem em si mesmo o referencial para julgar a qualidade de sua vida – para julgar se vive ou não uma “boa vida” –, visto que se deformou historicamente, e sabendo que não pode confiar na razão (vilã da deformação humana) como critério para fazer este mesmo julgamento, o eterno retorno apresenta-se como possível parâmetro à valoração ética da vida.
Viver a mesma vida já vivida desde o nascimento até hoje, sem a possibilidade de transformar nada, sem alterar nenhuma escolha, sem suprir sequer uma omissão. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de viver eternamente esta vida até então transcorrida. Essa é a condição. Para aqueles poucos que vivem a boa vida, autenticamente, essa condição será desejosa: valerá a pena viver eternamente repetindo os mesmos atos, vendo a ampulheta de sua vida virar-se outra e outra vez. Para a grande massa, aquele “rebanho”, a situação seria odiosa, desesperadora. Aqueles que se resignam no presente, buscando relegar a um futuro – que, a bem da
verdade, não esperam concretizar – o que verdadeiramente desejam, esses abominam a vida eterna e circular. Por isso, o eterno retorno é uma regra de ouro da ética. A única que permite a cada um, em sua mais honesta individualidade, projetar e, principalmente, realizar a vida ética, a vida que vale ser vivida. Uma vez. E outra. Mais outra...

1 A reflexão trazida por este texto encontra respaldo no texto de Oswaldo Giacóia Jr., Críti ca da moral como políti ca em Nietzsche.

*SUZE PIZA é mestre em Filosofia pela UNICAMP. Atualmente, é doutoranda em Filosofia pela UNICAMP e professora assistente da Universidade Metodista de São Paulo ministrando aulas em diversos cursos da universidade na área de Filosofia. 

*DANIEL PANSARELLI é doutor em Educação (Filosofia e Educação) pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Educação e graduado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente, é professor na Metodista, onde coordena o curso de pós-graduação em Filosofia Contemporânea e História.

 

Apolo
 
Filho de Zeus e Leto e irmão gêmeo de Artemis, foi um dos principais deuses da mitologia greco-romana. É o deus da beleza, da juventude, da luz, do sol e da música. É o fundador do oráculo de Delfos, que tinha o objetivo de dar conselhos aos gregos por meio da sacerdotisa Pitonisa. Porém, diz a lenda que suas flechas podiam causar doenças aos homens.


 

Foucault

Importante filósofo francês nascido em 1926 e falecido em 1984. Publicou seu primeiro livro Doença Mental e Personalidade, em 1954. Encontrou em Nietzsche sua fonte de inspiração. Usava uma linha de pensamento mais “contextualista”, ou seja, analisava somente as interpretações feitas ao longo da História.

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