Logo após a crise do PT de 2005, a professora Marilena Chauí escreveu que não era dada à prática de ler jornais. Uma parte da juventude, já decepcionada com ela por causa da sua defesa pouco racional do PT, ficou mais inconformada ainda com tal declaração. Afinal, ela, que tanto fez na imprensa, chegando até a ter uma coluna semanal na Folha de S. Paulo, uma vez vendo a imprensa ter de malhar o PT, agia como a avestruz: cabeça enfiada no buraco, xô realidade. Era isso?
Não vou dizer que não era. É claro que Marilena estava magoada. Ninguém coloca 40 anos de sua vida em uma proposta política e, então, vendo tudo desmoronar, aceita o destino com tranqüilidade. Todavia, as pessoas esperam que o filósofo saiba enfrentar coisas assim com sabedoria. Até mesmo quem não tem uma idéia correta do que é um filósofo, quer acreditar que se trata de um intelectual que tem a mente aberta, alguém que pode mudar de idéia, pode engolir adversidades sem teimosia. Essa cobrança recaiu sobre ela. Veio então o tal “silêncio obsequioso”. Marilena se recolheu à academia e desta à aposentadoria. Uma vez no Conselho Nacional de Educação, justamente ali, onde poderia falar grosso, parou de falar.
Nas cambalhotas desses passos pouco alvissareiros, penso que Marilena acertou em alguma coisa. Atirou no que viu e acertou no que não viu. Ela acreditou que não deveria mais dar importância à imprensa porque esta estava distorcendo tudo. Acertou, mas não pelo que falou, e sim pelo que não falou.
De 2005 para cá a imprensa brasileira, especialmente os jornais impressos e as revistas, tem caminhado rapidamente na mesma direção de fragilização da imprensa mundial. A divulgação das informações via Internet demorou a ameaçar a imprensa, mas, enfim, ameaçou. A crise, agora, é sentida por todos. Os jornais não estão se agüentando nas pernas. Então, inicia-se uma transformação psicológica, às vezes não clara para os próprios jornalistas que a vivem, que segue na direção de agradar o leitor a qualquer custo. Os jornais querem agradar. Os jornalistas querem ser lidos. Querem mostrar para os chefes de redação que eles são lidos, que são importantes. Empurram para fora dos jornais e para fora de todo lugar intelectuais que eram amigos, mas que, agora, são concorrentes. Ao mesmo tempo, há uma bajulação do leitor jamais vista. Com isso, o eco do senso comum cresce absurdamente. Nasce a ditadura do senso comum sobre a imprensa e, quanto mais democracia temos – graças à Internet – mais a informação é produzida por nós mesmos para nós mesmos segundo nosso gosto mais pasteurizado. O resultado é este que vivemos: a cada dia nós temos uma dificuldade imensa de usar da imprensa para levantar elementos corretos para uma crítica de instituições ou pessoas ou governos que não são criticados pela maioria, ou pelo que se pensa que é a maioria.
A situação fica engraçada, pois até as frases que foram usadas, no passado, para atacar essa situação, são reiteradas sem mais conteúdo algum, e criam o sentido oposto. Por exemplo, quem hoje diz “a unanimidade é burra”, não diz nada. Pois exatamente quem fala isso, está dentro de uma unanimidade setorizada, que lhe dá a impressão de estar atuando de modo crítico e ousado. O fenômeno dos blogs, twitters, podcasts e vídeos criou um mundo de jornalistas amadores que competem quase de igual para igual com os profissionais dos jornais impressos. Conquistam leitores. Trabalham de graça. Os jornalistas profissionais, desesperados, não conseguem não publicar em seus próprios blogs seus furos, pois ficam com medo de que o furo não seja furo em um prazo de segundos. Então, eles próprios solapam as bases financeiras dos jornais. A idéia trazida pela Internet é que toda notícia é gratuita para o consumidor, e que a imprensa deva ser virtual e tire seu lucro da propaganda. Sim! Mas a fase de transição para essa situação que aponta ser a correta é terrível.
Nessa fase, muitos imaginam que não irão sobreviver – e estão certos. Então, se agarram ao lema, às vezes pouco claro, mas que está virando regra: “não podemos perder o leitor”. Assim, se eu publico uma pesquisa, encomendada pelo governo, e esta pesquisa diz que Lula está com 80% de aprovação popular e, depois, tenho de publicar outra em que ele cai de aprovação, fico temeroso de publicar esta segunda, pois posso não só desagradar o governo, que paga a maior parte de minha propaganda, mas posso desagradar o leitor, que não quer que o país entre em crise e prefere acreditar que seu presidente está fazendo a coisa certa, e que vai bem. Em poucos movimentos, o eco do senso comum vai catalisando a si mesmo e, ao final, há uma total incapacidade de crítica.
Não estou dizendo a bobagem que ouvimos nos anos noventa, de que estávamos sob o tacão do “pensamento único”. Há diversidade, é claro, pois mil coisas estão acontecendo e sendo noticiadas com uma velocidade nunca vista antes, e num volume assustador. Todavia, essa diversidade, ela própria, tende a formar uma perigosa unidade momentânea de fundo conservador.
Eis como isso funciona. O volume de matérias que vai de todos para todos é imenso e a velocidade da troca é intensa, mas cada vez mais ele pode, em determinados momentos, seguir um único corredor, com um efeito de falsa mobilização. E isso até pelo fato que a análise não é mais permitida, todo mundo repassa o que recebe sempre tentando só chamar a atenção. O caso do fora Sarney na imprensa e no twitter foi significativo disso. Sarney ficou sólido a cada dia, com apoio de Lula – era visível isso. Mas a gritaria do eleitor aumentou contra ele, uma vez que ele começou a provocar o leitor a partir de suas declarações no Senado. Ao mesmo tempo, todo e qualquer movimento de rua contra ele foi barrado, uma vez que o PT, o único partido com capacidade de mobilização de rua, aderiu à proteção de Sarney. Isso não causou revolta contra Lula, pois a Internet catalisou a raiva, mas de uma forma esquisita. Vários que votam em Lula, mesmo sabendo da preferência do Presidente pelo Senador, vieram para o lado dos que reclamaram do Senador apenas por ódio geral à política, e todos descontaram o ódio contra Sarney no twitter. Ora, isso gerou um movimento falso de oposição. Não estou dizendo que o movimento virtual é falso, o que estou contando é que, neste caso, surgiu sem conteúdo. Enquanto isso, a própria Justiça conseguiu calar a boca do Estadão que, por sua vez, agradeceu o fato. Pois se pudesse atacar Sarney até o final, iria acabar por bater em Lula e, então, sofreria a retaliação. Retaliação não só de Lula mesmo, que poderia tirar as estatais da jogada de alimentar a imprensa, mas retaliação do leitor. Esta última talvez viesse a ser até mais perigosa que a de Lula. Ao menos é isso que corre pela cabeça de muitos dos jornalistas.
Pode ser que este fenômeno que estou descrevendo aqui não dure muito. Pode ser quer a própria Internet, daqui a pouco, mostre que ela tem caminhos de liberdade que não estamos sabendo usar no sentido de mudanças substanciais, e não da reiteração do senso comum que estamos vivendo. Mas, no momento, especialmente no Brasil, o que estamos vivendo é isso. Nenhum de nós que está nesta avalanche de dar e passar informações sabe se o que estamos ouvindo é algo que podemos repetir sem ferir nosso único real desejo atual, o de sobreviver na tarefa de dar e passar informações, de se fazer notar, mesmo que não sejamos profissionais da imprensa. Tudo que todos começam a desejar, em uma situação assim, é não ofender aquilo que imaginamos que é o pensamento do senso comum.
Dessa forma, uma série de questões são criticadas e comentadas, mas somente na sua superfície. Ninguém quer aprofundar nada. A autocensura, essa figura que parecia que não mais iria estar entre nós, voltou. Não temos medo do tal “censor da ditadura”, que não existe mais, temos medo de nós mesmos, de falarmos algo que não condiz com a psicologia cordial que se instaurou no meio intelectual. Todos nós queremos ser conscientes, críticos, mas cordiais. Não queremos nos inviabilizar perante o comprador de nosso produto, o texto. Assim é que estão funcionando os jornais impressos, e também a TV. Aliás, parte da academia já havia aderido a isso há algum tempo. O poder de fogo do blogs, de reiteração do senso comum, faz os jornalistas não afrontarem mais ninguém. Jornalistas de esquerda e de direita chegam a um acordo tácito. Eles só podem falar na medida em que não contrariam seus públicos cativos. E eles estão confusos em saber qual o seu público cativo. Tornam-se conservadores em costumes na medida em que disputam com os blogs a preferência do leitor. Pois os blogs, na sua maior parte, representam a emergência dos escolarizados não politicamente engajados. Eles representam uma classe média conservadora em costumes que, enfim, sempre odiou ter de ir para a rua ou para os partidos para ter de mudar as coisas. Os jornalistas acreditam que estão perdendo para essa gente, e então, passam a reiterar o que dizem os blogs. O senso comum se amplia assustadoramente com essa alimentação de dupla mão.
Dessa forma, o que ocorre entre nós é um movimento quase que inverso do que se deu com o “fenômeno Obama”. Nos Estados Unidos, os não participativos viram nos blogs, vídeos e similares a sua chance de terem “um novo partido” que, enfim, atropelou pela esquerda o Partido Democrata e o Partido Republicano. No Brasil, não sei se podemos falar do mesmo fenômeno, vindo da direita. Mas, ao menos no momento, podemos falar de um fenômeno parecido, mas no sentido do conservadorismo moral, tanto na direita quanto na esquerda. Isso está levando de roldão os jornalistas, mesmo os mais atentos, mesmo os que se achavam sabidos e autoconscientes. Cada profissional da escrita está tentando esticar o braço e dizer “eu estou aqui, aqui ó”.
Ainda que esse movimento possa, em alguns momentos, ser menos conservador que agora, o fato é que tudo vai se tornar mais aguerrido logo. Pois junto com a imprensa jornalística também o livro vai se modificar muito, uma vez que aquele que seria o potencial leitor logo estará cativo de programas de TV em canais online dirigidos a um público diminuto e específico. Este público seria o leitor do livro daquele intelectual que, neste futuro próximo, estará dirigindo o programa de TV. Isso nós vamos assistir ainda neste final de década.
© Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo
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