Débora Morato Pinto
O filósofo francês Henri Bergson dedicou-se, ao longo de sua vida, a tentar compreender o tempo real. Sua principal descoberta, princípio de todas as suas análises e de suas maiores contribuições para a filosofia e para a ciência, foi precisamente o erro estrutural que o saber comete ao definir o tempo como um fenômeno linear e quantificável. Em poucas palavras, sua intuição primeira foi a de que o tempo do relógio e da cronologia, tão caro à nossa vida em sua dimensão prática, não corresponde à verdadeira manifestação da temporalidade, nem à sua verdadeira essência – o tempo da práxis é duração em refração no espaço. Trata-se da ilusão que impulsiona a vida e a técnica, a imagem de um tempo que avança por saltos, intervalos, que se desdobra em linha e se divide em um antes, um agora e um depois.
Mas Bergson não se limitou a essa descoberta. A contrapartida da denúncia da imagem ilusória de um tempo que, ao fim e ao cabo, é tempo-espaço, é a intuição de que a essência da temporalidade se manifesta no mais profundo de nós mesmos. Eis a sua famosa tese da duração real, descoberta na interioridade do eu e ampliada para todos os fenômenos após um minucioso trabalho de desconstrução de conceitos e acesso à experiência, aos dados da sensibilidade e aos fenômenos da memória e da vida. Interessa-nos aqui que a duração real, verdade do tempo e do ser, nos é acessível no contato que podemos ter conosco, ao mergulharmos, num processo de interiorização, na profundidade de nossa pessoa. Ali, a temporalidade manifesta-se como fusão de momentos em progressão, pura heterogeneidade qualitativa marcada por um tom, transformação contínua de momentos interiores uns aos outros. A verdadeira manifestação do tempo dá-se por imagens, entre as quais a da melodia ocupa lugar de honra. Em lugar da espacialidade e do horizonte aberto próprio às imagens visuais, a música representa melhor a verdade do tempo.
“Cronos ensandecido”
Se levarmos em consideração que o tempo da cronologia e do relógio é, com efeito, o tempo elaborado e seguido pela vida contemporânea em sua dimensão social e, sobretudo, em sua dimensão técnica – não sabemos mais dizer onde termina o humano e onde começa o inumano, seja como ramificações tecnológicas, seja como atuações num mundo que é publicização e imagem –, a filosofia de Bergson, uma vez compreendida e incorporada, seria um consolo para os males do tempo por si só. Imaginemos o alívio trazido pela descoberta de que o tempo que não para de passar, corroer, aumentar, o time is money ao qual estamos submetidos inexoravelmente, o tempo atrás do qual estamos sempre correndo, que nos angustia, que nos devora, o cronos ensandecido (título do livro de Sérgio Pripas) que nos aflige e nos falta, enfim, que esse tempo do século 21 é uma imagem ilusória! Imagine sabermos, de repente, que o tempo não passa como pensamos, que o antes não condiciona o agora, que o agora não determina o depois, que não podemos saber o antes partindo do depois…
Mas esse consolo aqui sugerido tem um preço: conhecer e aderir a uma única proposta filosófica, o que exigiria, além do enorme esforço para estudá-la, a difícil decisão de abrir mão das outras filosofias, de autores distintos, extremamente instigantes. Além disso, a duração verdadeira, uma vez acessível a nós, nos impõe, de si mesma, a tarefa de agirmos para expressá-la no mundo – a definição mesma de liberdade, segundo Bergson. Assim, a questão que queremos colocar à luz dessas considerações é de outra ordem: a filosofia, como atividade, ou aquilo que podemos, mesmo sob o risco de cometer alguma impropriedade, reunir sob o nome de “atividade filosófica” nos traz algum consolo diante das dificuldades ou das intempéries do tempo?
A resposta mais óbvia seria, talvez, pensar na imagem do filósofo que sai fora do mundo, que se afasta do real, que cai no buraco porque anda examinando as estrelas – esse filósofo não viveria, no sentido mais comum do tempo, e por isso não sofreria… Ele estaria eternamente consolado. Mas Bergson mesmo nos indica outro sentido para nos libertarmos da ditadura do tempo, e que não exige o abandono da vida, o refúgio na ilha da abstração, no mundo dos conceitos. Esse sentido está no ritmo da atividade filosófica, assim como no da arte: ler um belo parágrafo de um clássico, que nos impele a dar voltas em torno dele, nos conduz a outros pensamentos, a novas imagens daquilo mesmo que determinávamos como pedaços do real; enfim, ler e escrever efetiva e ativamente sobre filosofia nos obriga a forçar nosso pensamento e nossa capacidade de criar soluções conceituais (criar conceitos, como diria Gilles Deleuze), significa já, em ato, libertar-se de um tempo dirigido, determinado por um fim, medido por um intervalo. Criar uma obra sem finalidade imediata, imprimir às coisas uma emoção, um sentimento, usar enfim a matéria do mundo para expressar nossa pessoa, sua profundidade que revela algo de universal, significa trazer ao tempo da práxis outro ritmo, outra tensão: imprimir na espacialização da vida social e tecnológica um ritmo que não é o seu. Significa, mais que tudo isso, ampliar o escopo de nossa experiência, que passa a incorporar os efeitos de uma interiorização criativa. Em que essa experiência nos consola? Ela acaba por ser, talvez, mais nossa, nos pertencer de forma mais autêntica e, por isso mesmo, ser mais humana. Se tudo isso ainda parecer excessivamente teórico, termina-ríamos dando um exemplo mais concreto: a filosofia é uma atividade praticada por estudantes e estudiosos, professores e mestres, diletantes, até crianças, mas o fato é que, ao poder ser significativamente exercida pelos ditos “velhos” (grandes filósofos da história produziram obras das mais relevantes em idade “avançada”), ela nos liberta de uma das mais difíceis imposições do tempo – a da busca de uma juventude eterna, do tempo perdido. Na filosofia, assim como na arte, o tempo nunca se perde, ele só se cria ou se transforma.
Fonte: Publicado em 01 de abril de 2010 na Revista Cult - Edição 143.
Imagem: Google
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2 comentários:
Filosofando e blogando. Eu cheguei até aqui. Meus parabéns pelo texto!
Abraço, :-)
Acho esses filósofos modernos presunçosos! Crisipo, filósofo estóico do século III a.C., já falava sobre as articulações entre tempo e espaço.
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