A temporalidade é constitutiva do modo de ser do homem. O homem é filho do tempo e toda a sua existência se desenrola entre dois pontos, ambos abissais e misteriosos, o nascimento e a morte. Mas muitas vezes a forma como tomamos consciência da nossa temporalidade leva-nos a encarar a vida a partir de uma perspectiva negativa, a leva-nos, em suma, a cair no pessimismo: pensamos que a vida não tem sentido, que tudo o que fazemos está condenado ao fracasso ou porque vamos morrer e, de forma abrupta e inexorável, tudo o que construímos se desmoronará como um baralho de cartas, ou um castelo de areia, tenhamos alcançado objetivos importantes na vida, ou, pura e simplesmente, ainda estejamos a lutar para os alcançar. Sendo assim, o sentimento de injustiça e de impotência perante a morte apresenta-se de forma irrecusável quando vemos que tudo o que somos está em perigo e, também que a morte leva de igual forma, bons e maus, otimistas e pessimistas, empreendedores e preguiçosos.
De fato, se ficarmos por aqui, podemos chegar à conclusão de que a nossa existência não tem sentido, de que não servimos para nada, de que o nascer nada tem de importante e podemos deixar-nos submergir na angústia. Quantos homens não parecem entregar-se à rotina e à inautenticidade de uma existência sem a tentativa de ir para além das aparências, num torpor próximo do sonambulismo, entregando-se ao tédio de uma vida oca, de uma existência sem medula, sem caroços nem espinhas?
Viver é ser no mundo, num mundo que é habitado por nós e por outros homens, do qual fazem parte todas as coisas que constituem, para nós, a realidade. A realidade apresenta-se de forma multifacetada. E a forma como a captamos depende do modo como nos comportamos perante ela, ele próprio dependente dos instrumentos que recolhemos ao longo da nossa evolução como pessoas. Uma pessoa com uma cultura acima da média pode apreender dimensões da realidade que escapam a pessoas com uma menor formação cultural. O mesmo se passa em relação a todos os saberes de que possamos ser portadores, o saber acarreta o poder: quanto mais sabemos sobre uma área específica da realidade, maior é o nosso poder de intervenção sobre ela. Isto é válido quer em termos individuais, quer em termos coletivos.
Mas em relação à vida coloca-se um problema, sempre presente, de como nos devemos orientar nela, de como podemos usufruir da vida de forma mais plena. Esta é uma questão mais importante do que parece, pois ela aflige, de forma mais ou menos profunda, todos os homens, pois, todos somos responsáveis pelo rumo que, por ação ou omissão, damos à nossa vida, pois somos livres, temos o poder de, dada uma situação com possibilidades de escolha, decidir o que queremos ou não fazer. Ora, saber viver é algo de que praticamente todas as pessoas se gabam, mas que, de fato, transparece das ações de muito poucas pessoas. Essas, as que dão mostras de saber viver, são apelidadas de prudentes.
Ora, a prudência foi considerada por importantes filósofos da antiguidade, de entre os quais se destaca Aristóteles, como a principal virtude. De fato a virtude pode ser considerada como uma capacidade para o bom e para o belo (de acordo com o ideal de perfeição que os Gregos delinearam). Cada uma das virtudes é uma capacidade, uma fonte de força para a ação, que dá ao indivíduo o poder construir-se de acordo com esse ideal de perfeição, ou seja, de se tornarem bons. E a prudência foi considerada a principal de entre as virtudes porque ela pode definir-se como o poder que um indivíduo tem de conjugar todos os seus esforços, resultantes dos poderes que lhe são conferidos por cada uma das outras virtudes, para um fim supremo que será o de se aproximar da perfeição, ou o de viver o melhor possível de acordo com a sua situação existencial. Por exemplo, não podemos considerar que um homem injusto seja prudente, pois ao agir de forma injusta está a prejudicar-se a si próprio e aos outros. Por isso o homem ignorante não poderá ser prudente, pois lhe falta o que é fundamental para poder agir da melhor forma: o conhecimento do real e de si próprio. Assim, podemos considerar que estamos perante o principal objetivo da Filosofia, na sua relação com a nossa vida: o permitir-nos alcançar uma visão profunda de nós próprios e da realidade em que nos inserimos Só assim, libertos das limitações do senso comum, podemos encarar a vida de frente.
E chegamos ao que interessa: o que será isto de olharmos a vida de frente?
Tendo em conta que a temporalidade é constitutiva da nossa existência, isto só pode significar estarmos atentos ao presente, ao que se nos dá a cada momento. Pois podemos estabelecer uma ligação entre o presente temporal e os presentes que oferecemos aos nossos amigos em ocasiões especiais. O presente, muitas vezes não é para nós uma ocasião especial, porque não lhe damos importância, melhor, não lhe damos sempre a mesma importância, pois são raras as ocasiões em que vivemos, mesmo, o presente, uma vez que estamos preocupados com o passado ou o futuro, mais ou menos imediato, ou seja, com o que já não existe ou com o que ainda não existe. E o presente pode também ser considerado como a forma pela qual a vida se nos oferece. O presente é mesmo um presente, mesmo se para algumas pessoas ele possa estar envenenado…
E a importância disto é imensa. Aceitá-lo e assumi-lo pode mudar de fato a nossa vida. Pelo menos a forma como encaramos a nossa vida. E isto soa estranho porque nós hoje, cocas-bichinho de biblioteca e das modernices internéticas, pensamos a filosofia como um saber hermético, fechado, encerrado em calhamaços que ninguém lê, ou como um saber esquisito, uma emanação alienada, segregada por mentes seguras por finos pescoços e engalanadas por grandes barbas e por carecas luzidias… Vemos a filosofia como um saber divorciado da vida, construído num labor cego de inimigos dos homens, dos homens que vivem a sua filosofia sem filosofar, como se, parafraseando Fernando Pessoa, não houvesse filosofia suficiente em não ter filosofia nenhuma. Quem, depois de morder o fruto proibido, pode alcançar tal estado de graça? É que a humildade, virtude sumamente racional, se não for praticada pelos filósofos, leva a que qualquer sistema filosófico entre em contradição com a vida. A arrogância é um sinal mais que evidente de mesquinhez de espírito. E quem é mesquinho não ama ao próximo nem, o que é mais inverossímil ainda nesse caso, a sabedoria. Não é prudente, ponto final.
Ora a filosofia só tem sentido se, nascendo da vida, puder ser aplicada na vida, não só do filósofo que professa, mas dos outros homens, pelo menos daqueles que a buscarem compreender. Tudo o mais é falado sem nexo, presunção, nada mais. E a presunção, como diz o povo, é como a água benta: cada qual toma a que quer.
Se encararmos a vida como uma sucessão de acontecimentos que nos arrasta, qual rio caudaloso e inexorável, para a morte, então não faz muito sentido falarmos do presente desta forma. Só faz sentido se encararmos a vida como tendo uma relação próxima, pessoal e visceral, conosco. Se encarássemos o que nos acontece como mensagens que a vida nos dirige. É como se a vida falasse continuamente conosco e nós quase nunca lhe prestássemos atenção…
É que podemos aplicar à vida o mesmo princípio que está sabiamente inscrito nas passagens de nível: pare, escute e olhe. Por vezes é bom parar para escutar e para ver aquilo que a vida nos está a dizer. Pois só assim lhe poderemos responder de forma adequada.
Na correria incessante da nossa vida quotidiana, às vezes parar, se bem que pareça pouco desejável, pode ser o que de melhor temos a fazer. Não vá qualquer coisa cair-nos em cima, assim de repente! E zás! Acabamos por parar, mas já não somos nós que controlamos a situação. É o que acontece nos desastres… Perdemos o controlo da situação. E logo quando nos esforçamos mais para a controlar. É um paradoxo que se nos entranha na carne, por assim dizer. Ora, mais vale fazermos uma paragem controlada. Aí podemos dar plena atenção ao que nos rodeia…
E quem está habituado a escutar? Como vivemos sempre a correr, isolados na nossa azáfama quotidiana, quando encontramos alguém, somos irresistivelmente levados a querer dizer tudo o que se passou conosco, como se tudo fosse importante. No fundo, tudo é importante, mas há momentos mais significativos em que pedaços de sentido, manifestações do que é mais do que o imediato, vêm à flor da vida, por assim dizer, à tona da água de estarmos vivos. Isso sim é mais do que importante, é o que mais importa! E muitas vezes não damos conta disso. Nem estamos dispostos a escutar a vida, quer em direto e ao vivo, quer através da fala dos outros… E escutar é querer ser a sério. Simplesmente.
E ver? Podemos dizer que estamos preparados para enfrentar a realidade com olhos de ver? Com os olhos que a vida nos deu quando nos fez vir ao mundo? Não estou falando dos olhos do corpo, pois há pessoas que não os podem usar e vêem tudo o que há para ver… Refiro-me ao que na antiguidade era designado como os olhos da alma. Hoje é feio falar-se assim. Já quase ninguém fala na alma. É uma entidade fantasmática que se esfumou nas brumas da História. Mas podemos ver algo que valha a pena ser visto, se não possuirmos, se não formos, uma alma? Não o creio. Por isso somos, por assim dizer, os deserdados da História do pensamento Ocidental. E estamos no mundo e não sabemos o que isso significa. Porque não vemos. E se não vemos não somos. Estamos apenas. Isto não faz sentido? Não faz mal!
Fonte: http://www.espanto.info/av/ip.htm
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