domingo, 24 de janeiro de 2010

Ensino de filosofia e a responsabilidade ética como postura moderada

Alcemira Maria Fávero1

Durante muito tempo o homem acreditou que poderia haver algum lugar seguro do qual pudesse partir para realizar suas ações no mundo, onde a vida humana pudesse encontrar a plenitude, em outras palavras, havia a crença no princípio do fundamento. No universo religioso Deus representou, e representa ainda, para muitas culturas o fundamento seguro para o qual tudo deve convergir. Em Deus estão os pontos de partida e de chegada do ser humano. O fundamento, na filosofia clássica, fez-se presente na compreensão metafísica de mundo, na qual conhecer significava buscar a essência em oposição à aparência e, na metafísica2 moderna, entre os muitos sentidos atribuídos a esse complexo conceito está a idéia do império da razão suficiente3.

Entretanto, não existe mais um lugar seguro para o homem apoiar o seu agir e viver tranqüilo, certo de que sua ação foi, antes tudo, uma ação ética. A ética, na educação, precisa ser pensada como experiência do saber viver junto. A educação deve contribuir para que os estudantes aprendam, pela sensibilidade ética e pela vivência de grupo, a perceber os aspectos conflitivos e injustos da realidade que os cerca e, com base numa experiência dialógica sobre os princípios de valor, possam, eles próprios, analisar, criticar e julgar as normas vigentes na tentativa de construir formas mais justas de vida para si mesmos e para os outros. O espaço escolar, nesse sentido, pode favorecer para que os estudantes orientem seu comportamento de forma coerente com os princípios que aprenderam a respeitar por vivenciarem um processo de reflexão e por entenderem a importância de serem seguidas normas socialmente construídas.

O objetivo do presente texto é analisar o problema da responsabilidade ética num tempo pós-metafísico com base em Habermas. Para tanto, iniciamos apresentando algumas características gerais do pensamento metafísico moderno e do pensamento pós-metafísico segundo uma leitura de Habermas. Em seguida, tendo como referência a pergunta “existem respostas pós-metafísicas para a questão da vida correta?”, investigaremos o texto de Habermas “Moderação justificada” (2004, p. 3 - 22), o qual servirá de suporte para podermos pensar sobre questões de sensibilidade e responsabilidade moral.

I. O pensamento metafísico e pós-metafísico 

A metafísica moderna pode ser entendida como o desejo da auto-realização do espírito humano, a união entre razão e liberdade, a crença na capacidade racional do homem para desvendar os segredos da natureza e, por meio dela, promover a emancipação do homem rumo à felicidade. Também se denomina “filosofia da subjetividade” ou “da consciência/autoconsciência”, ou seja, o sujeito cognoscente tem plena consciência das representações que tem dos objetos e das condições de possibilidade do conhecimento a priori dos objetos.

A crença iluminista pautou-se pela convicção de que o aprimoramento da razão poderia transformar a humanidade numa sociedade culta, eticamente correta, justa e igualitária. Contudo, esse ideal de cidadão livre e emancipado fracassou, porque a razão não libertou o homem; pelo contrário, condenou-o à ordem burguesa, às leis do mercado, e deixou-se instrumentalizar4.

Não existe mais lugar seguro, tampouco verdade absoluta. Os conhecimentos são provisórios e os valores morais/éticos são expressões da cultura localizadas no tempo. A pergunta que se coloca é: o que a humanidade pode fazer? E, nessa mesma direção, o que cabe à filosofia? O século XXI coloca nas mãos dos homens toda a responsabilidade pelas suas ações no mundo.

II – Moderação justificada 

Em seu texto “Moderação justificada. Existem respostas pós-metafísicas para a questão sobre a ‘vida correta’?”, do livro O futuro da natureza humana, Habermas procura trazer para a discussão justamente o problema da responsabilidade do ser humano perante o seu poder de intervenção na vida e o desafio da moderna compreensão de liberdade. Discute sobre o tratamento que se deve dar à pesquisa e à técnica genética; reflete a respeito do “poder ser si mesmo”e sobre a responsabilidade que cada um tem consigo mesmo e com os outros; questiona sobre o poder que um indivíduo tem na relação com o outro numa decisão que é irreversível, ou seja, a heterodeterminação pela modificação genética.

Habermas apresenta o texto em três momentos: no primeiro, procura refletir sobre o limite da filosofia ao tratar de questões que dizem respeito à “vida correta” após a metafísica; no segundo, traz para a discussão as idéias de Kierkegaard sobre ética, e, por último, fazendo relação com as idéias de Kierkegaard e com o papel da filosofia segundo uma visão pós-religiosa e pós-metafísica, analisa o problema da intervenção no genoma humano e as possíveis conseqüências que essa intervenção possa causar na autocomprensão ética das pessoas que sofreram modificações genéticas.

2.1 A vida correta e o limite da filosofia prática 

Se estamos conscientes de que respostas metafísicas ou religiosas não fazem mais eco nas sociedades plurais e complexas, somos obrigados a começar a pensar de outra forma: de uma forma que possamos discernir sobre o significado de ser livre, ser correto, praticar justiça, injustiça, direitos, deveres, que não seja pela compreensão e justificativa religiosa, tampouco pela idéia de que existam fundamentos seguros e princípios universais de conteúdos valorativos que possam, por eles mesmos, indicar a maneira correta para se viver bem e ser feliz. Essas questões precisam ser discutidas com a ajuda de razões epistêmicas num mundo intersubjetivamente compartilhado.

Habermas, ao iniciar seu texto com uma questão retirada do romance de Stiller “O que o homem faz com o tempo de sua vida?” ou “ O que devo fazer com o tempo de minha vida?”, parece estar justamente chamando a atenção para o fato de que as respostas às indagações éticas precisam ser diferentes das que estávamos acostumado a oferecer, pois, quando se respondia tendo em vista o religioso, o caminho indicado era o da salvação, ao passo que, quando se buscava a filosofia, as respostas indicavam modelos de vida éticos (modelo digno de imitação para vida).

Habermas entende que a filosofia não se julga mais capaz de dar respostas definitivas às perguntas que dizem respeito à vida correta porque não há como assegurar a totalidade da natureza ou da história. As sociedades, com suas respectivas culturas, foram se formando a partir de modos de vida que lhes são próprios, e o tempo histórico-cultural não é igual para todos. Entre uma cultura e outra existe uma diferença temporal; por isso, pode-se considerar como uma extrema agressividade a “necessidade globalizada” que uma modernização acelerada impõe às nações. Essa imposição vai obrigando as pessoas a perderem sua identidade cultural, suas raízes, o que causa estragos profundos na autocompreensão dos sujeitos. Não há como designar modos de vida exemplares para que todos sigam uma vez que as culturas são muito diferentes. Por isso, a questão “O que devo fazer com o tempo de minha vida?” só pode ser respondida pelo sujeito que a faz, ou seja, cabe a cada um decidir sobre a conduta de sua vida.

Uma sociedade democrática deve primar pela liberdade a fim de que os indivíduos possam, por si mesmos, desenvolver uma autocompreensão ética pessoal da “vida boa”. Caberia-nos aqui perguntar: como é possível a autocompreensão ética? O projeto pessoal de vida precisa ser construído pela pessoa, que é responsável por si mesma, mas isso não significa que tal projeto ocorra independentemente dos contextos partilhados intersubjetivamente, ou seja, que a autocompreensão possa ser entendida como algo que o sujeito constrói no isolamento, na individualidade; ao contrário, a autocompreensão só é possível na relação interpessoal. É preciso que cada pessoa se compreenda, seja responsável consigo mesma, preocupe-se com a sua vida e comece a questionar sobre qual é a melhor coisa a fazer por ela mesma e pelos outros. As pessoas podem, em sua autocompreensão existencial, seguir modelos de vida da sua moral religiosa, de ensinamentos de cunho valorativos da tradição familiar ou da comunidade local. A filosofia, diz Habermas, “não pode mais intervir no debate desses poderes de fé, fundada em seu direito próprio” (2004, p.6). O que a filosofia pode fazer é analisar as propriedades formais dos processos de autocompreensão sem assumir uma posição em relação aos conteúdos. Nas palavras do autor podemos conferir:
 
Desse modo, ela desfaz a conexão, que é a única a garantir aos julgamentos morais a motivação para agir corretamente. As condições morais só condicionam efetivamente à vontade quando se encontram inseridas numa autocompreensão ética, que coloca a preocupação com o próprio bem-estar a serviço do interesse pela justiça (HABERMAS, 2004, p. 7).

As pessoas podem até argumentar muito bem sobre o que é certo, errado, justo, injusto; estar esclarecidas e convencidas da importância da moral religiosa para uma vida eticamente correta; as éticas deontológicas poderiam fundamentar de maneira convincente as normas e os julgamentos morais, mas isso tudo não garante a prática de tais julgamentos. O que, de fato, poderia garantir que as pessoas pratiquem a justiça, ajam corretamente, sejam honestas etc.? Não se pode, a partir do texto, inferir que Habermas pense que haja garantia, mas, citando Kierkegaard e argumentando com base na sua proposta filosófica, parece claro que Habermas indica possibilidades para o agir correto por meio de elementos que permitam justificativas racionais. Também se pode constatar que o autor assume uma consciência de mundo desacralizada, por isso pós-religiosa. Defende, ainda, uma postura cautelosa perante as questões que tratam da vida humana e da ação do ser humano no mundo.

Com base nessa reflexão podemos entender que não se trata de desconsiderar os saberes espontâneos ou religiosos das pessoas; ao contrário, é necessário considerar os saberes próprios do senso comum ou da vida prática das pessoas, porque esses saberes são orientadores da vida. A consciência religiosa das pessoas representa algo muito forte no sentido de motivação para a ação e, por isso, é preciso ter cautela também nessa situação. Um conhecimento novo que ignora o saber cotidiano dificulta nossa autocompreensão “enquanto seres capazes de ação e linguagem”.

2.2 Ser si mesmo e a autocompreensão ética 

Para compreender a reflexão de Habermas sobre o autocompreensão ética e a responsabilidade num contexto pós-metafísico e pós-religioso, é preciso entender por que ele traz as idéias de Kierkegaard sobre o tema da ética. Habermas considera que Kierkegaard foi o primeiro a responder à questão ética com um conceito pós-metafísico do “poder de ser si mesmo”.

Tem “poder de ser si mesmo” o indivíduo que é consciente de sua existência. Como isso acontece? O indivíduo apropria-se de seu passado histórico “efetivamente encontrado e concretamente rememorado” e, examinando a própria vida, é capaz de arrepender-se de seus erros e voltar a agir na sociedade sem o sentimento de vergonha; assim, passa a ver em si a pessoa que ele gostaria que os outros conhecessem. A avaliação crítica da história de vida permite a cada um constituir-se na pessoa que quer ser e conduzir a sua vida segundo o próprio governo. Concentrando-se em si próprio, o indivíduo vai se libertando da dependência de um ambiente dominador, podendo recuperar sua individualidade e sua liberdade. Nas palavras de Habermas:
 
Na dimensão social, tal pessoa é capaz de assumir a responsabilidade pelos próprios atos e contrair compromissos com seus semelhantes. Na dimensão temporal, a preocupação consigo mesmo cria uma consciência da historicidade de uma existência que se realiza nos horizontes do futuro e do passado, simultaneamente entrecortados (2004, p. 10).
 
Habermas considera essa compreensão ética de Kierkegaard pós-metafísica, porém não pós-religiosa, porque essa forma de existência ética está nas mãos do ser humano; é um esforço próprio de cada sujeito; não há tutela, mas um sentimento (motivação) de respeito para com Deus. Para Kierkegaard, segundo Habermas, o espírito humano só pode alcançar a compreensão correta de sua existência por meio da consciência do pecado. O ser humano tem um compromisso para com Deus, ao qual ele tudo deve; obstinado para ser si mesmo, o homem reconhece-se finito e dependente em relação a um Outro (Deus).

O problema da motivação parece fundamental para se entender como é possível o agir correto. Nenhuma norma moral tem o poder de fazer alguém ser eticamente correto; fundamento algum pode convencer alguém do porquê de ser efetivamente moral. Portanto, somente algo que possa mexer com a vontade, o desejo, a motivação do sujeito para ser ético é que vai favorecer uma autocompreensão ética.

Para Habermas, se a compreensão for correta, a relação da transcendência de ser si mesmo, ou de um poder transcendental, não está em Deus, do qual o homem tudo depende, mas no logos da linguagem. As pessoas encontram-se inseridas histórica e socialmente num mundo da vida estruturado pela comunicação, e é pela linguagem que o entendimento entre os sujeitos torna-se possível. As pessoas buscam entendimento de si mesmas e sobre o mundo numa relação compartilhada intersubjetivamente. “Nenhum participante individual pode controlar a estrutura ou mesmo o desenrolar dos processos de compreensão e de autocompreensão” (HABERMAS, 2004, p. 16). Os homens entendem-se uns com os outros porque são sujeitos capacitados para a linguagem e para a ação. A ação comunicativa efetiva-se e tem força porque há nela pretensões e justificativas que podem ser aceitas pelos envolvidos. É nesse sentido que se pode dizer que o processo de autocompreensão ética só pode ser adquirido num esforço comum. “A partir dessa perspectiva, aquilo que nosso ser si mesmo torna possível surge antes como um poder transubjetivo do que como um poder absoluto” (HABERMAS, 2004, p.16). Em outras palavras, merecemos respeito porque convivemos uns com os outros e devemos lealdade à comunidade ou tradição a que pertencemos, não porque somos racionais, temos um fim em si mesmo ou porque somos filhos de Deus.


2.3 Moderação pós-metafísica e ética das espécies 

Os modos do poder de ser si mesmo revelam forças normativas orientadoras da vida, pois, quando dizemos que é preciso examinar a vida, avaliar, reconhecer, projetar, justificar, compartilhar e se responsabilizar, estamos indicando procedimentos. Esse direcionamento que visa a projetos de vidas individuais e a formas de vida particulares acaba, de certa forma, dando conta daquilo que se chama “pluralismo”.

A autocompreensão ética não está presa a fundamentos porque é algo construído no tempo e no espaço de cada pessoa. Não é lei, nem representa um lugar seguro; tampouco indica certezas, é falível e vulnerável. Diz-se, então, que é uma ética pós-metafísica reveladora de racionalidades que permitem antecipar uma vida fracassada.

A moderação pós-metafísica vê-se limitada ao discutir questões que tratam da ética da espécie e, “tão logo a autocompreensão ética de sujeitos capacitados para linguagem e para a ação entra totalmente em jogo, a filosofia não pode mais se furtar a tomar posição a respeito de questões de conteúdo” (HABERMAS, 2004, p.17). Habermas chama a atenção para o fato de que as conquistas das ciências afetam a autocompreensão das pessoas como seres que agem de forma responsável. As novas tecnologias e pesquisas científicas obrigam a sociedade a aceitar um discurso público do como se deve compreender o correto em relação à vida cultural, em outras palavras, a ciência decide o que é culturalmente uma vida boa.

Os avanços da biotecnologia, na sua empreitada de intervenção no genoma humano, podem representar, caso não haja moderação, uma ameaça à identidade da espécie humana, uma vez que a pessoa modificada geneticamente está heterodeterminada5. A intervenção na formação da identidade de alguém é unilateral e irreversível, o que, para Habermas, representa algo muito sério. Como alguém pode ser co-autor da vida alheia? Qual será a reação da futura pessoa ao se dar conta de que a sua biografia não lhe pertence, ou melhor, de que não pode se considerar como autora única de sua própria história?

No posfácio da obra O futuro da natureza humana, Habermas, tentando responder a objeções, acaba complementando o seu primeiro texto “Moderação justificada: existem respostas pós-metafísicas para questão sobre a vida correta?” com questões muito interessantes e, de certa forma, polêmicas sobre a aceitação de uma prática eugênica6. Pergunta: “(...) quais os efeitos do direito dos pais de tomar uma decisão eugênica sobre os filhos geneticamente modificados? Será que estas conseqüências eventualmente não afetam o bem-estar objetivamente protegido da futura criança” (2004,p. 106). “Será que os pais que só querem o melhor para seus filhos têm, realmente, condições de prever as circunstâncias – e o efeito conjunto delas – em que, por exemplo, uma memória brilhante ou uma grande inteligência (...) serão benéficas?” (HABERMAS, 2004, p. 116). Essas vantagens que a intervenção genética pode oferecer serão mesmo vantagens? No entendimento de Habermas, ter uma boa memória pode ser uma bênção, porém, dependendo da situação, não se pode esquecer que pode ser uma maldição. Mentes brilhantes, superdotadas, podem vir a ser, numa sociedade que supervaloriza a concorrência, mentes perversas. Como fica a idéia de igualdade de condições, de respeito e solidariedade entre as pessoas se alguns poderão estar “muito” à frente de outros? Essas pessoas desenvolverão em si o sentimento de obrigação e de responsabilidade pelos seus atos? No entender de Habermas:

 
Os sujeitos que julgam e agem moralmente supõem que entre si haja uma capacidade de imputação; eles atribuem a si mesmos e aos outros a capacidade de elevarem uma vida autônoma e esperam uns dos outros igual solidariedade e respeito (HABERMAS, 2004, p. 110).

A natureza orgânica, que no início da vida é resultado de contingência, passa a ser material de manipulação com intenção objetiva. Os cientistas, os geneticistas e os pais conseguirão prever objetivamente a relação que esse organismo modificado terá com o meio ambiente durante toda a sua história de vida? As pesquisas genéticas já mostraram que as relações fenotípicas são resultado da interação do genoma com o meio; também se sabe que a fenocópia7 já representa uma alteração no genoma, ou seja, o próprio organismo vai produzindo constantemente sua adaptação.

A ética, em nosso século, sem dúvida, passa por um momento sui generis de toda sua história, porque precisa ser repensada à luz deste novo tempo, que não é o tempo de todos os povos. Algo muito diferente está sendo trazido para a discussão pública porque, querendo ou não, o planeta inteiro está e continuará sendo atingido. Até então, a constituição genética dos recém-nascidos escapava de toda programação e da manipulação intencional feita por terceiros. O que se coloca hoje é essa possibilidade de terceiros interferirem no processo contingente de fecundação e, com isso, de modificarem a natureza da espécie humana. Entre o que se pretende manipular está o elemento da contingência humana – contingência no sentido de que algo poderia ser, mas também poderia não ser -, e o que se torna indisponível com a manipulação genética é justamente a contingência.

Uma pessoa determinada geneticamente não terá a seu favor o elemento contingente porque sofreu uma influência específica que terá conseqüências no curso de sua vida. Habermas compara essa situação de intervenção que inclui a capacidade cognitiva aos treinamentos forçados precocemente, entendendo que ambos são irreversíveis. Não ter acesso ao elemento da contingência significa não poder contar com o poder de ser si mesmo, uma vez que a manipulação genética poderá interferir nos fundamentos somáticos da autocompreensão espontânea e da liberdade ética da pessoa. A pessoa modificada geneticamente talvez não se responsabilize pelas conseqüências indesejáveis causadas pela situação à qual foi exposta (ser produto genético) e queira pedir satisfação aos seus pais pelo fato de não poder ter nas mãos sua própria história de vida. “Certamente, a pessoa em crescimento”, diz Habermas, “pode submeter sua história pessoal a uma avaliação crítica e a uma revisão retrospectiva. Nossa biografia compõe-se de uma matéria da qual podemos nos ‘apropriar’ e pela qual podemos, no sentido de Kierkegaard, nos responsabilizar” (2004, p.19).

III - Responsabilidade como postura moderada no pensamento pós-metafísico 

No presente texto procurou-se apenas realizar um exercício reflexivo na tentativa de buscar discernimentos, de provocar a tematização sobre a decodificação do genoma e de “exigir” da comunidade científica um certo “freio” no seu entusiasmo pela ficção científica. “Tenho a impressão de que ainda não refletimos suficientemente a fundo sobre essa questão. Sobretudo no que se refere à relação entre a indisponibilidade de um início contingente da história de vida e a liberdade para dar uma análise mais profunda” (HABERMAS, 2004, p.103).

É necessário, nesse sentido, buscar uma melhor compreensão desse “tempo” para podermos agir de maneira mais consciente e responsável em relação às conquistas científicas. Não se trata, como pensa Habermas, de criticar os avanços do conhecimento científico, mas de querer saber se, efetivamente, essas conquistas afetam a nossa autocompreesão como seres responsáveis.

Se o que resta é a responsabilidade, então é preciso garantir a liberdade e, ao mesmo tempo, problematizar a compreensão que temos dela. Liberdade, direito, poder e responsabilidade precisam estar sempre em debate, pois, quanto maior for conhecimento, maior será responsabilidade. Por isso, Habermas, ao tratar das novas tecnologias, afirma: “Os filósofos não tem mais nenhum bom motivo para abandonar esse objeto de discussão dos biólogos e dos engenheiros (...)” (2004, p. 22).

Quando dizemos que o que resta é a responsabilidade, estamos assumindo uma visão pós-metafísica e pós-religiosa do mundo. Pós-religiosa, porque não vemos a possibilidade de recorrer à fé religiosa ou às leis divinas para exigir das pessoas, poderosas ou não, que não façam bobagens, que sejam solidárias, que cuidem do planeta e que protejam a vida. Pós-metafísica, por estarmos cientes de que ser portador de uma razão esclarecida da qual podemos fazer uso não é suficiente para dizer que, necessariamente, a humanidade caminhará para a felicidade. A responsabilidade requer justificação racional, sensibilidade estética, conhecimento amplo, comunicação e amor – amor que representa o cuidado com a vida e que pode ser entendido como o sentimento de solidariedade, esta como garantia de sobrevivência das espécies. Pessoas não são coisas, objetos de pesquisa disponível à manipulação de terceiros.

A humanidade tem o dever de cuidar das vidas que ainda habitam este planeta. Seria muito interessante colocar a tecnologia a serviço da qualidade de vida, mas não com a preocupação de aperfeiçoar a vida de quem ainda não nasceu, e, sim, daqueles organismos que insistem em viver apesar de todas as agressões. Os genomas a cada instante se modificam para se adaptar e vencer as doenças, a miséria, a violência. Os cientistas querem evitar doenças no futuro de uma pessoa manipulando sua herança genética, contudo parecem esquecer que algumas doenças, ou a maioria delas, provêm da falta de cuidado com a vida. Se o homem aprendesse a cuidar da vida do planeta, muitas doenças desapareceriam e outras nem existiriam; talvez, ainda, a sociedade nem precisasse de células-tronco para criação de órgãos, porque cada vez menos nasceriam pessoas com os órgãos comprometidos, e a vida seria de qualidade.

Essas palavras soam como idéias românticas numa sociedade que se orienta por uma racionalidade instrumental em prol do valor econômico. Por isso, há a necessidade de serem colocadas em debate público as questões que interferem profundamente na vida humana e de exigir responsabilidade daqueles que detêm o poder. Além disso, no mundo da vida é preciso investir no poder ser si mesmo. Cada participante deve poder se apropriar da sua história de vida e examiná-la constantemente de um modo reflexivo e, na comunidade, discutir essas questões ou conteúdos novos que modificam a autocompreensão dos homens como seres humanos. Num contexto plural com inúmeras diferenças, é preciso poder esperar dos estudiosos, dos intelectuais, dos cientistas e dos governos uma postura de abertura, de flexibilidade, mas, também, de moderação e de responsabilidade.


Referências bibliográficas 

FAVERO, Altair A. Os paradigmas filosóficos e o problema do método, in FAVERO, Altair; TROMBETTA, Gerson Luís; RAUBER, Jaime José (Org.). Filosofia e racionalidade. Passo Fundo: UPF, 2002.
HABERMAS. Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
____.Moderação justificada. Existem respostas pós-metafísicas para a questão da vida correta? In: HABERMAS. Jürgen. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004a.
____. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004b.
____. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HORKHEIMER, Max, Theodor W. Adorno. Dialética do esclarecimento.Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
LOPARIC. Zeljko. Sobre a responsabilidade. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.

Notas de fim
 
1 Assessora do Núcleo de Educação para o Pensar (NUEP), mestre em Filosofia da Educação pela UFRGS.
2 “(...) a metafísica, conhecimento especulativo da razão completamente à parte e que se eleva inteiramente acima das lições da experiência, mediante simples conceitos (não como a matemática, aplicando os conceitos à intuição), devendo, portanto, a razão ser discípula de si própria (...)” (KANT, 1994, p.16).
De maneira geral, metafísica significa o “estudo do problema do conhecimento, ou das condições e limites do conhecimento. Cada ciência estuda um fragmento do real, nenhuma estuda o próprio estudo: a metafísica tem por objeto a própria ciência enquanto conhece” (LALANDE, 1993, p.671).
3 Zeljko Loparic utiliza essa expressão em seu livro Sobre a responsabilidade, dizendo que é a ratio sufficiens, o fundamento próprio e unicamente suficiente; só existe aquilo que pode ser computável, calculado. “Tudo é posto sob o controle da única grande potencia existente: o princípio de explicitação da razão suficiente” (2003, p. 12).
4 Em Dialética do esclarecimento Adorno e Horkheimer sobre isso afirmam: “O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba. Ela é usada como instrumento universal servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos” (1985, p. 42). E ainda esclarecem: “A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie” (1985, p. 43).
5 A heterodeterminação não se refere à situação de aceitação ou discriminação que a futura pessoa poderá sofrer em seu grupo social porque seu patrimônio genético não foi obra da natureza e, sim, dos pais e dos cientistas. Não se trata também da suposição de que alguém, por ter sofrido intervenção genética para o aperfeiçoamento, venha a se sentir subjetivamente determinado por outra pessoa. Heterodeterminação refere-se a uma autodepreciação induzida que a futura pessoa sofrerá antes do nascimento a um dano de sua autocompreensão moral (Habermas, 2004, p. 110 – 112).
6 Habermas denomina “eugenia liberal” ao direito dos pais de interferirem na formação genética do embrião.
7 Por f enocópia entende-se a substituição de uma formação exógena (em virtude da ação do meio) por uma formação endógena (em razão da atividade do organismo).


Fonte:Revista Pragmateia Filosófica - Núcleo de Educação para o Pensar - NUEP - Passo Fundo - Ano 1 - Nº 01 - Out. de 2007
Imagens: Google

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