domingo, 16 de maio de 2010

Abraçando estátuas cobertas de neve no inverno, por José Fernandes P. Júnior


ABRAÇANDO ESTÁTUAS COBERTAS DE NEVE NO INVERNO[1]
Da adversidade à resiliência





por José Fernandes P. Júnior[2]


Depois que eu morrer, prefiro que as pessoas se perguntem por que eu não tenho um monumento e não por que o tenho.
Catão, o velho (234-149 a.C.)


           
            Parecerá, à primeira vista, estranho o título que encabeça esse trabalho. É possível que alguns atiçados e movidos pela curiosidade de saber do que se trata, ousem prosseguir em lê-lo. O subtítulo, porém, de antemão, antecipa ou deixa pistas do que nos propomos a tratar. Resiliência é o termo usado para evidenciar situações em que o ser humano tomado pelas adversidades é capaz de sair de todas elas triunfantemente. Coloquialmente, chamamos isso de “dar a volta por cima” ou de encarar os reveses dando risadas do mau tempo. Concernente a isso, muitas são as lições que os filósofos nos aponta.

            Sem dúvida, a História da Filosofia contribuiu em muito com exemplos magnânimos de soerguimento enfrentados pelos filósofos. Mencionaremos, doravante, alguns desses casos emblemáticos.

Diógenes, o zombador social.

            Diógenes de Sinope, o cínico (c.400 – c.325 a.C.), viveu uma vida de total desdém às convenções sociais de seu tempo. Algumas peculiaridades de sua vida são descritas por seu homônimo Diógenes Laércio em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Este nos conta de Diógenes que seu traje era uma túnica, um alforje e um bastão. Era extremamente pobre e dependente das esmolas e benemerência de seus compatriotas. “Em certa ocasião – diz-nos Laércio – Diógenes escreveu a alguém pedindo-lhe para arranjar uma pequena casa; em face da demora dessa pessoa ele passou a morar num tonel existente no Metrôon, de acordo com suas próprias afirmações em suas cartas.”[3] Conta, ainda, Teôfrastos no seu Megárico que “certa vez Diógenes, vendo um rato correr de um lado para o outro, sem destino, sem procurar um lugar para dormir, sem medo das trevas e não querendo nada do que se considera desejável, descobriu um remédio para suas dificuldades.”[4]

Sem dúvida, Diógenes era um homem de se admirar por suas tiradas e estilo de vida. Não obstante, o povo de Atenas o amava. “Tanto era assim que quando um rapaz lhe quebrou o tonel os atenienses surraram o rapaz e deram outro tonel a Diógenes.”[5] Com efeito, o próprio filósofo “dizia que todas as maldições da tragédia haviam caído sobre ele e de qualquer modo era um homem ‘sem cidade, sem lar, banido da pátria, mendigo, errante, na busca diuturna de um pedaço de pão.”[6]

            Ademais, Laércio diz que o cínico Diógenes “no verão rolava sobre a areia quente, enquanto no inverno abraçava as estátuas cobertas de neve querendo por todos os meios acostumar-se às dificuldades.”[7] Em meio a um estilo de vida que parecerá ao homem moderno uma desgraça, foi Diógenes um homem livre e admirado no seu tempo.

            Em suma, viveu uma vida de disciplina e aversão aos prazeres mundanos. Em seu tempo foi um zombador social; viveu isolado e resignadamente sem casa e dinheiro, portanto pobre e sem teto. Seus bens mais valiosos eram o tonel onde morava, um alforje e sua lanterna, usada para “procurar um homem justo no mundo”. Sabe-se que quando Alexandre, o grande, ao se encontrar[8] com Diógenes na ocasião de seu banho de sol, teria dito o imperador ao filósofo: “Não sabes quem sou?” Ao ser ignorado, Alexandre emendou: “Sou Alexandre, o grande. Pede-me, agora, o que queres”. Diógenes respondeu: “Devolva o meu sol”. Por fim murmurou o imperador: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”.

Zenão[9], o estóico.

Outro filósofo que nos apresenta um modelo de superação às adversidades é Zenão de Cicio (334-264 a.C.). Deste filósofo registramos a seguinte lição de ignorância à adversidade que o levou a ter nome póstero na História da Filosofia: Narra-nos Diógenes Laércio quando foi a Zenão anunciado o naufrágio da nau na qual tudo que possuía fora tragado pelo mar, teria dito: “a fortuna quer que eu filosofe sem nenhum embaraço”. Depois do revés, Zenão, agora sem a posse de suas economias, fundou o Estoicismo (gr.: Stoa), corrente filosófica que tinha como fórmula “suporta e renuncia” (sustine et abstine).

            As intempéries da vida não o atingia. Assim, dele se ouvia dizer: “Nem o gélido inverno, nem a chuva incessante, nem a chama do sol, nem a doença atroz consegue dominá-lo, nem os inúmeros folguedos populares; infatigavelmente ele se dedica noite e dia a seus estudos.”[10] Nem mesmo os poetas cômicos percebiam que suas sátiras tornavam-se um elogio, Filêmon dizia: “A filosofia desse homem é de fato original; ele ensina a ter fome e consegue discípulos. Apenas um pão, um figo como sobremesa, e água para beber.”[11]

Por fim, Diógenes Laércio registra que Antípatros de Sídon compôs para Zenão o seguinte epigrama: “Aqui jaz o célebre Zênon, caro a Cítion, que escalou agora o Ôlimpos [...] sem se cansar dos trabalhos de Heraclés[12], porém descobriu o caminho que leva as estrelas – apenas a moderação”[13]

SÓCRATES, o mártir imortal da filosofia.

            O que seria da Filosofia sem Sócrates? Aliás, ele morreu por ela, como Cristo morreu por nós. Em janeiro de 399 a.C., quando contava com setenta anos vividos, adentrou ao tribunal para submeter-se a um julgamento que daria desfecho a sua vida. Pesava sobre ele a acusação de violar e profanar a religião do Estado e corromper jovens atenienses. Kierkegaard afirma que “a acusação contra Sócrates é um documento histórico”[14]

            Condenado por uma apertada maioria de 280 votos contra 220, foi obrigado a tomar cicuta, o que levaria a morte. Entretanto, Diorgenes Laércio levanta a maioria de 80 votos adicionais.

            Certamente, ao que se sabe Sócrates não era um filósofo que vivia em uma torre de marfim contemplando à vida e muito menos – para continuar na metáfora – era uma coruja na gaiola. A ágora de Atenas era o seu púlpito, sua tribuna. Constantemente, lá estava a dialogar, com todo tipo de indivíduo. Raph W. Emerson conta-nos que era um “homem de origem humilde, mas bastante honesto, tinha a história mais vulgar e era de uma simplicidade pessoal assaz notável para excitar a verve dos outros [...] Era um indivíduo de sangue frio, juntando ao seu humor um temperamento perfeito e um conhecimento dos homens, que, qualquer que fosse o interlocutor, expunha o indivíduo a uma derrota certa, fosse qual fosse o debate e, nos debates, deleitava-se imoderadamente”. [15]

            Outrossim, era paupérrimo. Sua indumentária era a mesma, inverno e verão; andava sempre descalço; alimentava-se de azeitonas e de pão e água, salvo quando era convidado para algum banquete pelos amigos. De vez em quando se empenhava no ofício de escultor, fabricava algumas estátuas que lhe rendiam algumas moedas. Sua fisionomia comportava traços que lhe fugiam à beleza: na verdade dispunha de um rosto rechonchudo e feio, mas, quando começava a dialogar, todos esqueciam sua aparência, magnetizados por sua sabedoria.

            Este jeito de ser despertou opositores e conspiradores contra Sócrates. Ele era irrefutável e rápido nas réplicas. Por exemplo, quando ouviu dizer que alguém falava mal dele, comentou: “É natural, pois essa pessoa nunca aprendeu a falar bem.”[16] E ainda: “Quando Antístenes moveu o seu manto de forma a deixar visível um rasgão no mesmo, o filósofo disse: “Vejo tua vaidade através do manto”[17].

            A acusação que se irrompeu contra Sócrates é assim documentada por Favorinos[18] em sua obra Metrôon: “Esta acusação e declaração é jurada por Mêletos, filho de Mêletos de Pitos, contra Sócrates, filho de Sofroniscos de Alopece: Sócrates é culpado de recusar-se a reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado, e de introduzir divindades novas, e é também culpado de corromper a juventude. Pena pedida: a morte”.

            Lísias, o filósofo, atuou como advogado de defesa no julgamento, mas Sócrates, assim declarou[19]: “Um belo discurso. Lísias, mas não adequado ao meu caso”; mas Lísias assim retrucou: “Se se trata de um belo discurso, como pode faltar-lhe adequação ao teu caso?” Sócrates replicou: “Ora: belos mantos e calçados não me seriam também inadequados?”

            Assim Sócrates, condenado, deixa de estar entre os atenienses, que pouco a pouco se arrependeram, vindo com isso, numa tentativa de reparação de tamanha injustiça, a construírem uma estátua de bronze, obra de Lísipos, e que fora erigida no recinto destinado às procissões. Aos setenta anos enfrenta a morte sem nenhuma temeridade. Um gole de cicuta não foi o suficiente para aniquilar o filósofo; por isso a imortalidade veste tão bem Sócrates, assim como é pertinente a indagação que fizemos a seu respeito logo de início.

CONCLUSÃO

            Poderíamos citar aqui, ainda, nomes como o de Sêneca, Schopenhauer, Kierkegaard etc, mas por enquanto, fiquemos por aqui. Mas não sem antes de trazer os versos resilientes do poeta indiano Tagore para este desfecho:

Vivi meus três caminhos na terra.
Purgatório. Inferno. Céu.
Tudo de acordo com os meus projetos,
Minhas atitudes,
Procurando não cair nos mesmos erros.
Agora – vago e espero
Entre tropeços e flagelos
O ressurgir da verdade.

Que a mensagem e a vida de Diógenes, Zenão e Sócrates sejam um indício de esperança, em meio ao gélido frio da adversidade.


BIBLIOGRAFIA

EMERSON, Ralph Waldo. Homens representativos. Rio de Janeiro: Ediouro.

KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates. Trad. Álvaro Luis M. Valls. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 1991

LAÊRTIOS, Diógenes. Vida e doutrina dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. 2 ed. Brasília: Editora UNB, 2008




[1] Publicado pela revista Filosofia Conhecimento Prático, edição n° 23
[2] Professor de Filosofia na rede pública do DF. Bacharelando em Direito. Autor de vários artigos nas áreas da Filosofia e do Direito.
[3] Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, p. 158
[4] Apud. LAÉRCIO, Diógenes. Op cit. loc.cit.
[5] LAÉRCIO, Diógenes. Ibidem, p. 163
[6] Idem, ibidem, p. 161
[7] Idem, p. 158
[8] Diógenes Laércio dá detalhes desse encontro e, ainda, conta-nos: “Em certa ocasião Alexandre, o Grande, ficou à sua frente e perguntou-lhe: “Não me temes?” Sua resposta foi: “Que és tu ? Um bem ou um mal?” Alexandre respondeu: “Um bem.” Então Diógenes concluiu: “E quem teme um bem?”
[9] Alguns autores grafam como Zênon
[10] LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 187
[11] Idem, ibidem, loc. cit.
[12] Hércules para os romanos
[13] Apud LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 188
[14] O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates, p. 134
[15] Homens representativos, p. 44/45
[16] Apud LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 56
[17] Idem, ibidem, loc cit.
[18] Apud. LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 57
[19] LAÉRCIO, Diógenes. Op. cit., p. 57/58

Agradeço ao estimado amigo, Professor e Filósofo José Fernandes P. Júnior, pela oportunidade de públicar mais um dos seus excelentes artigos.

imagem em: omundodacel.blogspot.com

Um comentário:

JPM disse...

Olá,
Tive contato com o teu blog no da Sociologia.
Agora vim conhecê-lo e seguí-lo.
Desde já és convidada a visitar o meu.
Bela matéria!
Permita a pergunta: tens raízes no RS?
Saúde e felicidade.
João Pedro Metz

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