sábado, 1 de maio de 2010

O julgamento de Sócrates, por José Fernandes P.Júnior

O JULGAMENTO DE SÓCRATES[1]

por José Fernandes P.Júnior[2]

Conhecer a vida de Sócrates é recuperar a grandeza da condição humana – uma grandeza que veio se perdendo ao longo dos séculos, na prevalência do jogo opressão-dominação

Grandes filósofos: biografia e obras, p. 17

A ACUSAÇÃO

Aos setenta anos de idade Sócrates subiu aos degraus de um tribunal. Como era de pasmar aquela cena! O motivo que o obrigava era o de como réu fazer sua própria defesa num processo acusatório movido por Meleto, Anito e Licon. Segundo Diógenes Laécio foi a seguinte a acusação apresentada em janeiro de 399 a. C. contra Sócrates:

“A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, Piteo, contra Sócrates, filho de Sofronisco, do demo da Alopécia. Sócrates é culpado de não reconhecer os deuses que o estado reconhece, e de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude. Pena, a morte”.[3] Kierkegaard afirma que “a acusação contra Sócrates é um documento histórico”[4].

Presume-se que a causa disso teria sido a curiosidade de Querefonte, quando um dia, em Delfos, ousou fazer esta pergunta ao oráculo: há alguém mais sábio do que Sócrates? A resposta foi a de que não existia ninguém[5]. No entanto a leitura de Platão remete-nos a uma causa política.

O RÉU E A DEFESA

Na República, por exemplo, encontramos um Sócrates extremamente avesso aos governos democráticos. Mesmo assim, Platão é fiel à leitura dos autos e registra dessa forma a acusação de Meleto: “Sócrates é réu de corrupção da juventude, de não reconhecer os deuses reconhecidos pela cidade e também de praticar cultos religiosos novos e diversos”[6].

Mesmo com brilhante defesa que fez de si mesmo contra tais acusações, não conseguiu evitar o desejo permeado pelo ódio de seus compatriotas acusadores. Sócrates fora condenado á pena capital, conforme aspirava seus caluniadores. Na Apologia, Platão registra como Sócrates foi receptivo à pena, devolvendo de forma justa – como um justo juiz – seu parecer em relação aos seus acusadores: “[...] fugir à morte não é difícil, bem mais dificultoso é fugir à maldade, mais célere que a morte é a malvadez. Ora, eu, que sou tardo e velho [...] vou pagar meu débito de morte e estes irão pagar seu débito de iniqüidade e de infâmia, condenados pela verdade.”[7] – tal foi a sentença socrática contra seus acusadores.

As acusações atribuídas ao filósofo das ruas foram suficientes para justificadamente eliminar sua vida? Ou na verdade cometera-se uma injustiça histórica, tal qual se fizera a Jesus Cristo? Certamente, ao que se sabe Sócrates não era um filósofo que vivia em uma torre de marfim contemplando à vida e muito menos – para continuar na metáfora – não era uma coruja na gaiola. A ágora de Atenas era o seu púlpito, sua tribuna. Constantemente, lá estava a dialogar, com todo tipo de indivíduo. Raph W. Emerson conta-nos que era um “homem de origem humilde, mas bastante honesto, tinha a história mais vulgar e era de uma simplicidade pessoal assaz notável para excitar a verve dos outros [...] Era um indivíduo de sangue frio, juntando ao seu humor um temperamento perfeito e um conhecimento dos homens, que, qualquer que fosse o interlocutor, expunha o indivíduo a uma derrota certa, fosse qual fosse o debate e, nos debates, deleitava-se imoderadamente”[8]. Além disso, era paupérrimo. Sua indumentária era a mesma, inverno e verão; andava sempre descalço; alimentava-se de azeitonas e de pão e água, salvo quando era convidado para algum banquete pelos amigos. De vez em quando se empenhava no ofício de escultor, fabricava algumas estátuas que lhe rendiam algumas moedas. Sua fisionomia comportava traços que lhe fugiam à beleza: na verdade dispunha de um rosto rechonchudo e feio, mas, quando começava a dialogar, todos esqueciam sua aparência, magnetizados por sua sabedoria.

O SENSO DE DEVER DIANTE DA SENTENÇA

Sócrates era irrefutável. Era um feiticeiro da palavra. Todos se encantavam com a arte de sua maiêutica. Seus antagonistas encurralavam-se diante de sua argumentação. Os sofistas provaram da arte do discurso socrático e estes sentiram sua ironia e lógica irreplicáveis. Talvez tenha sido justamente esse jeito de ser que causou a perturbação do Estado, a ponto de gerar um ciúme terrível, capaz de condenar injustamente um homem de bem [spoudaios]. Sócrates representava a Filosofia que perturbava a ordem vigente, por isso pagou com sua própria vida.

Abro um parêntese aqui e peço ao amigo leitor uma devida licença poética para reconstituir o cumprimento da pena que os juízes infligiram ao nosso réu. Pois bem. Emerson diz que “Sócrates entrou na prisão, e tirou toda a ignomínia a esse lugar, que não podia ser uma prisão enquanto ali ele estivesse”[9]. Críton, um dos seus discípulos, suborna o carcereiro e propõe uma fuga, no entanto Sócrates rechaça o plano do discípulo: “tua solicitude teria sido muito louvável, meu querido Críton, se fosse conforme aos ditames da justiça [...]”[10]. Que ética! Que senso de dever! Frustrada a tentativa de Críton, restou ao discípulo consolar-se com a iminente despedida do seu mestre.

No Fédon (ou da imortalidade da alma), Platão – embora não estivesse presente[11] – conta-nos como foi as últimas horas do condenado. Naquela masmorra, Sócrates jaz em correntes à espera da execução penal. Chegada a hora, Sócrates recebe a visita de sua esposa Xantipa, mas esta pôs-se a lamentar; em vista disso Sócrates pede a Críton que a levem para casa, assim foi feito.

UM GOLE PARA A IMORTALIDADE

Em seguida, isto é, depois de alguns diálogos com os seus epígonos, recebe a taça envenenada “com a maior tranquilidade, sem nenhuma emoção, sem alterar sua expressão, sem mudar de cor”[12]; depois disso, “levou a taça aos lábios e esgotou-a, sem o menor gesto de dificuldade e repugnância”[13]. Ao cumprir o ritual, a serenidade de Sócrates contrastava com aflição de seus discípulos. No entanto, pede a todos coragem e tranquilidade: “Animai-vos – disse ele aos seus amigos que se mostravam tristes – e dizei que estão enterrando apenas meu corpo”[14]. Aos poucos os sintomas do efeito da cicuta foi tomando de conta da vida do réu injustiçado. Sócrates caminhava de um lado para o outro, até um certo tempo, mas logo se recolheu, quando começou a sentir que seus pés e pernas já não lhe respondia. Todo o seu corpo foi ficando dormente, rijo e frio. A morte se aproxima. Descobrindo o rosto, que havia coberto, dirigiu suas últimas palavras a Críton: “Devemos um galo a Asclépios, paga esta minha dívida, não te esqueças”[15]. Com esta frase aparentemente simplória, Sócrates deixa-nos uma última lição, qual seja, que a honestidade deve ser perseguida até o último suspiro de nossa vida. Memoráveis e dignas de registro são as palavras de Críton, que Platão sabiamente utiliza como desfecho do Fédon: “Do homem [Sócrates] podemos dizer que foi o melhor de todos que conhecemos em nossa época, o mais sábio e ainda o mais justo”.[16]

Com muita propriedade, afirmou Ralph W. Emerson: “a celebridade dessa prisão, a fama dos discursos que foram proferidos, e a taça de cicuta, são uma das mais preciosas passagens da história do mundo”[17].

“Será, então, que o Estado ateniense, com a condenação de Sócrates, cometeu uma injustiça que grita aos céus, será que o mais certo que podemos fazer é voluntariamente nos unirmos à multidão de sábias carpideiras e de filantropos pobres de espíritos e ricos em lágrimas, cujos choros e lamentações por um homem tão bom, tão honesto, modelo de virtude e cosmopolita, vítima da inveja mais sórdida, cujos choros e lamentações, como disse, repercutem ainda através dos séculos?” – indaga-nos Kierkegaard[18]. Decerto, o Estado democrático ateniense, representado pelos acusadores Meleto, Anito e Licon, decidiu o destino de Sócrates; assim, como corruptor de jovens e profanador dos costumes religiosos, “seria melhor – disse Anito e Meleto – que Sócrates morresse”[19]. Enfim o mataram. Ou melhor, o transformaram num mártir – o primeiro da Filosofia.

O DESFECHO: A Hora da partida

Diante da sentença prolatada pelos juízes que, no entanto, desejavam absolvê-lo, “recusou-se a pedir clemência à multidão que ele sempre desprezava. Ela detinha poderes para perdoá-lo; ele desdenhou de fazer o apelo”[20]. Não por acaso, Platão e Aristóteles demonstram uma ojeriza à Democracia. A multidão costuma cometer irremediáveis erros: Condenai a Sócrates! Soltai a Barrabás e crucificai o Nazareno! – eis as vozes inebriadas pelo simples desejo de manifestar a vontade de poder.

Cumprir a sentença de morte, aí está o destino do bom homem Sócrates, que o aceita como um verdadeiro estóico aceitaria. Aos 70 anos de idade, cansado e sem nenhum rancor no coração, resignadamente agasalha sua sorte: “já está muito claro pra mim, que morrer agora e livrar-me de todas as fadigas era a melhor coisa [...], e de minha parte não levo nenhum rancor contra aqueles que me condenaram e os meus acusadores”.[21] Esta postura serena e paradoxal frente à iminência da morte é, ainda, uma lição de como o homem de bem a nada deve temer, assim admoesta aos juízes que “nenhum mal pode atingir o homem reto nem em vida e nem depois de morto e tudo que lhe acontece é oriundo da benevolência dos deuses”[22]. É assim que Sócrates caminha para o destino final de sua vida.

Depois da conversa com os magistrados, ainda no fórum, Sócrates profere algumas palavras que se tornaram imortais, tal como toda sua vida; sirvo-me delas para arrematar e evidenciar ainda mais o réu que foi, injustamente, condenado à morte:

“É chegada a hora de partir: eu para morte e vós para vida. Quem de nós se encaminha para o melhor destino, todos nós ignoramos, exceto o deus”[23]

BIBLIOGRAFIA

EMERSON, Ralph Waldo. Homens representativos. Rio de Janeiro: Ediouro.

KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates. Trad. Álvaro Luis M. Valls. Petrópolis-RJ: Ed. Vozes, 1991

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1996 – Col. Os Pensadores.

_______. Críton ou do dever. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1996 – Col. Os Pensadores.

_______. Fédon ou da alma. Rio de Janeiro: Ed. Nova Cultural, 1996 – Col. Os Pensadores.


[1] Este artigo foi publicado na Revista Prática Jurídica, ed. 90, Editora Consulex.

[2] Graduado em Filosofia – FAFIC/PB; Bacharelando em Direito e Professor de Filosofia na rede pública do DF; autor de vários artigos nas áreas da Filosofia e do Direito

[3] In: PLATÃO. Introdução à apologia de Sócrates, p. 57

[4] O Conceito de ironia – constantemente referido a Sócrates, p. 134

[5] Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. p. 69

[6] Idem. Op. cit., p. 73

[7] Idem, p. 94

[8] Homens representativos, p. 44/45

[9] Op. cit., p. 46

[10] PLATÃO. Críton ou do dever, p. 104

[11] Diz Fédon: “Platão não estava, parece-me que estava doente”: Idem, Op. Cit., p. 119

[12] PLATÃO. Op. Cit, p. 189

[13] Idem, Ibidem, p. 190

[14] DURANT, Will. A História da filosofia, p. 36

[15] PLATÃO. Fédon ou do dever, p.191

[16] Idem, p 191

[17] Op. Cit, p.46

[18] Op. Cit., p. 134

[19] DURANT, Will. Op. Cit., p. 36

[20] Idem, p 36

[21] Cf. PLATÃO. Op. Cit., p. 97

[22] Idem, Loc cit.

[23] Cf. Idem, Loc cit.

Fonte: Artigo postado com autorização do autor: Filósofo e professor José Fernandes P.Júnior .

Um comentário:

Valdeir Almeida disse...

Para mim, Sócrates foi (é) um dos mais brilhantes filósofos da história. Sua sabedoria ecoa ainda hoje.

Abraços, Marise.

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