“O voto é individual e secreto. A escolha é sua. Pense bem, avalie os candidatos e exerça seu direito”. Estas são as frases às quais se agarra o senso comum e também o senso institucional, como a última tábua da salvação da consciência de cada indivíduo. Os motivos pelos quais nossa consciência afunda são bem conhecidos – ou, pelo menos, por demais sentidos. O que espanta é que, em circunstâncias que se revestem da mais pura individualidade, as fraseologias como a que abrem este artigo escondam um mundo cuja força social atropela e sufoca o indivíduo.
Quem ainda acredita que há um poder de escolha individual – ou que os instrumentos democráticos são tangidos pelos indivíduos? E por que falta a coragem de enfrentar este monstruoso moinho de vento? Por outro lado, ao que corresponde então, efetivamente, o regime democrático de Estado de Direito, onde as eleições livres representam pilar fundamental?
O presidente não será ou deixará de ser eleito por causa de um voto a mais ou a menos. Ou seja, meu voto não faz diferença – embora o discurso da moralidade social não o admita. Ao contrário do que afirma o pseudo-individualismo, o voto é social, e não individual. O voto só cumpre sua função social quando inserido numa ação coletiva. Nessa perspectiva, são as massas que sustentam o Estado Democrático de Direito, e não os indivíduos. Assim, o voto será tanto mais consciente e efetivo quanto mais aglutinador de forças coletivas, se constituindo num vetor das potências sociais. Foi assim, por exemplo, que um ex-operário tornou-se presidente do Brasil. Esta é a dinâmica que deslocou as bases elitistas do Estado, quando o voto era censitário, restrito e/ou limitado, em direção à inclusão das massas na universalidade eleitoral.
Entretanto, alcançado este status, surge todo tipo de reação negativa – falta consciência de classe; o país é de mentalidade subdesenvolvida; a mídia controla e comanda a política; os políticos são corruptos; os eleitores são irresponsáveis; o povo tem memória curta; o poder sempre estará com os endinheirados; eu não gosto de política; os trabalhadores estão desmotivados; o contexto histórico não é propício; as pessoas são individualistas (uma das melhores!); as massas são alienadas; etc., etc., etc. – o poço das justificativas é infinito. E, ao fim e ao cabo, volta-se ao slogan: “exerça seu direito com consciência!” – o poço da hipocrisia e da falta de coragem é infinito. Embora muitas das justificativas sejam coerentes e conseqüentes, é evidente que alguns aspectos estão sendo negligenciados. Proponho oferecer-me como modelo de análise para tornar mais nítido e franco o caráter do processo social.
Não tenho relações sociais consolidadas. Minha família despedaçou-se. Meu trabalho se justifica apenas pelo salário. Minha atividade acadêmica é frustrante porque cheia de razões retilíneas e utilitaristas. Furto-me de julgar as pessoas com que me relaciono, pois são geralmente amáveis; mas são relacionamentos débeis, e cujas perspectivas de aprofundamento não me satisfazem. Cumpre ressaltar: isto não é um desabafo, nem um lamento, nem exorcismo de demônios internos. Isto é uma realidade – nem tão desagradável quanto possa parecer –, na qual, penso, não sou o único vivente. Talvez seja mesmo um modelo social, do tipo pequeno-burguês-universitário-classe-média-branca-niilista-individualista-intelectualizado-descendente-de-colonizadores-europeus-do-sul-do-Brasil-herdeiro-de-pequenos-proprietários.
Brasil e mundo afora, devem existir outros tantos indivíduos, encaixados ou não em modelos, que tenham também relações sociais fracas – uns admitindo, outros não; uns percebendo, outros não; uns conformados, outros não. O que importa aqui é o que diz respeito à participação política, mais especificamente na via eleitoral. Sendo o voto social, é evidente que para esses indivíduos o voto não cumpre sua função. São pessoas sem qualquer influência coletiva e, geralmente, distantes das influências sociais. Por certo que não sou um átomo – basta observar que dependo de muitas forças sociais para comer, por exemplo – mas também não participo da vida de gado, sou incapaz de convencer ou de ser convencido de tal ou qual opção de voto. E – repito – voto que não se insere em determinada força social não tem qualquer sentido.
Esta é a minha própria alienação – e de outros, certamente – mas vejo que a maioria está submetida à face oposta da mesma moeda: alienação de rebanho, manipulável e suscetível (à propaganda, às lideranças, ao senso comum, à opinião do vizinho, à mídia, ao discurso técnico-científico, às pesquisas, à opinião pública!). Esta é a miséria do caráter social do voto – embora não deixe de ser exuberante a força coletiva que o anima, responsável pela trajetória formidável que universalizou o Estado Democrático de Direito.
Na raiz destas alienações sociais se encontra o caráter alienado da própria política. Na Grécia clássica, quando os habitantes da pólis começaram a escolher seus representantes para as decisões coletivas, nascia o próprio conceito de política, e com ela desenvolveu-se a democracia representativa que culmina no Estado como o conhecemos hoje – embora já tenhamos perdido de vista a antiga opção pela alienação. O voto, universal ou não, continua tendo caráter eminentemente social e alienado.
Pois se a política é a arte do exercício de poder de influência de grupos sobre a massa, por que é que continuam a convocar os indivíduos às eleições? Já não posso me calar diante dos pastores e de seus rebanhos barulhentos. Que saibam:
Primeiro, que existe de fato um fenômeno social que engendra pessoas à parte de todo e qualquer senso de identificação e ação coletivas; (resta comprovar se tal fenômeno é crescente e se tem caracteres eminentemente ligados à juventude, às novas gerações, a determinadas classes, etc.).
Segundo, que tais pessoas podem duvidar, rejeitar e combater todas as permanentes pressões sociais que tentam enquadrá-las, arrebanhá-las, seduzi-las e justificá-las em nome de bandeiras, slogans, grupos, instituições ou coletividades que fazem sentido apenas para rebanhos.
Terceiro, que, para os indivíduos, peso na consciência e apelos morais não justificam voto. Um rebanho de caprinos pode ser mais atraente do que um rebanho de bovinos, mas ainda é rebanho.
Quarto, que a resposta mais adequada ao voto compulsório é o voto nulo. Pois a condição primeira para o combate à alienação é o próprio (re)conhecimento radical de sua existência.
Previno-me contra os iluminados que votam a favor do operariado e das classes desfavorecidas; já é grandiosamente patético o histórico de oprimidos guiados por ilustrados. Que façam a revolução aqueles que realmente precisam dela, pois são os únicos imunes à fraqueza da dúvida e à certeza do auto-engano.
Ausência-de-si! Esta é a verdadeira palavra de ordem da sociedade, principalmente em tempos de eleições. Intelectuais votando em prol de operários, operários em prol de burgueses ressentidos, burgueses ressentidos em prol de ambientalistas, ambientalistas em prol de empresários, empresários em prol de cristãos, cristãos em prol de democratas, democratas em prol de trabalhadores, trabalhadores em prol de pseudo-radicais, pseudo-radicais em prol de miseráveis, miseráveis em prol deles mesmos, e eles mesmos em prol da máquina político-partidária! É a roda-viva que continua a carregar o destino pra lá, para longe de nosso primevo vigor animal repleto da liberdade transbordante que nos permite afirmar: “isso eu posso fazer sozinho”.
Os rebanhos continuarão indo bovinamente às urnas. As classes continuarão em luta. A alienação continuará com seu trabalho de feiticeira às voltas com poções mágicas. Mas os indivíduos! Estes não mais tolerarão a ilusão de um mundo pretensamente individualista; não mais calarão diante das infâmias das manadas; não mais aceitarão serem confundidos pelos supostos iguais. Indivíduos não têm direitos, mas sim um único e imenso dever: viver sem as ilusões e idealismos e falsificações que aprisionam-bestializam-santificam-padronizam-conceitualizam-absolutizam-doutrinam, ou seja, exaurem a tragédia e a beleza da vida. Ainda estamos muito longe de nos tornarmos indivíduos?
“Naquela época, meu instinto decidiu-se de maneira inexorável contra a continuação da condescendência, do seguir-aos-outros, do enganar-a-mim-mesmo. Qualquer modo de vida, as condições mais desfavoráveis, enfermidade, pobreza – tudo me parecia preferível àquela ‘ausência-de-si’ indigna à qual eu me entregara, por juventude, e na qual eu acabara ficando pendurado mais tarde por preguiça, devido ao assim chamado ‘sentimento do dever’.” (NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Porto Alegre: L&PM, 2010, pág. 100).
* LUCAS PETRY BENDER é historiador.
Publicado: 21/10/2010 por Revista Espaço Acadêmico
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Publicado: 21/10/2010 por Revista Espaço Acadêmico
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