O conceito que não tinha um compromisso com o que se convencionou chamar de coerência racional e que pregava a honestidade instintiva.
Por Suze Piza e Daniel Pansarelli*
A inconstância, talvez, possa ser tomada como o mais constante elemento que atravessa a obra filosófica de Friedrich Nietzsche. Desde seus primeiros escritos, a presença da figura dionisíaca – ainda que ao lado da outra, apolínea – marca o descompromisso de Nietzsche com a coerência racional, ou, dito de outra forma, seu compromisso com a honestidade humana, esta que ora se manifesta correta e logicamente (Apolo), ora é puro instinto, contradição, desejo (Dionísio). Lamentavelmente, o desenrolar-se da história do Ocidente teria favorecido a característica racional dos seres humanos, levando-os à constante repressão de seus instintos e desejos. Racionalizado historicamente além do que lhe é natural, estamos hoje, segundo Nietzsche, diante desse homem distorcido, amputado de sua plenitude de ser.
do autor já demonstram sua preocupação com a inconsciente abdicação, pelos homens, de seus desejos instintivos. Se Apolo e Dionísio, como metáforas representativas da constituição do ser, são figuras presentes em O Nascimento da Tragédia, de 1871, as consequências da deformação ocidental deste humano, por meio da valorização do racional em detrimento do instintivo, parecem ser o motivador da busca procedida por Nietzsche em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral, de 1873. Nesse breve texto, o autor acusa: a humanidade habituou-se a “mentir em rebanho”, a aceitar como verdadeiras as construções falsas, improváveis ou impossíveis de se comprovar, apenas por serem estas as construções aceitas pelo conjunto da sociedade.
A distorção de valores ocasionada pelo necessidade de aceitação social, o que leva os tantos e fracos a mentirem em rebanho, tem como desdobramentos dois complicadores à construção de uma ética que possa, efetivamente, ser compreendida como tal. A primeira, e talvez mais superficial dessas complicações, envolve a impossibilidade de se determinar o que poderia, de fato, ser considerado como um agir ético. Em sua argumentação, Nietzsche explica: nada sabemos sobre a “honestidade”, mas tão-somente sobre ações isoladas, cada distinta da outra, as quais nós, arbitrariamente e descartando sua individualidade, atribuímos um sentido comum, dando-lhe o nome “honestidade”. Só assim, pela arbitrária imposição de características comuns a ações distintas, chegamos a um conceito, fictício, o qual defendemos infundadamente como ético. Um sujeito encontra uma carteira e devolve esta a seu dono com todo o conteúdo; outro ajuda uma pessoa idosa a atravessar a rua, sem tirar proveito dessa pessoa; dessas duas ações, não participa nenhum elemento que carregue o nome “honestidade”, mas, ainda assim e sem explicações adicionais, chamamos ambas de ações honestas; mais que isso, identificamos a honestidade com a postura ética. Ora, nada há de “honestidade” em nenhuma dessas ações: na primeira, há uma carteira, um dono e a devolução; na segunda, duas pessoas e uma rua a ser atravessada. Nada mais. Qualquer tentativa de aproximar duas ações tão distintas só pode fundar-se na ficção inventada por alguém e irrefletidamente acompanhada pelo conjunto da sociedade, pelo “rebanho humano.”
Mas o problema de uma verdadeira ética humana tem suas raízes mais profundamente estabelecidas, chegando à própria constituição deste homem que habita o mundo presente. Após tantos séculos sofrendo e, depois, aceitando as distorções impostas ao seu próprio ethos, ao seu modo de ser no mundo, passadas tantas e tantas gerações em que a racionalidade apolínea imperou, restringiu, coibiu, castrou o desejo e o instinto dionisíacos, o próprio homem parece ter-se perdido. Aceitar acriticamente modelos éticos impostos, viver como gado humano, é consequência, não causa. A origem desta aceitação parece estar, segundo Nietzsche, na própria distorção da humanidade do humano. Este ser mais racional que instintivo não representa o pleno desenvolvimento da potencialidade humana ou, para dizer de maneira aristotélica – e, portanto, recriminada por Nietzsche –, este ser tal como descrito representa a atualidade do homem, não sua potência. Mas há, ainda, em alguns, a vontade de potência. O desejo – dionisíaco – de deixar de ser assim, tão humano.
O último homem e o além-do-homem
A reflexão acerca da condição humana, a partir de Nietzsche, leva à pergunta: que homem é esse que vemos pela nossa janela? Que homem é esse que vemos ao olhar no espelho? Segundo o autor, um homem que vive entre a felicidade, por um lado, e segurança, comodidade, ausência de dor, por outro. Essa vida não parece problemática à primeira vista. Mas só à primeira vista, pois se olharmos mais de perto: onde está o homem?
O homem foi apequenado, amesquinhado, o tipo-homem moderno é uma possibilidade histórica infeliz, a menor das possibilidades, de tantas que poderia ser. O último homem, tal como Nietzsche caricaturiza-o, é o animal de rebanho, esse animal que almejou o advento da felicidade, o desaparecimento da desigualdade, da injustiça e do sofrimento e que, conseguindo realizar parte desses projetos, está numa vida amorfa e é fisiologicamente decadente, pois é impotente para sofrer e impotente para suportar o sofrimento, é fraco, humilde, subserviente, é um sujeito (aquele que se sujeita a).
Que conceito de felicidade é esse, almejado e conquistado? É uma felicidade pequena, domesticada, dominada por freios sociais: segurança, bem-estar, estabilidade? Que felicidade poderia haver nisso? Isso é antivida. É vida não intensa, não experimentada, não trágica. A intensidade é condição necessária de toda grandeza, é a possibilidade de elevação do tipo-homem que está num estado de mediocrização (Mittelmässigkeit), redução da vida a relações de mercadorias, prazeres pequenos, rotinas entediantes, uma vida envolta por maquinaria, como vai dizer Heidegger mais a frente; corpos adestrados, como dirá Foucault. O homem foi sucateado, enquanto a Terra é racionalizada e administrada.
Nietzsche vê no modo de vida moderno uma anulação da subjetividade humana, em que a individualidade se perde, e em que impera a massa de rebanho, o espírito gregário e o consequente embotamento do indivíduo. Ele é, sem dúvida, o grande teórico e crítico da modernidade, que faz, para usar os termos do primeiro, uma “análise implacável de tudo que existe”. As poderosas teses levantadas por Nietzsche contra a religião, a moralidade e a Filosofia misturam a análise mais crua, inspirada no Iluminismo, com uma vitalidade romântica, para atacar os aspectos da cultura moderna que contrariam a vida. Essa é uma Filosofia da vida, vitalista. Nietzsche é um autor bombástico que não tem receios de produzir uma Filosofia a golpe de martelo. Sua crítica ferrenha à modernidade passa pela despersonalização dos indivíduos e pela formação social que cria um homem, segundo ele, fraco, humano, demasiadamente humano.
Defendendo que o homem é a somatória de impulsos, desejos e vontades, acredita que a visão de animal racional aceita pelo Ocidente como definidora do ser humano é equivocada, pois a razão é um produto cultural, social. A razão seria fruto de uma vida gregária que só surge em decorrência das circunstâncias as quais os indivíduos foram expostos.
Vivendo no mundo da razão e, portanto, valorizando a consciência como seu espaço privilegiado, o ser humano cria uma série de regras morais de convivência que o limitarão como ser humano. Dentre essas morais, o cristianismo é a que Nietzsche dedica mais tempo e espaço de reflexão. O cristianismo representa para Nietzsche uma moral dos fracos, pois valoriza o servilismo, a humildade, a aceitação, o conformismo com um tipo de sofrimento que só retrai, submete.
O cristianismo seria o legítimo formador de uma massa de rebanho, sem força, individualidade ou autonomia. Seria uma moral massificadora e de escravos. A modernidade, vitimada pelo capitalismo e herdeira da moral cristã, será fatal para as possibilidades da vida humana.
A antropologia nietzschiana passa pela defesa de uma superação desse humano que aí está. Na defesa de um super-homem que teria em si resguardada a força, os instintos e os desejos, rejeita-se o homem que surgiu do tipo de sociabilidade que criamos. O homem seria o meio entre o animal e o super-homem. A defesa do super- homem, em última instância, representaria um ultrapassamento da modernidade. O retorno do homem a si mesmo, resgate daquilo que perdeu quando se tornou consciência.
Numa perspectiva vitalista, Nietzsche se apega na antiga concepção do mundo grego – entre os princípios apolíneos e dionisíacos, quando estes estavam em vigência, e advoga em favor da vontade humana.
E é em meio a esse contexto de domesticação do homem que se gesta o seu contrário, é aí que Nietzsche desenvolve seu conceito de “além-do-homem” (Übermensch) como contramovimento, visando fazer face à mediocrização em andamento na modernidade, que infelizmente toma consciência de si na figura histórica do niilismo europeu1 . Quem é o alémdo- homem? É a representação da vontade de potência, da força e do desejo, da experiência que perfura e fortalece. O além-do-homem é da arte, da vida, do corpo, amoral. Indivíduo soberano, autêntico, é uma espécie de homem mais desenvolvida. Essa seria, portanto, uma existência sobre-humana, radicalmente singular, corporal, singular, livre.
Essa vida é vida de 1fato! E essa vida vale a pena ser vivida. Uma vida de experiências intensas, de contato com a terra, de realizações de desejo, de exercício da vontade. Uma vida que ao morrer seria mais que morte, seria consumação, combustão. O avesso da morte em vida do último homem, o além-do-homem acaba, esgota-se de tanta vida, a morte é apenas o acabamento de uma existência vivida em sua intensidade. Essa vida valeria ser vivida tantas vezes quanto fosse possível. O eterno retorno de Nietzsche pode ser interpretado como um recurso hipotético de validação da vida: eu viveria tantas vezes quanto fosse possível a mesma vida, pois ela foi, de fato, vivida. O conceito funciona também como um princípio ético, um imperativo que sai em defesa da vida e do corpo: “Age de tal maneira que tua vida possa ser vivida tantas e tantas vezes exatamente da mesma maneira”.
O eterno retorno, regra de ouro
A proposição do eterno retorno, tal como formulada por Nietzsche nos textos de 1881, é uma regra de ouro para o julgamento da eticidade da vida. Se o ser humano não tem em si mesmo o referencial para julgar a qualidade de sua vida – para julgar se vive ou não uma “boa vida” –, visto que se deformou historicamente, e sabendo que não pode confiar na razão (vilã da deformação humana) como critério para fazer este mesmo julgamento, o eterno retorno apresenta-se como possível parâmetro à valoração ética da vida.
Viver a mesma vida já vivida desde o nascimento até hoje, sem a possibilidade de transformar nada, sem alterar nenhuma escolha, sem suprir sequer uma omissão. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de viver eternamente esta vida até então transcorrida. Essa é a condição. Para aqueles poucos que vivem a boa vida, autenticamente, essa condição será desejosa: valerá a pena viver eternamente repetindo os mesmos atos, vendo a ampulheta de sua vida virar-se outra e outra vez. Para a grande massa, aquele “rebanho”, a situação seria odiosa, desesperadora. Aqueles que se resignam no presente, buscando relegar a um futuro – que, a bem da
verdade, não esperam concretizar – o que verdadeiramente desejam, esses abominam a vida eterna e circular. Por isso, o eterno retorno é uma regra de ouro da ética. A única que permite a cada um, em sua mais honesta individualidade, projetar e, principalmente, realizar a vida ética, a vida que vale ser vivida. Uma vez. E outra. Mais outra...
1 A reflexão trazida por este texto encontra respaldo no texto de Oswaldo Giacóia Jr., Críti ca da moral como políti ca em Nietzsche.
*SUZE PIZA é mestre em Filosofia pela UNICAMP. Atualmente, é doutoranda em Filosofia pela UNICAMP e professora assistente da Universidade Metodista de São Paulo ministrando aulas em diversos cursos da universidade na área de Filosofia.
*DANIEL PANSARELLI é doutor em Educação (Filosofia e Educação) pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Educação e graduado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente, é professor na Metodista, onde coordena o curso de pós-graduação em Filosofia Contemporânea e História.
Apolo
Filho de Zeus e Leto e irmão gêmeo de Artemis, foi um dos principais deuses da mitologia greco-romana. É o deus da beleza, da juventude, da luz, do sol e da música. É o fundador do oráculo de Delfos, que tinha o objetivo de dar conselhos aos gregos por meio da sacerdotisa Pitonisa. Porém, diz a lenda que suas flechas podiam causar doenças aos homens.
Foucault
Importante filósofo francês nascido em 1926 e falecido em 1984. Publicou seu primeiro livro Doença Mental e Personalidade, em 1954. Encontrou em Nietzsche sua fonte de inspiração. Usava uma linha de pensamento mais “contextualista”, ou seja, analisava somente as interpretações feitas ao longo da História.
Fonte: Revista Filosofia
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