sábado, 31 de outubro de 2009

Assistir para entender

 Um filme não precisa ser didático para ensinar valores importantes na formação dos alunos. Conheça obras do cinema aplaudidas por críticos e professores.
Foto: TypePad
Foto: O cinema é capaz alimentar o intelecto com diversão
O cinema é capaz de alimentar o intelecto com diversão.

Todos podem se espelhar em exemplos do cinema para descobrir maneiras de aprender e ensinar melhor. Sem deixar de se divertir nem se emocionar. Como explica a professora de Cinema e vice-coordenadora da Cinemateca da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Verônica Ferreira Dias, um filme "é sempre algo atrativo, porque traz entretenimento e reflexão também".

Para ela, quando a sétima arte retrata processos de aprendizado bem-sucedidos, é capaz de despertar o espírito crítico da sociedade. "As pessoas acabam repensando o sistema educacional, já que nem sempre têm paciência para ouvir discursos teóricos de especialistas". E Verônica não está sozinha. Arte-educador e doutor em Educação pela USP (Universidade de São Paulo), Marcos Ferreira dos Santos pensa de modo semelhante. "O cinema faz com que a gente tenha um ‘olho privilegiado’ e consigamos entrever coisas invisíveis em certas situações".

Por outro lado, o professor tem suas ressalvas e não acredita que campeões de bilheteria sejam os mais indicados para falar sobre Ensino. "Blockbusters são direcionados demais para fins comerciais, não saem do lugar-comum, e por isso é difícil alguém acordar para a necessidade de aprender". Será? A professora da PUC acha que os chamados "filmes de arte" não conseguem atingir as massas e acabam sendo um esforço muitas vezes sem grandes resultados.

"Algo como Legalmente Loira contesta o estereótipo da ‘patricinha loira e burra’, quando ela chega à Harvard e faz o público enxergar que o importante é o esforço pessoal", comenta Verônica. Clássico, cult ou popular, é sempre você quem decide. Conheça melhor abaixo os filmes selecionados pelo Educar que mostram como, de uma forma ou de outra, o importante é aprender uma lição para o resto da vida.

Dúvida
Ao Mestre com Carinho
Billy Elliot
O Céu de Outubro
Escola do Rock
Gênio Indomável
O Homem-Elefante
Legalmente Loira
Mr. Holland: Adorável Professor
Pink Floyd: The Wall
Sociedade dos Poetas Mortos


quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Filosofia: uma educação

Por Nicolas Go

Doutor em Filosofia, Pesquisador do Departamento Interdisciplinar de Estudos, Pesquisa e Formação do Instituto Universitário de Formação de Professores (IUFM) de Nice, França.

Tradução de Filipe Ceppas

Em sua obra, Sobre a Reprodução, Louis Althusser pergunta "o que é a filosofia?" E ele constata, preliminarmente, a existência de um paradoxo: cada um crê saber o que é a filosofia e, ao mesmo tempo, ela se faz passar por uma atividade misteriosa. As duas figuras emblemáticas destas crenças poderiam ser, por um lado, o Sr. Jourdain de Molière, que faz versos sem saber fazê-los, e, por outro, Tales, que por mirar os céus acaba caindo em um poço, provocando o riso zombeteiro da criada.
No primeiro caso, é o sábio que ri do ignorante; no segundo, é o ignorante que ri do sábio. Certamente que as alegorias são sempre simplificadoras, mas nos dois casos, constata-se uma ruptura em que é difícil não reconhecer algo de filosófico, e que separa o conhecimento da ignorância, a potência da impotência. Cada um se reencontrará, seja em Tales, seja na criada, segundo exalte o pensamento e se distancie da ignorância ou, ao contrário, valorize o senso prático e denuncie a fatuidade dos pensadores. E a ruptura parece estar há muito consumada. Pois, comumente, os filósofos identificam-se espontaneamente com Tales mais do que com a criada trácia, e imaginam-se mais facilmente no teatro, em meio à plateia, do que no personagem do Sr. Jourdain. Os professores de filosofia, por sua vez, visam a educação dos ignorantes, esta é sua profissão. Eles querem iniciar os criados na contemplação dos céus, e ajudar os Srs. Jourdain a elucidar o ridículo de sua pretensão, a começar, como Sócrates, por saber que nada sabem, e compreendendo, como Platão, que para conhecer é preciso estudar.
Assim, Gramsci teria se enganado. Seria falso dizer que todo homem é filósofo, tal como afirma nos seus Cadernos do Cárcere. Não é a filosofia uma profissão [expertise], e o elitismo sua condição necessária? Para que todo homem seja filósofo, seria necessário que todos fossem especialistas [experts] em filosofia, o que não é propriamente razoável de se esperar.

A filosofia como especialidade

A filosofia nasceu como uma exigência. Segundo se interprete o termo sophía, ela é exigência de verdade (sophía como saber), ou exigência de uma vida boa (sophía como sabedoria). Perde-se bastante ao resumir esta exigência a uma simples intenção, ou mesmo uma inclinação, de conhecer ou de bem viver. A exigência filosófica convida ao trabalho, a um lento, difícil e paciente "trabalho do conceito". Ninguém melhor do que Hegel expressou esta evidência: "Para se ter qualquer ciência, arte, habilidade, ofício, prevalece a convicção da necessidade de um esforço complexo de aprender e de exercitar-se. De fato, se alguém tem olhos e dedos e recebe couro e instrumentos, nem por isso está em condições de fazer sapatos. Ao contrário, no que toca à filosofia, domina hoje o preconceito de que qualquer um sabe imediatamente filosofar e julgar a filosofia, pois tem para tanto padrão de medida na sua razão natural - como se não tivesse também em seu pé a medida do sapato". Com efeito, é no mínimo curioso admitir de bom grado para uma disciplina qualquer a necessidade de um trabalho que não se atribuiria à filosofia. Quando Hegel defende a necessidade de "fazer novamente da filosofia um trabalho sério", ele retoma a advertência de Kant: o verdadeiro filósofo deve evitar um "uso dialético da razão" que, desde os sofistas, se contenta com dar ao conhecimento uma aparência de verdade e sabedoria. Para Kant, a dialética ciência-sabedoria caracteriza o esforço filosófico: "... a ciência só tem um verdadeiro valor intrínseco enquanto instrumento de sabedoria. Nesta qualidade, porém, ela lhe é indispensável, de tal sorte que se pode com certeza afirmar: a sabedoria sem a ciência é o esboço de uma perfeição que jamais poderemos alcançar". Certamente, algumas correntes filosóficas, mais do que outras, se preocuparam com a sabedoria: mas, seja como for, entre os filósofos preocupados com a "vida boa", nenhum negligencia o rigor do trabalho conceitual. Além disso, quem o fizesse não seria filósofo. É provavelmente nisto que a filosofia é "amor à sabedoria" e não sabedoria ela mesma: pela lucidez ou modéstia, sem dúvida, estimando por vezes que a sabedoria não é deste mundo; por definição, e mais essencialmente: porque o sábio não tem o que fazer com a argumentação ou a demonstração, o "mostrar" lhe é suficiente, e seu modo de existência vale mais do que os discursos para testemunhar aquilo com o qual ele se preocupa. Um sábio pode muito bem ser iletrado, um filósofo, não. De fato, os sábios não são necessariamente filósofos (eles podem ter sido), os filósofos não são sempre sábios (eles se tornam às vezes).
Voltemos um instante a Althusser. No texto citado, ele corrige Gramsci censurando-o por haver identificado apenas um aspecto da representação popular da filosofia. Quando, diante de um acontecimento doloroso ou um conflito, "encara-se as coisas com filosofia", isto significa, diz Gramsci, que se toma distância e que, contra uma reação emocional ou passional imediata, adota-se uma atitude racional e consciente da necessidade do que acontece. Neste caso, diria-se igualmente "encarar as coisas com sabedoria". O reconhecimento da necessidade do que ocorre, que remete a uma determinada representação de uma ordem inteligível do real e das ações humanas, parece ao filósofo italiano mais significativo que a moral da resignação de onde procederia uma tal atitude. Althusser inverte o raciocínio. Segundo ele, o reconhecimento de uma "necessidade racional" deveria passar para segundo plano, pois a resignação não implica necessariamente o reconhecimento das razões (no que então ela não é mais racional), ela é mesmo mais frequentemente a consequência de um fatalismo. Quando a criada trácia zomba de Tales caindo em um poço, ela encarna de maneira clara o povo rindo dos filósofos por aquilo que eles têm de irrealista: de tanto querer pensar o real, escapa-lhes o cotidiano, a única realidade. Mas, insiste Althusser, esta crítica indica um outro fato: "os filósofos praticam uma disciplina que está fora do alcance dos homens comuns, as pessoas simples do povo, e que comporta ao mesmo tempo graves riscos". O acerto de conta com os filósofos especulativos, que andam com a cabeça nas nuvens e não sabem lidar com o que constitui a vida mesma das pessoas do povo, os problemas concretos e cotidianos, carrega implicitamente um segundo raciocínio: o verdadeiro filósofo move-se num mundo diferente daquele da consciência popular espontânea, que não está dado imediatamente a todos, que é o produto do trabalho intelectual e do conhecimento. Althusser propõe uma distinção entre aquilo que ele nomeia a filosofia do senso comum, a da resignação e da fatalidade, e a Filosofia com letra maiúscula, a elaborada pelos filósofos e que possui um valor crítico racional. Esta filosofia, nos diz Althusser, pode ser difundida nas massas populares e, a partir de então, ter a aparência de uma consciência popular espontânea. Desta linha de argumentação, desdobram-se duas teses:
  1. não se pode afirmar, sem confusão, que todo homem seja filósofo;
  2. a filosofia pode ao menos ser "inculcada" (Lenin, Mao) no povo, e é pela união da teoria marxista e do movimento operário que ela será crítica, diferentemente das filosofias da resignação, que confirmam as relações de dominação.
Vê-se hoje em dia como esta ideia de "inculcação" está obsoleta (a menos que se entenda por isto a inculcação de uma competência como pensar por si mesmo). Ela contraria plenamente o postulado do Iluminismo segundo o qual não se aprende a filosofia, mas a filosofar. Contudo, a posição de Althusser, dialogando com Gramsci, tem o mérito de nos ajudar a pôr novamente o problema da apropriação popular da filosofia (que não está resolvido, na França por exemplo, pela ascensão de uma significativa faixa etária ao baccalauréat, onde unicamente se ensina filosofia).
A questão é de saber se existe ou não a possibilidade de uma filosofia popular, ou, mais precisamente, de uma prática popular da filosofia, ou, ao contrário, se ela apenas saberia ser compartilhada num contexto restrito, exigente e necessariamente elitista, de uma pequena comunidade de especialistas. O que implica elucidar a relação entre filosofia e educação. No segundo caso, com efeito, a educação filosófica daria lugar a uma primeira iniciação que teria como consequência, oferecer uma curta experiência do pensamento crítico à maioria e, simultaneamente, selecionar alguns candidatos à descoberta da verdadeira filosofia, capazes de se dedicar a um longo trabalho de especialização [spécialisation] e de profissionalização [expertise]. Já no primeiro caso, convém perguntar o que seria, no que poderia consistir uma "prática popular de filosofia".
Na filosofia, antes desta interrogação, é um lugar comum colocar a questão "o que é a filosofia?". Pois que validade teria uma resposta à questão de saber se a filosofia pode ser popular, ou se ela só poderia ser elitista, se antes não se perguntou sobre o que ela é? Efetivamente, se a filosofia não pode ser definida senão como este lento trabalho do conceito, referido de modo irredutível às obras da história da filosofia e à sua elucidação, ela é uma especialidade erudita e não teria como ser amplamente compartilhada. Se ela não é senão isso, a única questão, didática, tem a ver com, sem hesitar, conduzir diante dos estudantes um curso de filosofia que seja exemplar (solicitando a imitação, talvez a participação) com relação às condições segundo as quais o discurso filosófico se elabora, submetido somente às exigências do próprio pensamento. Este postulado é pressuposto por todos aqueles que consideram que a filosofia só pode ser um "coroamento dos estudos" e que ela exige, para se exercer, um corpus de saberes iniciais sobre os quais ela poderia exercer sua função crítica. Neste sentido, ela só pode ser uma filosofia de Escola, e mesmo do término dos estudos escolares (na França, restringindo-se à última série do terceiro ano [classe terminale]).
Contudo, a coisa é menos simples do que parece. O filósofo Jean-Toussaint Desanti recusa responder à questão posta por seu amigo Dominique-Antoine Grisoni, "o que é a filosofia?", e conclui: "dela, não sei nada que possa expor na forma de um discurso regrado, instrutivo e edificante. Pois se eu começasse um tal discurso, ele se destruiria sob as minhas palavras". Mas, após essa advertência: "desde que comecei a ensinar, guardo um bocado de tais discursos na reserva. No momento, renuncio a eles", ele aceita, no início de sua obra, levar adiante uma pesquisa: "Venha ver. Nós vamos jogar e descobrir juntos o que se ganha nesse jogo, e o que nele se arrisca". E, ainda, para filosofar "nós devemos nos despojar da filosofia". Em suma, a definição da filosofia não está guardada em nenhum lugar: ela procede, em sua compreensão, de seu exercício. Mas, então, qual exercício? E sob quais condições? Desanti nos indica seu método: "aprendi a trabalhar de uma maneira metodicamente não-metódica, que pode parecer vagabunda ou anarquista. Na verdade, ela proíbe o ronronar nos conceitos e preserva, com a maleabilidade das conexões, a seriedade e a liberdade do jogo. Portanto, não hesitemos jamais mudar de paisagem para fazer com que nosso cérebro aprenda a arte das conexões insólitas e difíceis". É verdade que a participação do leitor no diálogo constitui em si uma resposta, quem sabe, à questão inicial, tanto que eu não me cansaria de citar Desanti, a ponto de, finalmente,  transcrever todo o seu livro. Para saber o que é a filosofia é preciso fazê-la. Eis a condição própria da educação em filosofia: fazer filosofia. Para saber se uma filosofia popular é possível, não seria mais suficiente portanto pôr em perspectiva uma definição primeira e adquirida da filosofia (sabe-se que ela é culta [savante] e, hoje em dia, essencialmente acadêmica), juntamente com as condições de possibilidade de sua apropriação pelo povo (sabe-se bem que as chances são escassas); seria preciso tentar praticá-la. Para saber se o povo é capaz de filosofia, é preciso que o povo a exerça.
Mais o que o homem comum pode colocar em jogo sem a cultura erudita ou ao menos a escolar? Na metáfora de Desanti (o filósofo é um "esbanjador"), o dinheiro do jogo, aquilo que se aposta na filosofia, é a herança filosófica ela mesma. Mas os pobres, aqueles que não têm nada disso para apostar, não estão de facto excluídos do jogo? Os pobres, efetivamente, não vão ao cassino: estes não existem nas favelas do Rio. Nós estamos no que parece uma aporia.
Parece que somos forçados a escolher o campo: o dos ricos em cultura, ao qual a filosofia abre a sua mesa, ou o dos despossuídos, ao qual ela se nega. E se nos situamos do ponto de vista dos segundos, mais do que rir como a criada trácia, podemos muito bem seguir o exemplo de Paul Nizan, gritar de raiva e denunciar: a filosofia seria um privilégio burguês. "Esta falsa sabedoria feita pela burguesia não seduz e não justifica senão ela própria. O desenvolvimento interior da pessoa, o progresso da razão ordenando as paixões do homem, a comunhão imaginária dos seres capazes de intercambiar pensamentos razoáveis, o sistema harmonioso do mundo, as justificações idealistas, todas essas instituições da filosofia desmoronam sob os choques de uma vida mutilada e duramente oprimida. (.) Os homens privados de toda real satisfação não têm o que fazer com essas invenções de mundos imaginários construídos pelo pensamento burguês". Saindo do mundo privilegiado da universidade e dos livros e retornando à rua, os filósofos não são eles mesmos despossuídos, impotentes, como os grandes políticos fora dos salões aveludados da assembleia? A filosofia na rua, uma quimera?
Sócrates, como se sabe, frequentava a rua e não desdenhava interpelar os escravos assim como os sofistas eruditos; mas Platão, na República, se interroga: após haver contemplado a luz, o filósofo retorna à caverna, volta-se a seus irmãos ignorantes para lhes instruir, mas ele tropeça, cego agora pela penumbra, não mais pela luz, provocando a zombaria e o apedrejamento. Platão, que escolheu o seu campo, parece se perguntar: a educação filosófica do povo é verdadeiramente possível? Seria preciso escolher entre o "pensamento burguês" de Nizan e os acorrentados da caverna platônica? Ou, ao contrário, podemos conceber que os "esbanjadores" dos bairros pobres, os homens comuns, e mesmo as crianças, possam apostar outra coisa que não uma herança filosófica erudita?
Entre os filósofos, alguns se preocupam em compartilhar o esforço para pensar, e mesmo dentro da academia. Na França, os professores da Sorbonne Yves Michaud e Michel Puech contribuem com oficinas e publicações filosóficas para crianças e adolescentes; Michel Onfray  (fundador da Universidade Popular de Caën), Luc Ferry  (filósofo e antigo ministro da educação), ou André Comte-Sponville (igualmente professor na Sorbonne) não esconderam seu interesse pelo exercício precoce da filosofia. Já nos anos 1970, uma provocação nesta direção foi instituída por filósofos tão importantes quanto Jacques Derrida, Jean-Luc Nancy ou Sylviane Agacinski.
Além disso, entre os não-filósofos, outros aspiram e trabalham para ter acesso ao exercício desta disciplina no contexto dos "cafés filosóficos" ou de associações culturais. De modo que, se a ruptura entre filósofos especialistas e não-filósofos parece consumada, nem por isso ela é assim tão evidente. Ainda que minoritárias, vozes elevam-se para contestar a exclusividade de um conceito acadêmico da filosofia que exclui o povo. Essas vozes ressoam além túmulo, pois é verdade que a questão da "idade da filosofia" tem a própria idade da filosofia. Platão (para o qual convém filosofar tardiamente) contra Epicuro (para o qual nunca é demasiado cedo ou demasiado tarde para começar)? A esta questão da idade seria conveniente acrescentar aquela dos lugares da filosofia.

Todos os homens são filósofos

Althusser, é preciso reconhecer, esquematiza o pensamento de Gramsci. Este último combate o preconceito segundo o qual a filosofia seria algo difícil. Ele contesta a redução desta à atividade de "cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos", aqueles que qualifiquei acima de especialistas [experts]. Ele não contesta a necessidade de uma filosofia culta [philosophie savante], mas sim o fato de que somente ela possa merecer o nome de filosofia. Se, segundo ele, todos os homens são "filósofos" (Gramsci emprega as aspas), é porque ele reconhece a validade do que ele chama de "filosofia espontânea", a de "todo mundo". Abandonemos a filosofia acadêmica, a dos textos e dos filósofos consagrados, que como tal não é problemática e apenas ela merece, aos olhos do grande número dos especialistas, o nome de filosofia. Nos interroguemos antes, com Gramsci, sob o risco de aí nos perdermos, acerca da hipótese de uma filosofia que o teórico marxista qualifica diversamente como "popular", "vulgar", "ingênua", "espontânea", do "senso comum" etc.
Existe, segundo o autor dos Cadernos do Cárcere, uma filosofia de "todo mundo", contida dentro (1) da linguagem (que veicula representações e sistemas de ideias); (2) do senso comum e do bom senso; (3) do sistema de crenças, das opiniões, de maneiras de ver e de agir que constituem o "folclore" e a religião popular. Vê-se que a extensão do conceito é ampla, muito ampla. Somos todos, enquanto determinados por nossa realidade social e histórica, portadores de "concepções de mundo" e inclinados, enquanto "homens coletivos", a pensar e a agir de uma certa maneira. É o que muitos chamariam indistintamente de "opiniões"; Gramsci nomearia "filosofia" aquilo que a filosofia rejeitou sob a categoria pejorativa de opinião. Contudo, ele não se detém em uma categorização assim radical. Existe nas representações populares uma parte de eficácia filosófica e de verdade.
De fato, o "senso comum" não se reduz a um conjunto informe de crenças supersticiosas ou de modelos de ideias pré-fabricadas aplicadas, como grades de interpretação esquemática, à complexidade do real, como mostra, por exemplo, Adorno com relação ao tema da opinião. Existe, certamente, uma ampla margem de ignorância nas representações populares, mas também um núcleo saudável que ele nomeia "bom senso": é a parte de racionalidade que se exprime quando se "toma as coisas com filosofia", que não é somente um fatalismo da resignação, como censura Althusser. O homem (comum) do bom senso não se entrega aos impulsos dos instintos e sua violência, ele prefere dar uma direção consciente à sua ação ao invés de ceder à bestialidade, ele se rende ao convite da reflexão e da razão. A ideia que o povo tem da filosofia permanece, neste sentido, coincidente em algum aspecto com o que determinadas escolas pensaram ser uma finalidade da sabedoria.
Mais ainda, ela tem que lidar com o real, na medida em que os problemas postos pelas "massas", constituindo assim um bloco cultural e social, são problemas postos por sua atividade prática. Sem dúvida, somos o produto de um devir histórico e social que determina as condições de nosso pensar e de nosso agir. Mas essa ação produz por sua vez a possibilidade de uma verdade na relação consciente com a ação. Mesmo determinados a pensar e agir de um ou outro modo, os homens comuns são capazes de pensar não somente a partir de determinismos, mas igualmente instruídos por sua própria ação. Mesmo determinado a pensar e agir de um ou outro modo, o homem concreto permanece capaz de pensar e agir apesar desses determinismos. Ou melhor: ele entra verdadeiramente na filosofia a partir do momento em que decide pensar esses próprios determinismos, em resumo, pensar sua condição de homem concreto, de homem comum.
Entretanto, que todos os homens sejam filósofos, ainda que a sua própria maneira, inconscientemente, espontaneamente, isso não seria suficiente, precisa Gramsci. Para além dos frutos do devir histórico e do dado da cultura, existe no processo de educação filosófica um segundo momento, o momento crítico.
O momento crítico pode ser considerado o verdadeiro começo da filosofia. Se existe mesmo o filosófico nas concepções de mundo, como pensa Gramsci (mas é necessário precisá-lo), ele permanece um "conformismo do homem-massa". Este conformismo se une a um agregado heteróclito de elementos diversos e facilmente contraditórios, onde coexistem, por exemplo, como acabamos de ver, e sem nenhum julgamento, fragmentos supersticiosos assim como posturas de bom senso. Criticar sua própria concepção de mundo é, então, entrar na filosofia por um trabalho aplicado tanto ao real quanto a si mesmo: "O ponto de partida da elaboração crítica é a consciência do que existe realmente, quer dizer, um 'conhece-te a ti mesmo' enquanto produto do processo histórico que se desenvolveu até esse momento e que deixou em ti uma infinidade de traços, recebidos sem o benefício de um inventário. É um tal inventário que é preciso fazer para começar". Como alpinistas enfim chegados ao campo de base, e a partir de então sozinhos diante da montanha, encontramo-nos ao pé do monte filosófico. Para elaborar sua própria concepção de mundo de modo consciente e crítico, para se fazer "guia de si mesmo", é preciso elaborar um "inventário". Para retomar esta outra imagem de Desanti, é preciso apostar sua herança, o dinheiro do jogo. Mas qual herança? Qual dinheiro, quando não se é rico de cultura filosófica, quando não se é proprietário de um capital cultural erudito? Qual herança quando se é "simples"? A única que esteja disponível, sua realidade de homens concretos e históricos.
Em resumo, em sua visão normativa, o postulado da educabilidade filosófica do povo (de todo o povo) se apoia sobre um pressuposto: a opinião é capaz de verdade. Diferentemente de uma bastante ampla corrente de pensadores que a condena como sendo a antítese do filosofar (lembremos por exemplo da famosa fórmula de Bachelard, "a opinião pensa mal; ela não pensa: ela traduz as necessidades em conhecimento"), concorda-se quanto à ideia de que ela não seja exclusivamente este balaio de superstições e de preconceitos tal como ordinariamente se a descreve. O senso comum contém o bom senso. Ele é, certamente, "um conceito equívoco, contraditório, multiforme", e se referir a ele "como pedra de toque da verdade é um contrassenso". Todavia, e essa é uma questão de método, a aprendizagem do filosofar "não pode deixar de ter seu ponto de partida, em primeiro lugar, no senso comum", naquilo "que o aluno já conhece, [em] sua experiência filosófica (após lhe ter demonstrado que ele tem uma tal experiência, que é um 'filósofo' sem o saber)".A figura do Sr. Jourdain de Molière não está assim tão longe. Mas o contexto e a questão são diferentes. Longe do espanto narcisista do ignorante, crendo-se cultivado, tornando-se risível, a questão aqui é a de uma ultrapassagem, no sentido dialético. O senso comum não saberia tornar-se filosofia por meio de uma prática autossatisfeita de repetição do mesmo e do determinado. A função primeira da filosofia é uma função crítica. Se partimos da ideologia, não é porque ela guarda a verdade (acabamos de dizer, ao contrário, que a concepção que se tem do mundo não é nem crítica, nem coerente, mas desagregada e ocasional), mas simplesmente porque ela existe enquanto meio próprio da consciência popular. O inventário de que fala Gramsci parte necessariamente do que é, não para reproduzi-lo, mas para o ultrapassar, tendo pensado na sua realidade concreta, histórica e cotidiana. Os "simples", os não "intelectuais", apresentam a particularidade, em filosofia, de não terem nenhuma cultura filosófica acadêmica para pôr na mesa; seu capital é somente a sua existência concreta, sua experiência consciente, filosoficamente ingênua, do real. Se se toma como ponto de partida aquilo que os aprendizes já conhecem, mais do que os textos da tradição filosófica, é porque aquilo que se visa nesta aprendizagem não é "informar historicamente o aprendiz sobre o desenvolvimento da filosofia passada, mas (...) formá-lo culturalmente, para ajudá-lo a elaborar criticamente o próprio pensamento...".
Mas haverá, então, uma filosofia do senso comum e uma filosofia acadêmica? Uma filosofia do concreto e uma filosofia dos filósofos? Uma pequena e uma grande filosofia, uma elementar e uma complexa, uma modesta e uma ambiciosa? Seria preciso voltar à constatação de uma ruptura consumada? Gramsci mais uma vez responde às objeções, e é suficiente citá-lo: "a filosofia da praxis não busca manter os 'simples' na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simples não é para limitar a atividade científica e para manter a unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual da massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais". Vê-se, e este é sem dúvida o ponto mais importante a considerar: a questão é política. As resistências procedem em parte, é verdade, por razões epistemológicas ou estritamente filosóficas: recusa-se a possibilidade de uma prática popular da filosofia em virtude de uma definição de filosofia como especialidade acadêmica, referida estritamente à grande tradição dos textos e que exclui toda pretensão de filosofar de outro modo. Sem dúvida, nenhum filósofo ou iniciante em filosofia contestará a necessidade de defender esta remissão acadêmica, crítica e esclarecida, ao patrimônio filosófico da humanidade, e de preservar a todo custo a tradição. Contrariamente, o que enseja a discussão é o postulado de que não pode existir nenhuma outra forma de prática filosófica; mais ainda: que uma prática popular da filosofia seja incompatível com a tradição acadêmica. É preciso, para preservar a filosofia, resguardá-la do povo?

Um filosofar popular

Proponho colocar a questão de outra forma: por que não dar a filosofia ao povo com o intuito de permitir elucidar as condições de sua existência? Não cabe a cada um determinar, com conhecimento de causa (a precisão é fundamental), no que a filosofia importa? A concepção clássica da filosofia como coroamento dos estudos e como prática acadêmica se impõe, parece, de modo evidente. Mas pôr em questão a evidência não permanece a primeira condição da crítica filosófica ela mesma? Numa perspectiva tanto política quanto filosófica, nos perguntamos se não seria pertinente inverter a proposição "a essência necessariamente letrada [savante] da filosofia implica que ela seja praticada por um pequeno grupo de intelectuais" nesta outra: "o fato de que a prática da filosofia seja tradicionalmente reservada a um pequeno grupo de intelectuais determina sua natureza letrada". De maneira que o que se define como condição necessária a todo exercício do filosofar (entendo por isso a leitura crítica e guiada dos grandes textos) será somente sua aquisição letrada, resultado possível de um processo de apropriação do filosofar que poderia muito bem começar por um questionamento modesto (mas exigente) sobre as condições concretas da existência e do cotidiano. Consequência disso é que nossa atenção deveria se deter não mais na polêmica sobre uma possível ou impossível filosofia popular, mas antes em suas efetivas condições de possibilidade. Se postulamos que cada um, por pouco que o deseje, é capaz de entrar na filosofia (o que resume a fórmula de Gramsci "todo homem é filósofo"), resta-nos trabalhar para determinar, ao mesmo tempo, sob que condições.
Quais são as exigências do filosofar? Talvez não seja no corpus da didática "clássica" que se encontrará a resposta a esta pergunta. Além do mais, esta não é precisamente uma questão: é um problema e como tal não pede respostas, mas um esforço de solução. E este esforço, acredito, não se reduz a um trabalho de escrita conceitual. Ele exige experimentação e experiência, tal a novidade da perspectiva. Gramsci já havia proposto uma direção possível, partindo da experiência crítica do homem comum, para permiti-lo elevar-se progressivamente até uma elaboração individual do pensamento: "Uma filosofia da prática só pode apresentar-se, inicialmente, em atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E portanto, antes de tudo, como crítica do 'senso comum' (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que 'todos' são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida individual de 'todos', mas de inovar e tornar 'crítica' uma atividade já existente)". Trata-se assim de um verdadeiro processo de educação do pensamento aplicado ao real e inteiramente consagrado à aprendizagem da faculdade crítica. Não se inculca uma ciência, um saber filosófico como um objeto de cultura; permite-se a aprendizagem do filosofar (a qual pode eventualmente levar àquele saber, mas sob o efeito da necessidade vivenciada). Não se parte de uma cultura acadêmica [culture savante], a dos intelectuais, cujo principal efeito é um efeito mecânico de exclusão daqueles que não dispõem dos meios para compartilhá-la (porque, na maioria das vezes, não se lhes foram dados), parte-se do real concreto dos filósofos aprendizes. Este não milita em favor de um programa, que a diversidade das configurações sociológicas torna difícil, mas avança, sobretudo, na direção de uma estratégia característica do que se qualifica, por vezes, de "pensar complexo".
Uma filosofia popular não terá o que fazer com um programa, que submeteria o caminho dos aprendizes às coações dos textos obrigatórios ou dos problemas impostos (não que essas coações sejam ilegítimas: elas não são realistas). Ela deverá, ao contrário, construir seu caminho a partir de problemas informados pelo real concreto e as múltiplas preocupações determinadas dos aprendizes. Interrogar não o que os filósofos escreveram, mas o que se é, eis aí o começo da filosofia para todos. A exemplo dos textos, a vida não provoca questões? Não temos muito a interrogar nas certezas e crenças que nos habitam, nos desejos e desesperos que alimentamos, nos projetos que concebemos e arrependimentos que experimentamos, nas dores e alegrias que conhecemos, nas injustiças que encontramos e ideais com os quais sonhamos, na experiência que fazemos do trabalho que nos desafia ou que nos falta, na morte que nos espera e na morte dolorosa de quem nos é próximo, na amizade, no amor, na solidão? É esta imensa receptação da experiência de viver tão miserável, tão desprezível, que se deve, esquecendo nossas singularidades e nossa experiência encarnada, contar somente com as elaborações conceituais de nossos mestres de filosofia? Apostamos que, mais do que uma exigência de método no exercício do pensamento, há aqui um problema político: a interdição de aprender a pensar, imposta aos não-iniciados pela força das coisas. Por que então um jardineiro lerá Epicuro? Eles não frequentam o mesmo jardim... Creio que o jardim de Epicuro não tem nada de incompatível com o dos cortadores de grama. É mais a passagem de um a outro que causa problema. O que pode fazer com que um jardineiro se interesse por ler Epicuro? Em alguns casos raros, sem dúvida, e se lhe resta força após uma jornada de trabalho extenuante, a simples curiosidade, a sensibilidade pessoal de um homem simples que, a despeito dos determinismos sociais, se sente desejoso de fruir a atividade intelectual e se dá a liberdade de o fazer. Mas mais frequentemente, nada. E não falamos de Hegel. O que pode motivar um tal interesse, ao menos bizarro, é o encontro inesperado de problemas para os quais não havia conhecimento do parentesco: um pouco como dois estrangeiros, indiferentes um ao outro, que descobrem um belo dia um ancestral comum, e começam assim a se gostar. O homem comum, por pouco que ele interrogue sua existência, também tem todas as chances de num belo dia encontrar os problemas da comunidade dos filósofos. Para ele o acesso ao que se nomeia "a universalidade filosófica" não se fará pelas obras universais da história da filosofia, mas pela singularidade de sua modesta existência. A partir de então, os problemas "universais" (ainda que se possa duvidar fortemente que apenas eles nos interessam) não serão aqueles dos filósofos, serão os dos homens simples. É somente porque eles os terão encontrado por eles mesmos, para eles mesmos, inscritos no concreto e na evidência de seu cotidiano, e que os terão construído com seus próprios meios, de acordo com suas capacidades reais de apropriação e de compreensão (e não por terem penado desesperadamente com exigências que apenas poucos intelectuais podem satisfazer), é somente por isso que eles poderão provar sua própria inteligência: eles serão os artesãos, e, como os artesãos cuja obra sai de suas próprias mãos, terão orgulho disso. Não é uma pequena conquista, esse orgulho e essa alegria de homens simples, experimentando subitamente, guiados por um especialista que não procura o poder pelo saber, mas se contenta em favorecer a descoberta, que podem sentir-se inteligentes, isto é, neste momento, proprietários de ferramentas intelectuais (sempre em construção) para a elucidação das condições de sua existência.
Então, somente aí, e quando sintam necessidade, eles estarão disponíveis para frequentar as grandes obras, ou convocar os filósofos. Eles fabricarão os conceitos quando encontrarem o limite de seus recursos de linguagem para elucidar uma questão que lhes é cara, e que já tenham interrogado (mas somente neste momento e somente por este motivo). Eles se esforçarão para argumentar ao se depararem com a objeção de seus camaradas, que lhes exigem justificar-se quando perceberão que sua proposição não é suficientemente convincente para os outros ou para eles próprios. Eles irão aprender na marra, e porque dela experimentarão a força, que a exigência crítica vale mais do que certezas aproximativas, das quais eles não sentirão mais a urgência. Eles compreenderão, não porque uma autoridade lhes terá explicado, mas porque terão feito disso experiência, que, como diz Pascal, "a verdade está mesmo em suas opiniões, mas nunca ali onde eles a veem".
Eis aí um problema político bastante recorrente: não é suficiente sonhar, é preciso fazê-lo. Esta atividade social de conhecimento não conseguiria surgir em virtude de um simples desejo, nem mesmo de uma demonstração de sua necessidade ou de sua legitimidade, por mais convincente que ela fosse. Precisamos criar oportunidades favoráveis, encontros favoráveis: precisamos criar suas condições sociais de existência. Não sei se isso pode ser feito aqui e agora. Em parte, isto já existe nas associações de bairro, nos ambientes culturais ou de ensino, nos cafés etc. Podemos aí trabalhar mais e melhor, e começar a pensar na possibilidade e nas condições de espaços eficazes de encontro e de atividade social intelectual (mas também artística, literária...). Precisamos contribuir para a criação de novos valores sociais, ao lado daqueles, hoje partilhados, do trabalho, do conforto, do consumo e da "comunicação": contribuir para fazer com que o conhecimento a serviço da emancipação política e da sabedoria pessoal seja um valor daqui em diante social e comum a todos. Precisamos interrogar o problema não somente a partir das mesas de trabalho e das universidades, mas também a partir da rua, dos bairros, do campo. Para que filosofar quando se trabalha no campo, numa empresa, numa usina, num escritório, numa loja, ou quando não se encontra trabalho? Para nada, é a resposta se se pretende filosofar aí tal como se filosofa na universidade. A tudo, se se inventa uma prática de filosofia que se aplica à singularidade de cada um, enraizada na diversidade do cotidiano e das questões que permitem construí-la. Gramsci, por exemplo, pensava na redação, em 1925, dos cursos por correspondência que propunha à escola do partido. Precisamos hoje de outros modelos, ainda a serem pensados, para todo o povo. No longo prazo. Num contexto igualitário, livre da fome, da servidão e do trabalho alienado, diante do qual a filosofia se faz passar por um luxo para poucos: pode-se começar a filosofar quando toda a energia está reunida no esforço diário e exclusivo de encontrar o que comer?
Existe um povo, enfim, que eu não gostaria de esquecer, mesmo que, por falta de tempo, eu só possa aqui evocá-lo: a população das crianças (entendendo-as, no seu sentido jurídico, como aqueles que não atingiram a maturidade). Reconhece-se que, para muitos, a filosofia trabalha de modo crítico sobre as opiniões constituídas. Por que não trabalhar sobre a constituição das opiniões, numa idade onde, precisamente, o pensamento se constrói; numa idade em que, já desde os cinco anos, as questões metafísicas ou éticas mais difíceis estão prestes a serem postas? Por que não perguntar o que poderia mesmo querer dizer "filosofar" com seres que, etimologicamente, nomeia-se "aqueles que não falam"? Erasmo, antes que Montaigne, defendeu a filosofia infantil. "O homem nasceu para filosofar", ele afirma em seu tratado sobre a educação. Mais ainda, a lição interessa a um encontro internacional sobre filosofia e educação: "De fato, o comum dos homens peca aqui de três maneiras: ou porque eles negligenciam completamente a instrução de suas crianças, ou porque começam muito tarde a formar seus espírito para a filosofia, ou porque as confiam a professores com os quais elas irão desaprender as lições aprendidas". Seria preciso um segundo texto inteiro para abordar, mesmo que superficialmente, esta importante questão. Finalizemos aqui dessa vez.
Eu gostaria de terminar com uma pequena citação do filósofo francês Marcel Conche, que nos encoraja a perseverar:
Filosofar me parece ser a única atividade normal do homem: de um homem qualquer, entendido sem um gênio particular, mas também o homem de gênio (o artista, o poeta) porquanto ele é, vivendo e morrendo, um homem como um outro; pois o que é normal para o homem não é, simplesmente, comer, dormir, beber, amar, coisas que as bestas também fazem; não é viver - limitar-se a viver -, nem trabalhar para comer e comer para viver, mas é não viver sem refletir, quer dizer, sem se perguntar o que ele faz no mundo, o que é o mundo, o que significa a vida - em resumo, o que é normal para o homem é não viver sem filosofar.
Ele afirma, mais adiante, com uma bela lucidez: "todo ser humano tem vocação de tornar-se filósofo e, entretanto, que o homem se torne filósofo... a pressão da coletividade é tal que isto quase nunca acontece". Cabe a nós remediá-lo. Este constitui um problema especificamente filosófico e não conseguirá realizar-se, na ocasião, sem uma determinada intenção revolucionária. Mais uma vez, não nos contentemos com dissertar: experimentemos. Experimentemos a filosofia elementar, ou primeira, e trabalhemos para construir as condições sociais de sua existência.


segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Tempo de trapaça - Por J.R.Guzzo


"Nas demais sociedades civilizadas vale o princípio pelo qual é permitido tudo o que não é expressamente proibido em lei. No Brasil é proibido tudo o que não é expressamente permitido"

Todo cidadão que acompanha, mesmo de longe, o noticiário político seria capaz de jurar que há uma campanha eleitoral em andamento no Brasil e que diversas pessoas querem suceder ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2010. Há a ministra Dilma Rousseff e o deputado Ciro Gomes, do lado do governo, o governador José Serra, pela oposição, e outros mais. Ao mesmo tempo, o público é informado diariamente de que não há nenhuma campanha eleitoral e nenhum candidato à Presidência. Os comícios não são comícios. A propaganda não é propaganda. Os candidatos não são candidatos. O que é isso tudo, então? É exatamente o que parece, mas o governo e a oposição não podem dizer que é. Podem fazer tudo. Mas não podem falar; aí já seria contra a lei, que, na sua ambiciosa lista de regras destinadas a regular tudo, marca o dia 6 de julho do ano que vem para o começo das campanhas. Como se sabe, temos leis eleitorais rigorosíssimas neste país, possivelmente as mais severas do mundo. Enquanto nas demais sociedades civilizadas vale o princípio pelo qual é permitido tudo o que não é expressamente proibido em lei, no Brasil dos tribunais eleitorais a coisa funciona ao contrário: é proibido tudo o que não é expressamente permitido. É uma surpresa, no fundo, que alguém consiga ser eleito com tanta proibição assim – e a saída para os políticos, inevitavelmente, é trapacear. É o que está acontecendo no momento.
É ruim, porque a campanha eleitoral de 2010, como tantas que vieram antes dela, começa em cima de uma falsificação por atacado da verdade. O presidente Lula, por exemplo, viaja sem parar pelo Brasil fazendo comícios e pedindo votos para quem for o candidato do governo – e ameaçando o país com a ruína se o eleitorado cometer a estupidez de preferir um outro nome. Mas ele diz que está "inspecionando obras". (Já da inspeção que a lei manda fazer, a dos tribunais de contas, o presidente vive reclamando.) E os comícios, com ônibus fretado, despesa paga pelo Erário e sorteio de casas entre a plateia? "Qualquer reunião com mais de três pessoas já é comício", diz Lula. Ou seja: o que é que se vai fazer? Afinal, o presidente da República não pode ficar trancado em casa. Se acham que é comício quando ele discursa em lugares onde há gente reunida, paciência. Quanto aos votos que pede para a ministra Dilma, nenhum problema. O presidente diz que está apenas elogiando uma grande servidora do governo – e apenas dando a opinião de que ela seria um colosso como sua sucessora. Que mal haveria nisso?
A ministra Dilma, por sua vez, faz rigorosamente tudo o que os coordenadores de campanha prescrevem para um candidato. Há tempos deixou de comparecer com regularidade ao seu local de trabalho e passou a correr de um lado para outro atrás de votos, seja em shows de música popular com o cantor Dominguinhos, seja em "fiscalização de obras" nas margens do Rio São Francisco; há pouco foi vista inaugurando um estádio de futebol em Araraquara. O que isso tudo teria a ver com as funções que é paga para exercer na Casa Civil? Do lado da oposição, a peça de teatro é estrelada pelo governador José Serra, que quer a Presidência tanto quanto qualquer um dos seus adversários, mas diz que só vai tocar no assunto no ano que vem. Serra não pode fazer campanha aberta como Lula faz; tem de se contentar com os limites impostos pelo seu cargo. Carrega a mão, por exemplo, na propaganda oficial; a última, no gênero, é a decisão da Assembleia Legislativa que autoriza o governo a fazer publicidade de suas obras em outros estados, para "promover o turismo" em São Paulo.
Registre-se, enfim, a notável contribuição do deputado Ciro Gomes, que recentemente passou a ter seu domicílio eleitoral em São Paulo, para manter aberta a possibilidade de candidatar-se ao governo paulista. Mas o deputado não mora em São Paulo; só a Justiça Eleitoral acredita nisso. Tudo o que fez foi passar quatro horas na cidade, no começo de outubro, apresentar um endereço de fantasia e assinar um papel num cartório garantindo que reside ali. Um cidadão "comum", como diria o presidente Lula, não pode ter um domicílio falso; aliás, vive tendo de provar onde mora com contas de luz, correspondência de bancos ou carnês de crediário, e se der um endereço que não é realmente o seu vai, com certeza, arrumar complicação. Já para ser candidato a presidente da República ou governador do estado não há problema nenhum.
Não se sabe, é claro, quem vai ganhar as eleições de 2010. Mas a verdade, desde já, está levando uma surra.

Fonte: Revista Veja - Edição 2136 - 28 de outubro de 2009.
Veja  a imagem em: estagio-e-trainee.blogspot.com/2008/01/fique-...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O blasfemador da internet


      
Para Andrew Keen, o fim da "ditadura dos especialistas" com a era digital poderá dar lugar à "tirania das massas"
      
Por Eduardo Socha


    
Em meados da década de 1990, Andrew Keen era um feliz empreendedor da internet no Vale do Silício (Califórnia), o éden da nova e então promissora economia. Criou várias empresas, algumas não deram certo. Quando chegou o estouro da bolha das "empresas pontocom" em 2001, Keen estava em vias de se transformar no anjo caído do paraíso digital. Resolveu lançar, em 2007, um livro abertamente apocalíptico contra a internet ( O Culto do Amador, publicado neste ano no Brasil).
            
Polemista habilidoso, ganhou fama rápida na grande imprensa norte-americana como o "anticristo da internet", epíteto que ele mesmo endossa, não sem um discreto sorriso no canto da boca. No livro, o jornalista britânico não economizou sua bem talhada virulência crítica para atacar a chamada web 2.0 - o conjunto de comunidades e serviços on-line que incentivam a participação dos usuários, ou seja, a nebulosa de codinomes (blogs, Facebook, Orkut, YouTube, Twitter, Wikipédia etc.) que aos poucos invade nosso cotidiano.
                
Controverso e provavelmente oportunista, o subtítulo do livro deixa entrever um ranço à primeira vista conservador - Como Blogs, MySpace, YouTube e a Pirataria Digital Estão Destruindo Nossa Economia, Cultura e Valores. Afinal, não é exatamente o que pensam os adeptos do movimento da livre cultura, que hoje fazem circular termos como Creative Commons, software livre e copyleft, e prometem a revolução cultural por meio da democratização radical da informação. Para Keen, no entanto, as novas tecnologias da web 2.0 e o enfraquecimento da noção de propriedade intelectual representam um perigo devastador para instituições que protagonizaram a difusão da cultura no Ocidente.
        
            
Creative Commons/Anne Helmond

O jornalista Andrew Keen

      
            
Cita como exemplo o colapso gradual dos grandes jornais nos EUA, das grandes editoras, das indústrias fonográfica e cinematográfica. Seria cômodo enquadrá-lo na figura do ressentido que resolveu investir no catastrofismo inconsequente e, claro, rentável. Mas o que parece incomodar no livro de Keen é o fato talvez de ele mesmo ser um insider e se declarar de esquerda. Ainda mora no Vale do Silício e está em contato permanente com os gurus da economia livre e da contracultura californiana. "Muitos dos meus amigos são empreendedores ali. Eu não era um jornalista que deu um passeio na região e chegou à conclusão de que as coisas iam mal", confirma à CULT.
      
Keen formou-se em história na London University (Inglaterra) e fez pós-graduação em ciência política na Universidade de Berkeley (Califórnia). De passagem pelo Brasil no mês passado, conversou com a CULT sobre as relações entre tecnologia, ideologia e política, a objetividade da imprensa e da informação, e os efeitos da internet na educação.
        
          
CULT - Você não acha que há um excesso de alarmismo em sua crítica à cultura da internet, principalmente dos blogs e das redes sociais, como Orkut e Facebook? Afinal, se as novas tecnologias acenam para uma revolução cultural, pode ser que estejamos vivendo um período de adaptação, com distorções iniciais, mas que, a longo prazo, podem concretizar uma efetiva liberdade de expressão...
          

Andrew Keen - Muito antes de ter escrito meu livro, estudei a história da Europa Oriental, em particular a Revolução Russa, o que me deixou um tanto cético em relação às revoluções. Sempre desconfio de ideias grandiosas e do otimismo das pessoas que defendem argumentos como o fim da história e a revolução democrática.
          
Dito isso, escrevi o meu livro como uma "subversão da subversão". Até então, tudo o que se falava e escrevia era sobre como a internet iria transformar a humanidade, tornando-nos todos livres, felizes e iguais. Não havia ninguém que questionasse essa ideia. Por isso meu livro foi projetado como uma polêmica e vigorosa reação a esse otimismo.
       
Confesso que o tom talvez seja um pouco exagerado, mas algo polêmico é, por definição, algo exagerado. Se eu tivesse escrito um livro mais equilibrado que considerasse um a um todos os prós e contras, ninguém o teria lido. Logo depois que meu livro saiu, vários outros foram publicados contendo argumentos muito semelhantes. Não que eu tenha sido tão original nas minhas ideias, mas várias publicações que se seguiram repetiam as coisas que eu tinha dito. Por isso acredito que precisávamos de um debate amplo a respeito desse assunto.
             
A grande sacada do meu livro é perceber que o novo modelo econômico, a tal "livre economia", não funciona. Uma vez que você dispensa os mediadores e editores, uma vez que qualquer um pode criar conteúdo, o modelo econômico resultante não é viável. O fato de você conseguir colocar um vídeo seu no YouTube não significa que você vá se tornar um produtor profissional, porque ninguém vai pagar por seu trabalho. A mídia sem o papel do editor não é confiável.
      
         
CULT - Você disse que a discussão sobre a web 2.0 não é mais tecnológica, e sim política e moral. O que o Google está fazendo hoje é semelhante ao que os monopólios industriais faziam no século 19. Qual a relação, nesse caso, entre tecnologia e ideologia?
      

Keen - Tecnologia é ideologia. Não quero aqui entrar num debate sobre a definição acadêmica de ideologia. Quando falo em ideologia, estou pensando num conjunto de ideias, ou de ideais, sobre o mundo. Há um excelente livro chamado From Counterculture to Cyberspace [Da contracultura ao ciberespaço], de Fred Turner, um brilhante professor e historiador da tecnologia. O argumento dele é o de que a internet foi criada a partir da inesperada fusão de duas construções ideológicas, dois movimentos ideológicos: o establishment militar, industrial e educacional que emergiu da Guerra Fria e a contracultura política dos hippies do norte da Califórnia, em especial aquela que surgiu em torno da figura de Stewart Brand. Não é coincidência que ambos os grupos tenham tendências libertárias. Muitos norte-americanos que viveram a Guerra Fria tornaram-se obcecados pela ideia de liberdade como oposição ao modelo soviético, ao passo que a cultura hippie defendia ideias semelhantes de questionamento da autoridade. Não surpreende, dessa forma, que a internet, que emergiu como ideologia do cruzamento dessas duas correntes, seja um movimento sem centro, um movimento de arestas que, por definição, não aceita qualquer tipo de autoridade.
          
Portanto, eu diria que existe uma relação muito íntima entre tecnologia e ideologia e que ela é muito mal compreendida. Muitas pessoas acreditam que acordamos um dia e lá estava a internet, como um inesperado presente de Natal. Para entender a tecnologia, é preciso entender as pessoas que a inventaram.
      
Também não é coincidência o fato de muitos dos principais ideólogos dessa nova cultura serem "cristãos renascidos" [ born again christians]. Acredito que existe uma forte ligação entre a cristandade dos renascidos e a internet. É só mais uma versão da velha mitologia cristã...
        
           
CULT - Talvez por isso você seja o "anticristo da internet"...
       
Keen - Sim, é por isso [risos]. Essa questão da ideologia é muito importante para mim. Ao contrário do que muitas pessoas acham, não sou um conservador. Considero-me politicamente de esquerda, mas não sou
hippie e acredito que a esquerda deva repensar sua maneira de lidar com a autoridade. Simpatizo com algumas das ideias que surgiram nos anos 1960, entretanto, vejo como problemática essa tendência anarquista de contestar toda e qualquer forma de autoridade. É a velha discussão entre Marx e os anarquistas, e estou obviamente do lado de Marx. É necessário um partido, uma estrutura. Não sou nenhum Stalin: acredito que é possível acreditar na autoridade sem ser um Stalin.
         
     

Creative Commons/Anne Helmond

Andrew Keen: "a internet é, em alguns casos,
 mais útil para regimes autoritários
do que para os democráticos"
CULT - Já que você falou de política, quais os impactos mais visíveis da internet nesse campo? Recentemente, tivemos um debate no Brasil sobre a regulação da internet para as eleições do próximo ano. O que pensa a respeito da regulação?
         
Keen - Não conheço a situação brasileira, mas acho que provavelmente seria contrário à propaganda política em blogs, porque ela facilitaria a corrupção. O problema é que a palavra blog hoje é vazia de significado, dada a diversidade de páginas que recebem esse nome. Ficaria muito preocupado com a propaganda política feita nesses blogs anônimos, que, a meu ver, levaria à corrupção e também porque a cada dia se torna mais confusa a distinção entre o que é um editorial e o que é pura propaganda.
            
Há uma esperança de que a internet vai transformar a política, acabar com o império dos velhos monopólios. Não estou convencido de que essa promessa política da internet tenha se cumprido. Essa ideia de que agora, graças à internet, os mocinhos chegariam finalmente ao poder, de que a "sabedoria da multidão" agora poderia se manifestar e de que as pessoas finalmente controlariam seus próprios destinos não se mostrou de maneira alguma verdadeira. Pior que isso, acho que ela seja danosa, porque encoraja uma atitude política fantasista e utopista.
          
Outro exemplo do fracasso dessa promessa política da internet é o que aconteceu no Irã, onde todos falavam de uma "revolução do Twitter", que nunca ocorreu, porque os antigos regimes são muito bons em manipular a internet, muitas vezes até melhores que os reformistas. Os chineses, por exemplo, são mestres em investigar a rede de blogs e comunidades virtuais em busca de dissidentes, para persegui-los. Esse uso que os regimes do Irã, da China e da Rússia vêm fazendo dessas ferramentas me faz pensar que a internet é, em alguns casos, mais útil para regimes autoritários do que para os democráticos.
       
            
CULT - Seu livro fala da transição da "ditadura do especialista" para a "ditadura das massas". Seria esse o problema fundamental da web 2.0?
        

Keen - A ditadura do especialista [ expertise] é uma peça importante da era industrial e é fácil criticá-la. De modo geral, acho que foi uma boa coisa. Para mim, essa divisão rigorosa da vida resultou na meritocracia. Não consigo ver o que poderia substituí-la. O sistema educacional é relativamente meritocrático e a maioria das pessoas quer se dedicar a algumas poucas atividades bem pagas, para as quais há uma necessidade limitada de profissionais.
Penso que vivemos uma época em que a ordem meritocrática está sob ataque. É possível reconhecer essa tendência no ataque aos políticos, à mídia, aos economistas. Em alguns casos, esse ataque é merecido, porque essas pessoas fizeram mal o seu trabalho. Mas não sei bem o que vem substituir essa ordem. Não acho que seja exatamente um poder das massas.
            
Aristóteles falava de oclocracia, a tirania das massas, um tipo de regime em que a plebe governa, mas que sempre acaba em tirania. A verdade é que, no fundo, por trás dessa oclocracia digital que vivemos, existem novos oligarcas, indivíduos com imenso poder e que muitas vezes escapam do nosso julgamento, porque não sabemos ao certo quem são. Não acredito na era das massas. Se ela existe de algum modo, o que mais temo são esses oligarcas que se escondem por trás delas e são capazes de mobilizá-las.
         
Por exemplo, no Twitter, é possível ver a influência de pessoas com centenas de milhares de seguidores. O ator inglês Stephen Fry "twitou" uma opinião favorável sobre um livro e esse livro foi de imediato para a lista dos mais vendidos no New York Times. Não estou dizendo que Fry é mal-intencionado. O que estou dizendo é que, uma vez que existem figuras poderosas com vários seguidores, partidos políticos e outras organizações tradicionais se enfraquecem.
          
É essa a mudança que tenho em mente no livro - uma mudança que vai da estrutura organizacional para uma estrutura demasiado centrada no indivíduo. Não sei se soube expressá-la tão bem ao escrevê-lo. A internet é cada vez mais um veículo de aquisição de poder para esses novos senhores feudais digitais, esses barões da nova era, que são imensamente poderosos, algumas vezes mais poderosos do que as organizações, o que pode ser muito perigoso. Os EUA precisam de checks and balances [a separação tradicional de poderes na democracia]. O que me incomoda é que estamos eliminando o checks and balances. Quando você se livra deles em nome da justiça, da liberdade, da igualdade, na verdade você está criando as bases para uma ditadura.
      
       
CULT - Você fala muito de analfabetismo digital. As escolas ainda não estão preparadas para a internet?
           

Keen - O que me preocupa são as crianças que obtêm informação na Wikipédia. Os melhores sistemas educacionais são os que são supervisionados por seres humanos. É muito perigoso quando se disponibilizam sistemas de conhecimento não supervisionados na internet, como no Google ou na Wikipédia. A internet pode ser uma ótima ferramenta para as crianças, mas cada vez mais você as vê usando e citando a Wikipédia, por exemplo. O que precisamos ensinar a essas crianças é o alfabetismo midiático. Temos de fazê-las entender que toda informação vem acompanhada de uma bagagem cultural.
           
Quem quer que seja o autor, todo texto é, em certo sentido, uma polêmica. Todo texto tem o seu viés, o que não significa que seja necessariamente corrupto. O desafio para as crianças é entender isso, em vez de apenas ler esse texto como mera verdade. E, quando um texto aparece na internet, ainda que no blog mais obscuro, ele ganha esse aspecto de verdade, sobretudo se endossa uma opinião prévia do leitor.
      
        
CULT - O que fazer?
      

Keen - Penso que os professores deveriam focar seus esforços em ensinar as crianças a ler e enxergar o que está por trás desse tipo de texto. Não é necessário ensiná-las como usar essas novas mídias, porque elas são projetadas para ser intuitivas. O grande desafio do século 21 é o alfabetismo midiático. Se queremos que essas crianças cresçam para tornar-se bons cidadãos, capazes de votar com consciência e de tomar decisões maduras sobre o mundo, precisamos ensiná-las a usar essas ferramentas com ceticismo e a diferenciar o que é confiável do que não é. Do contrário, acabaremos por infantilizar nossa cultura.
             
   
CULT - Como você é um dos maiores críticos da Wikipédia, procurei seu nome no site em inglês. No item "crítica à internet", lê-se que você não vê problemas em ser chamado de elitista e que, ao ser perguntado sobre se a internet era pior do que o regime nazista, você teria dito "pelo menos os nazistas não deixavam os artistas sem emprego". Como reage a isso?
    

Keen - [Risos] É engraçado você ter me perguntado isso, porque esse episódio nos conduz direto ao centro do problema. Trata-se de um ótimo exemplo das distorções e mal-entendidos causados pela cultura da internet. Veja você: Stephen Colbert é um dos comediantes mais populares dos EUA. Seu programa é um dos mais vistos da TV norte-americana, com uma audiência de vários milhões de expectadores. Não é bem um entrevistador, mas um comediante que criou uma persona paródica por meio da qual se apresenta como um entrevistador populista de direita. As entrevistas que faz não são entrevistas sérias, ao contrário, elas têm essa função cômica e paródica. Ele está ali mais para tirar sarro da cara do entrevistado do que outra coisa.
                  
Quando fui convidado para o programa dele, pensei que não perderia nada em ir falar do meu livro, mas logo me avisaram que, se havia uma coisa que eu deveria evitar, era tentar ser engraçado. Assim, uma vez no programa, decidi jogar o jogo cômico de Colbert e também eu interpretei o meu papel. Aí ele me encarou e me disse: "O senhor é um elitista!". E eu retruquei com aparente indiferença: "E o que há de errado nisso?". Depois disso todos me chamam de elitista quando me citam na Wikipédia.
          
Quanto à referência ao nazismo, obviamente trata-se de uma piada. Colbert colocou satiricamente essas palavras em minha boca, sem que eu as tivesse de fato dito. Em primeiro lugar, sou judeu. Em segundo lugar, fiz estudos acadêmicos sobre a história da Alemanha. Estou longe de ser alguém que não tem ideia do que aconteceu na Alemanha nazista.
Isso mostra o absurdo dessa cultura, na qual sou citado com base em um programa humorístico.
     
Mostra que as pessoas que escrevem na Wikipédia são pessoas com pouca cultura, que não têm senso de contexto nem entendimento aprofundado do mundo. Mostra ainda que toda essa cultura se enraíza no que chamo de uma comunicação nebulosa. Fico até contente que a entrada virtual sobre mim não tenha sido corrigida porque ela revela a péssima qualidade da Wikipédia.
     
A meu ver, o maior problema da Wikipédia não é o fato de ela conter equívocos e, sim, o de não haver ninguém que avalie os artigos e assuma a responsabilidade por eles. Eu sempre gosto de lembrar que o verbete da Pamela Anderson na Wikipédia é maior e mais meticulosamente elaborado do que o da Joana d'Arc, ou o da Hannah Arendt.

(...)

CULT - Você acredita no relativismo da verdade jornalística?

 


Keen - Tomemos como exemplo a questão da Palestina, que é um dos assuntos mais complexos e polêmicos que podemos abordar, uma questão sobre a qual está claro que não existe "a verdade", mas uma série de verdades conflitantes. Como você se informaria sobre o que está acontecendo no Oriente Médio, se quisesse realmente compreender a situação? A única forma de fazê-lo é ler as várias opiniões contrárias. Você teria de ler jornais que sejam anti-Israel e pró-Palestina, ler os artigos pró-Israel de Thomas Friedman no New York Times, os artigos de Robert Fisk no Independent, ler o Financial Times, cujo posicionamento é mais equilibrado. A questão com os jornais é que eles não apresentam ao leitor um pacote mastigado de notícias. Se ele quiser entender o mundo para se tornar alguém mais informado e, como consequência, um melhor cidadão e um melhor eleitor, ele tem de se esforçar, tem de trabalhar para isso, tem de estar disposto a ler opiniões diferentes e refletir sobre elas com um mínimo de ceticismo. Não estou dizendo que, se você ler todos esses artigos diferentes sobre o Oriente Médio, será capaz de extrair deles "uma verdade".
 


Acredito que a mídia mainstream criava o alfabetismo midiático na era em que crescemos. Hoje, a internet, por ser anônima, por ser um meio de comunicação cujas fontes são tão difíceis de avaliar e julgar, por ser, na verdade, incrivelmente tendenciosa, suscita o analfabetismo midiático.
 



Na verdade, isso não se deve exclusivamente à internet. Isso se deve, sobretudo, às transformações sofridas por nossa cultura, cada vez mais focada em rápidas acomodações intelectuais que deem conta da enorme velocidade do fluxo de informações.


Em resposta aos relativistas culturais radicais que dizem não haver verdades, digo que, sim, existem verdades. Há verdades nas notícias. Os terroristas do 11 de Setembro de fato jogaram os aviões contra aqueles prédios. Pode haver diferentes interpretações para esse fato, mas nada faz com que deixe de ser algo que realmente aconteceu, um fato e não uma convenção.
 


Mas, quando você elimina a responsabilidade do autor sobre o texto, quando você elimina a ligação que existe entre o escritor e o leitor, tudo se torna possível em termos de desonestidade. O que eu quero dizer é que a verdade, seja ela qual for, é muito mais escorregadia agora do que era na época da mídia mainstream.

   

CULT - Você mesmo disse que seu livro, publicado originalmente em 2007, contém erros...


Keen - Não diria erros, mas fraquezas. Idealizei demais a mídia


mainstream, eu deveria ter sido mais crítico a esse respeito.
 
 

CULT - Certo. Qual seria, de todo modo, a ideia central que não foi abalada de lá para cá?

 
Keen - A ideia fundamental é a de que a "cultura supervisionada" [curated culture] é algo bom; que o velho mundo midiático, o complexo ecossistema de indivíduos entre o autor e o público, serve para filtrar e melhorar o conteúdo. Quando você se desfaz dessa mediação, com o argumento de que a nova mídia é mais eficiente e lucrativa, também está se desfazendo de valores fundamentais e os resultados disso podem ser catastróficos.


Outra ideia importante é a de que a mídia mainstream é razoavelmente eficiente e, sem dúvida, mais eficiente que a nova mídia em encontrar e polir talentos. O talento é uma constante em nossa história. Sempre existiram pessoas talentosas. Mas a maioria das pessoas não o é. Isso não significa que elas sejam más, ou que mereçam ir para o inferno. Elas apenas não são muito talentosas e não têm nada de interessante a dizer. O desafio da mídia é encontrar as pessoas talentosas e lapidar seu talento, para poder torná-lo vendável. Quando John Hammond viu Bob Dylan numa casa noturna de Nova York em 1961, Dylan ainda não estava pronto para ser um popstar, mas Hammond era um olheiro talentoso, podia reconhecer a genialidade e o potencial daquele homem em sua frente. Cinquenta anos depois, Dylan é provavelmente o mais importante ícone cultural norte-americano do século 20. O problema é que nesse novo mundo os Dylans se perdem. Estamos jogando fora nossos talentos. Nesse novo mundo os que vão aparecer serão os autopromotores, que com frequência veiculam ideias bastante banais. Qualquer ideia mais substanciosa se perde.
 


Confesso que não é um argumento muito original. Já tinha sido desenvolvido pela Escola de Frankfurt. Porém vivemos um momento em que essa discussão se tornou particularmente aguda. Nesse sentido, muitas vezes brinco dizendo que o meu livro é uma espécie de " Adorno for dummies" [Adorno para leigos].







Fonte: Revista Cult - Edição 140


 

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Em meio ao tsunami da informação por Paulo Ghiraldelli Jr



Logo após a crise do PT de 2005, a professora Marilena Chauí escreveu que não era dada à prática de ler jornais.  Uma parte da juventude, já decepcionada com ela por causa da sua defesa pouco racional do PT, ficou mais inconformada ainda com tal declaração. Afinal, ela, que tanto fez na imprensa, chegando até a ter uma coluna semanal na Folha de S. Paulo, uma vez vendo a imprensa ter de malhar o PT, agia como a avestruz: cabeça enfiada no buraco, xô realidade. Era isso?
Não vou dizer que não era. É claro que Marilena estava magoada. Ninguém coloca 40 anos de sua vida em uma proposta política e, então, vendo tudo desmoronar, aceita o destino com tranqüilidade. Todavia, as pessoas esperam que o filósofo saiba enfrentar coisas assim com sabedoria. Até mesmo quem não tem uma idéia correta do que é um filósofo, quer acreditar que se trata de um intelectual que tem a mente aberta, alguém que pode mudar de idéia, pode engolir adversidades sem teimosia. Essa cobrança recaiu sobre ela. Veio então o tal “silêncio obsequioso”. Marilena se recolheu à academia e desta à aposentadoria. Uma vez no Conselho Nacional de Educação, justamente ali, onde poderia falar grosso, parou de falar.
Nas cambalhotas desses passos pouco alvissareiros, penso que Marilena acertou em alguma coisa. Atirou no que viu e acertou no que não viu. Ela acreditou que não deveria mais dar importância à imprensa porque esta estava distorcendo tudo. Acertou, mas não pelo que falou, e sim pelo que não falou.
De 2005 para cá a imprensa brasileira, especialmente os jornais impressos e as revistas, tem caminhado rapidamente na mesma direção de fragilização da imprensa mundial. A divulgação das informações via Internet demorou a ameaçar a imprensa, mas, enfim, ameaçou. A crise, agora, é sentida por todos. Os jornais não estão se agüentando nas pernas. Então, inicia-se uma transformação psicológica, às vezes não clara para os próprios jornalistas que a vivem, que segue na direção de agradar o leitor a qualquer custo. Os jornais querem agradar. Os jornalistas querem ser lidos. Querem mostrar para os chefes de redação que eles são lidos, que são importantes. Empurram para fora dos jornais e para fora de todo lugar intelectuais que eram amigos, mas que, agora, são concorrentes. Ao mesmo tempo, há uma bajulação do leitor jamais vista. Com isso, o eco do senso comum cresce absurdamente. Nasce a ditadura do senso comum sobre a imprensa e, quanto mais democracia temos – graças à Internet – mais a informação é produzida por nós mesmos para nós mesmos segundo nosso gosto mais pasteurizado. O resultado é este que vivemos: a cada dia nós temos uma dificuldade imensa de usar da imprensa para levantar elementos corretos para uma crítica de instituições ou pessoas ou governos que não são criticados pela maioria, ou pelo que se pensa que é a maioria.
A situação fica engraçada, pois até as frases que foram usadas, no passado, para atacar essa situação, são reiteradas sem mais conteúdo algum, e criam o sentido oposto. Por exemplo, quem hoje diz “a unanimidade é burra”, não diz nada. Pois exatamente quem fala isso, está dentro de uma unanimidade setorizada, que lhe dá a impressão de estar atuando de modo crítico e ousado.  O fenômeno dos blogs, twitters, podcasts e vídeos criou um mundo de jornalistas amadores que competem quase de igual para igual com os profissionais dos jornais impressos. Conquistam leitores. Trabalham de graça. Os jornalistas profissionais, desesperados, não conseguem não publicar em seus próprios blogs seus furos, pois ficam com medo de que o furo não seja furo em um prazo de segundos. Então, eles próprios solapam as bases financeiras dos jornais. A idéia trazida pela Internet é que toda notícia é gratuita para o consumidor, e que a imprensa deva ser virtual e tire seu lucro da propaganda. Sim! Mas a fase de transição para essa situação que aponta ser a correta é terrível.
Nessa fase, muitos imaginam que não irão sobreviver – e estão certos. Então, se agarram ao lema, às vezes pouco claro, mas que está virando regra: “não podemos perder o leitor”. Assim, se eu publico uma pesquisa, encomendada pelo governo, e esta pesquisa diz que Lula está com 80% de aprovação popular e, depois, tenho de publicar outra em que ele cai de aprovação, fico temeroso de publicar esta segunda, pois posso não só desagradar o governo, que paga a maior parte de minha propaganda, mas posso desagradar o leitor, que não quer que o país entre em crise e prefere acreditar que seu presidente está fazendo a coisa certa, e que vai bem. Em poucos movimentos, o eco do senso comum vai catalisando a si mesmo e, ao final, há uma total incapacidade de crítica.
Não estou dizendo a bobagem que ouvimos nos anos noventa, de que estávamos sob o tacão do “pensamento único”. Há diversidade, é claro, pois mil coisas estão acontecendo e sendo noticiadas com uma velocidade nunca vista antes, e num volume assustador. Todavia, essa diversidade, ela própria, tende a formar uma perigosa unidade momentânea de fundo conservador.
Eis como isso funciona. O volume de matérias que vai de todos para todos é imenso e a velocidade da troca é intensa, mas cada vez mais ele pode, em determinados momentos, seguir um único corredor, com um efeito de falsa mobilização. E isso até pelo fato que a análise não é mais permitida, todo mundo repassa o que recebe sempre tentando só chamar a atenção.  O caso do fora Sarney na imprensa e no twitter foi significativo disso. Sarney ficou sólido a cada dia, com apoio de Lula – era visível isso. Mas a gritaria do eleitor aumentou contra ele, uma vez que ele começou a provocar o leitor a partir de suas declarações no Senado. Ao mesmo tempo, todo e qualquer movimento de rua contra ele foi barrado, uma vez que o PT, o único partido com capacidade de mobilização de rua, aderiu à proteção de Sarney. Isso não causou revolta contra Lula, pois a Internet catalisou a raiva, mas de uma forma esquisita. Vários que votam em Lula, mesmo sabendo da preferência do Presidente pelo Senador, vieram para o lado dos que reclamaram do Senador apenas por ódio geral à política, e todos descontaram o ódio contra Sarney no twitter. Ora, isso gerou um movimento falso de oposição. Não estou dizendo que o movimento virtual é falso, o que estou contando é que, neste caso, surgiu sem conteúdo. Enquanto isso, a própria Justiça conseguiu calar a boca do Estadão que, por sua vez, agradeceu o fato. Pois se pudesse atacar Sarney até o final, iria acabar por bater em Lula e, então, sofreria a retaliação. Retaliação não só de Lula mesmo, que poderia tirar as estatais da jogada de alimentar a imprensa, mas retaliação do leitor. Esta última talvez viesse a ser até mais perigosa que a de Lula. Ao menos é isso que corre pela cabeça de muitos dos jornalistas.
Pode ser que este fenômeno que estou descrevendo aqui não dure muito. Pode ser quer a própria Internet, daqui a pouco, mostre que ela tem caminhos de liberdade que não estamos sabendo usar no sentido de mudanças substanciais, e não da reiteração do senso comum que estamos vivendo. Mas, no momento, especialmente no Brasil, o que estamos vivendo é isso. Nenhum de nós que está nesta avalanche de dar e passar informações sabe se o que estamos ouvindo é algo que podemos repetir sem ferir nosso único real desejo atual, o de sobreviver na tarefa de dar e passar informações, de se fazer notar, mesmo que não sejamos profissionais da imprensa. Tudo que todos começam a desejar, em uma situação assim, é não ofender aquilo que imaginamos que é o pensamento do senso comum.
Dessa forma, uma série de questões são criticadas e comentadas, mas somente na sua superfície. Ninguém quer aprofundar nada. A autocensura, essa figura que parecia que não mais iria estar entre nós, voltou. Não temos medo do tal “censor da ditadura”, que não existe mais, temos medo de nós mesmos, de falarmos algo que não condiz com a psicologia cordial que se instaurou no meio intelectual. Todos nós queremos ser conscientes, críticos, mas cordiais. Não queremos nos inviabilizar perante o comprador de nosso produto, o texto. Assim é que estão funcionando os jornais impressos, e também a TV. Aliás, parte da academia já havia aderido a isso há algum tempo. O poder de fogo do blogs, de reiteração do senso comum, faz os jornalistas não afrontarem mais ninguém. Jornalistas de esquerda e de direita chegam a um acordo tácito. Eles só podem falar na medida em que não contrariam seus públicos cativos. E eles estão confusos em saber qual o seu público cativo. Tornam-se conservadores em costumes na medida em que disputam com os blogs a preferência do leitor. Pois os blogs, na sua maior parte, representam a emergência dos escolarizados não politicamente engajados. Eles representam uma classe média conservadora em costumes que, enfim, sempre odiou ter de ir para a rua ou para os partidos para ter de mudar as coisas. Os jornalistas acreditam que estão perdendo para essa gente, e então, passam a reiterar o que dizem os blogs. O senso comum se amplia assustadoramente com essa alimentação de dupla mão.
Dessa forma, o que ocorre entre nós é um movimento quase que inverso do que se deu com o “fenômeno Obama”. Nos Estados Unidos, os não participativos viram nos blogs, vídeos e similares a sua chance de terem “um novo partido” que, enfim, atropelou pela esquerda o Partido Democrata e o Partido Republicano. No Brasil, não sei se podemos falar do mesmo fenômeno, vindo da direita. Mas, ao menos no momento, podemos falar de um fenômeno parecido, mas no sentido do conservadorismo moral, tanto na direita quanto na esquerda.  Isso está levando de roldão os jornalistas, mesmo os mais atentos, mesmo os que se achavam sabidos e autoconscientes. Cada profissional da escrita está tentando esticar o braço e dizer “eu estou aqui, aqui ó”.
Ainda que esse movimento possa, em alguns momentos, ser menos conservador que agora, o fato é que tudo vai se tornar mais aguerrido logo. Pois junto com a imprensa jornalística também o livro vai se modificar muito, uma vez que aquele que seria o potencial leitor logo estará cativo de programas de TV em canais online dirigidos a um público diminuto e específico. Este público seria o leitor do livro daquele intelectual que, neste futuro próximo, estará dirigindo o programa de TV.  Isso nós vamos assistir ainda neste final de década.


© Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo


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