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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O anjo da história, por José Francisco Botelho


Desajustado, eclético e visionário, o filósofo alemão é (ainda hoje) um dos melhores intérpretes de nossa época



Muitas vezes, quem melhor capta a essência de uma época são aqueles que nela não se ajustam: os náufragos da história, condenados a lutar de forma apaixonada contra o tempo em que nasceram – e, por isso mesmo, capazes de vivê-lo e de interpretá-lo com intensidade única. Nesse sentido, o judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940) encarnou como poucos a alma da modernidade – porque nela se sentia desconfortável, desorientado e cheio de angústia. Homem de sensibilidade passadista e aspirações utópicas, foi um espírito do século 19 transportado para o século 20: viu a civilização industrial com olhos de estrangeiro e por isso foi capaz de compreendê-la profeticamente.

Crítico literário, pensador político e filósofo da história, Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental. Profundamente judeu e profundamente alemão, só se sentia realmente em casa passeando pelas ruas de Paris – cidade que descrevia deliciosamente como “a capital do século 19”. Era dono de grande erudição, mas jamais se tornou um erudito profissional: desprezado pelas academias durante a vida, só foi por elas endeusado após a morte. Deixou- se seduzir pelo marxismo, mas jamais se encaixou no padrão do intelectual materialista, guardando até o fim da vida um viés místico herdado da tradição judaica. Todos esses ingredientes fizeram dele um desajustado universal. Não foi um favorito da fortuna, e sabia disso – até o último momento, sua existência foi marcada por uma mistura de má sorte, brilhantismo e trágica autoconsciência. Foi um daqueles que, no dizer do latino Cícero, “só venceram na morte”.

Walter Benjamin

O berlinense Walter Benjamin (1892-1940) debruçou-se com igual brilhantismo sobre a literatura e o cinema, a política e a propaganda. Seus escritos continuam influenciando críticos e pensadores ao redor do mundo.


Inadequação crônica

Walter Benjamin nasceu em Berlim, em uma família de judeus assimilados, nos tempos do Império Alemão. No início da juventude, assistiu o Velho Mundo descer aos infernos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Das ruínas da belle époque, emergiu uma Europa mecanizada e cheia de traumas. Mais tarde, em um ensaio, descreveria o choque dessas mudanças: “Uma geração que fora à escola em bondes puxados por cavalos se encontrou, subitamente, em uma paisagem onde tudo se alterara e nada permanecia igual ao que fora antes – exceto as nuvens e, debaixo delas, em meio a explosões, o frágil e minúsculo corpo humano”.

Benjamin jamais se adaptou aos novos tempos. Os fados o haviam dotado de dons brilhantes, mas incompatíveis com o mundo que o cercava. Tinha uma mente eclética e fascinada pelas minúcias, numa época em que a especialização e as generalizações ideológicas imperavam. Seu campo de estudo e fascínio era a vida humana: refletia com igual profundidade sobre a literatura alemã, a história dos brinquedos e a Hagadá (livro da Páscoa) judaica. Sua recusa à especialização custou-lhe a carreira acadêmica. Em 1925, tentou ganhar um diploma de livredocência na Universidade de Frankfurt com uma dissertação sobre o barroco alemão. Os caciques do departamento de letras acharam que o trabalho pouco tinha a ver com literatura e o enviaram à faculdade de filosofia. Os filósofos do instituto, por sua vez, consideraram que ali havia literatura demais e o mandaram de volta aos literatos. O século 19 saberia apreciar a figura do cavalheiro diletante, o hoje legendário homem culto, que ponderava ao sabor de sua biblioteca e podia falar sobre quase tudo sem dizer tolices – mas qual personagem seria mais ameaçador no tecnocrático século 20? Impossibilitado de lecionar, por excesso de inteligência, Benjamin passou a ganhar a vida com traduções e esporádicos artigos para jornais e revistas (o que faz dele, hoje, uma espécie de santo padroeiro dos escritores free-lancer).

Outro motivo de desentendimento entre Benjamin e sua época foi um fenômeno moderno que o próprio autor diagnosticou, em ensaios como O Narrador, de 1935: a perda da experiência coletiva. Para Benjamin, as sociedades baseadas no artesanato viviam num tempo lento e orgânico, ritmado pelos trabalhos manuais, um tempo em que as experiências individuais podiam sedimentar- se e transmitir-se gradualmente em tradições compartilhadas, como as formações minerais que se depositam gota a gota. A civilização industrial havia esfacelado esse mundo feito de vagar, memória e contemplação. No século 20, os acontecimentos passaram a se amontoar de forma tão veloz que a mente humana se tornou impermeável à realidade. Desnorteado, desprovido daquele senso de pertença que era tão natural aos artesãos de outrora, o homem industrial estava condenado a ser o fragmento de um quebra-cabeça cuja forma não percebia. “Por isso, parecemos estar perdendo uma faculdade que antes nos parecia segura e inalienável”, escreve Benjamin, “a faculdade de intercambiar experiências”.

Em poucos lugares do mundo, essas mudanças eram tão notáveis quanto na Alemanha dos anos 1930, que vivia uma industrialização galopante, acompanhada pela corrida armamentista e pela ascensão do nazismo. Em 1933, Benjamin trocou Berlim por Paris, que então era o porto seguro dos desajustados e dos boêmios. Lá, viveu alguns dos anos mais felizes de sua vida. Mesmo no agitado coração do século 20, Paris continuava sendo “capital do século 19”. Flanando por seus bulevares em peregrinações diárias, Benjamin conseguia reencontrar o que mais lhe fazia falta no turbilhão moderno: o sabor da lentidão, que é a face amena e modesta da eternidade.

Mas esse idílio acabou em 1939. Em agosto daquele ano, o ditador soviético Joseph Stalin assinou um pacto de não agressão com Hitler – o que lançou boa parte dos intelectuais marxistas da Europa num estado de perplexidade incrédula. Dois me- ses depois, os nazistas invadiam a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. E foi sob o choque desses acontecimentos que Benjamin pôs-se a redigir, no início de 1940, um de seus textos mais pungentes: as curtas, melancólicas e eloquentes Teses sobre o Conceito de História, último escrito que completou antes de morrer.

Ruínas ao léu

Benjamin fora introduzido ao marxismo na década de 1920 graças a seus camaradas Theodor Adorno e Bertold Brecht – mas, à época do pacto entre Hitler e Stalin, já havia se desiludido com o comunismo real. E, a bem da verdade, sempre fora um marxista um tanto sui generis. O misticismo judaico acompanhou-o da infância ao túmulo. Sempre foi intelectualmente fascinado pela doutrina judaica do Messias, o futuro enviado de Deus, que virá redimir as confusões da história e encenar o epílogo de nossa tragicômica epopeia na terra. A decepção política e o sonho teológico perpassam suas Teses, escritas em tons de elegia e de parábola, num estilo de intensidade ominosa. Nessa reflexão profunda e urgente feita à beira do abismo, Benjamin lança um ataque certeiro contra o credo máximo daquele mundo que enlouquecia: a fé no progresso inelutável da humanidade.

Pelo menos desde o início da Revolução Industrial, o Ocidente se convencera de que o avanço técnico era sinônimo de avanço moral. A novidade de hoje, por banal que seja em si mesma, é sempre mais valiosa, mais sublime, mais respeitável que a novidade de ontem. No centro dessa concepção, está a ideia de que o presente é necessariamente melhor que o passado – em todos os aspectos. Segundo Benjamin, o culto ao Deus Progresso era uma neurose universal da qual o marxismo também padecia: para os materialistas clássicos, a história da humanidade era um fluxo implacável rumo à utopia e a revolução comunista era o resultado natural – e, portanto, acima de críticas – do desenvolvimento humano.

No lugar do Deus Progresso, Benjamin colocou o demônio da catástrofe. O avanço da técnica, o domínio material sobre a natureza, a capacidade de erigir prédios e detonar bombas – nada disso, argumenta Benjamin, tem um valor intrínseco em si mesmo. O desenvolvimento moderno pode ser uma aceleração rumo ao desastre. O progresso, quando desabrido e arbitrário, é a pior forma de regresso. E Stalin lá estava, ao lado de Hitler, para provar que o “resultado natural” da história podia ser o oposto da utopia. Essas sombrias intuições estão expressas com soberba imaginação poética em um dos parágrafos mais belos na história do pensamento. É a Nona Tese de Benjamin, escrita sob a inspiração do Angelus Novus, uma aquarela do suíço Paul Klee.

Na pintura, uma desajeitada figura angélica parece voar em marcha à ré, com os olhos fixos no caminho que vai deixando para trás. Trancado em seu quarto enquanto o exército alemão se aproximava, Benjamin observou longamente a aquarela de Klee e por fim escreveu: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. O anjo gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se a suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempesta-
de é o que chamamos de progresso”. O involuntário Anjo da História é uma dessas raras imagens que transcendem interpretações e dispensam comentários. Sabemos simplesmente que ele segue voando e que as ruínas ainda se acumulam ao léu.

Walter Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental

Naufrágio anunciado

Benjamin fugiu de Paris em junho de 1940, um dia antes que o exército alemão entrasse na capital – e a partir de então teve de perambular de cidade em cidade, carregando uma valise cheia de manuscritos inéditos, com a Gestapo em seu encalço. Em agosto daquele ano, conseguiu escapar para a Espanha. Seu plano era chegar a Portugal e dali emigrar para os Estados Unidos. Benjamin já estava na cidade fronteiriça de Portbou, na Catalunha, quando recebeu a notícia fatídica: o governo de Franco cancelara os vistos de todos os refugiados vindos da França. Alquebrado e exausto, após meses de pânico e fuga, Walter Benjamin tomou uma overdose de morfina em seu quarto de hotel, em 25 de setembro de 1940. Sua valise perdeu-se e até hoje não sabemos que manuscritos continha. As folhas rabiscadas com as Teses sobreviveram num dos raríssimos lances de sorte na vida de seu desafortunado autor: antes de fugir de Paris, ele entregara uma cópia a sua amiga, a filósofa Hannah Arendt, que, meses depois, conseguiu escapar para os Estados Unidos.

Se a execução de Sócrates foi o mito fundador da filosofia ocidental, o suicídio de Benjamin simbolizou de forma exemplar o naufrágio da modernidade. Um naufrágio anunciado: considerados em perspectiva, seus escritos têm uma sombria aparência de vaticínio. A disciplinada selvageria do Holocausto, com sua industrialização da morte em escala de milhões, seria impensável sem o avanço técnico e a mecanização das sociedades industriais. Mas o pensamento de Benjamin não é um simples aviltamento do presente ao sabor de idealizações do passado. Pelo contrário: em sua concepção da história, a catástrofe é permanente; cada nova era estraçalha algo de precioso que o período anterior conseguiu, por algum tempo, preservar. A redenção humana só virá quando o doloroso contínuo da história se interromper.

Como a revolução comunista falhou, só restava a Benjamin esperar que o prometido Messias judaico viesse um dia restaurar os escombros do Anjo desalentado. Em uma carta escrita a Hannah Arendt, em 1935, ele resumiu suas considerações sobre o futuro do ser humano – um pêndulo que oscila entre a redenção imaginada e o apocalipse provável. “Nesse planeta, um grande número de civilizações pereceu em sangue e horror. Naturalmente, é de se desejar que o planeta algum dia experimente uma civilização que renuncie a tudo isso... Mas é terrivelmente improvável que nós consigamos dar esse presente ao nosso mundo. E, se não o fizermos, o mundo finalmente punirá a nós, presenteando- nos com o Juízo Final.”

Livros

Obras Escolhidas I, Walter Benjamin, Brasiliense A Filosofia de Walter Benjamin, Benjamin/Osborne, Zahar

Texto José Francisco Botelho | ilustração Estúdio Area | design FMAISG

domingo, 12 de dezembro de 2010

O Anjo da História, por José Francisco Botelho

Desajustado, eclético e visionário, o filósofo alemão é (ainda hoje) um dos melhores intérpretes de nossa época


Muitas vezes, quem melhor capta a essência de uma época são aqueles que nela não se ajustam: os náufragos da história, condenados a lutar de forma apaixonada contra o tempo em que nasceram – e, por isso mesmo, capazes de vivê-lo e de interpretá-lo com intensidade única. Nesse sentido, o judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940) encarnou como poucos a alma da modernidade – porque nela se sentia desconfortável, desorientado e cheio de angústia. Homem de sensibilidade passadista e aspirações utópicas, foi um espírito do século 19 transportado para o século 20: viu a civilização industrial com olhos de estrangeiro e por isso foi capaz de compreendê-la profeticamente.



Crítico literário, pensador político e filósofo da história, Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental. Profundamente judeu e profundamente alemão, só se sentia realmente em casa passeando pelas ruas de Paris – cidade que descrevia deliciosamente como “a capital do século 19”. Era dono de grande erudição, mas jamais se tornou um erudito profissional: desprezado pelas academias durante a vida, só foi por elas endeusado após a morte. Deixou- se seduzir pelo marxismo, mas jamais se encaixou no padrão do intelectual materialista, guardando até o fim da vida um viés místico herdado da tradição judaica. Todos esses ingredientes fizeram dele um desajustado universal. Não foi um favorito da fortuna, e sabia disso – até o último momento, sua existência foi marcada por uma mistura de má sorte, brilhantismo e trágica autoconsciência. Foi um daqueles que, no dizer do latino Cícero, “só venceram na morte”.



Walter Benjamin


O berlinense Walter Benjamin (1892-1940) debruçou-se com igual brilhantismo sobre a literatura e o cinema, a política e a propaganda. Seus escritos continuam influenciando críticos e pensadores ao redor do mundo.



Inadequação crônica


Walter Benjamin nasceu em Berlim, em uma família de judeus assimilados, nos tempos do Império Alemão. No início da juventude, assistiu o Velho Mundo descer aos infernos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Das ruínas da belle époque, emergiu uma Europa mecanizada e cheia de traumas. Mais tarde, em um ensaio, descreveria o choque dessas mudanças: “Uma geração que fora à escola em bondes puxados por cavalos se encontrou, subitamente, em uma paisagem onde tudo se alterara e nada permanecia igual ao que fora antes – exceto as nuvens e, debaixo delas, em meio a explosões, o frágil e minúsculo corpo humano”.



Benjamin jamais se adaptou aos novos tempos. Os fados o haviam dotado de dons brilhantes, mas incompatíveis com o mundo que o cercava. Tinha uma mente eclética e fascinada pelas minúcias, numa época em que a especialização e as generalizações ideológicas imperavam. Seu campo de estudo e fascínio era a vida humana: refletia com igual profundidade sobre a literatura alemã, a história dos brinquedos e a Hagadá (livro da Páscoa) judaica. Sua recusa à especialização custou-lhe a carreira acadêmica. Em 1925, tentou ganhar um diploma de livredocência na Universidade de Frankfurt com uma dissertação sobre o barroco alemão. Os caciques do departamento de letras acharam que o trabalho pouco tinha a ver com literatura e o enviaram à faculdade de filosofia. Os filósofos do instituto, por sua vez, consideraram que ali havia literatura demais e o mandaram de volta aos literatos. O século 19 saberia apreciar a figura do cavalheiro diletante, o hoje legendário homem culto, que ponderava ao sabor de sua biblioteca e podia falar sobre quase tudo sem dizer tolices – mas qual personagem seria mais ameaçador no tecnocrático século 20? Impossibilitado de lecionar, por excesso de inteligência, Benjamin passou a ganhar a vida com traduções e esporádicos artigos para jornais e revistas (o que faz dele, hoje, uma espécie de santo padroeiro dos escritores free-lancer).



Outro motivo de desentendimento entre Benjamin e sua época foi um fenômeno moderno que o próprio autor diagnosticou, em ensaios como O Narrador, de 1935: a perda da experiência coletiva. Para Benjamin, as sociedades baseadas no artesanato viviam num tempo lento e orgânico, ritmado pelos trabalhos manuais, um tempo em que as experiências individuais podiam sedimentar- se e transmitir-se gradualmente em tradições compartilhadas, como as formações minerais que se depositam gota a gota. A civilização industrial havia esfacelado esse mundo feito de vagar, memória e contemplação. No século 20, os acontecimentos passaram a se amontoar de forma tão veloz que a mente humana se tornou impermeável à realidade. Desnorteado, desprovido daquele senso de pertença que era tão natural aos artesãos de outrora, o homem industrial estava condenado a ser o fragmento de um quebra-cabeça cuja forma não percebia. “Por isso, parecemos estar perdendo uma faculdade que antes nos parecia segura e inalienável”, escreve Benjamin, “a faculdade de intercambiar experiências”.



Em poucos lugares do mundo, essas mudanças eram tão notáveis quanto na Alemanha dos anos 1930, que vivia uma industrialização galopante, acompanhada pela corrida armamentista e pela ascensão do nazismo. Em 1933, Benjamin trocou Berlim por Paris, que então era o porto seguro dos desajustados e dos boêmios. Lá, viveu alguns dos anos mais felizes de sua vida. Mesmo no agitado coração do século 20, Paris continuava sendo “capital do século 19”. Flanando por seus bulevares em peregrinações diárias, Benjamin conseguia reencontrar o que mais lhe fazia falta no turbilhão moderno: o sabor da lentidão, que é a face amena e modesta da eternidade.



Mas esse idílio acabou em 1939. Em agosto daquele ano, o ditador soviético Joseph Stalin assinou um pacto de não agressão com Hitler – o que lançou boa parte dos intelectuais marxistas da Europa num estado de perplexidade incrédula. Dois me- ses depois, os nazistas invadiam a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. E foi sob o choque desses acontecimentos que Benjamin pôs-se a redigir, no início de 1940, um de seus textos mais pungentes: as curtas, melancólicas e eloquentes Teses sobre o Conceito de História, último escrito que completou antes de morrer.



Ruínas ao léu


Benjamin fora introduzido ao marxismo na década de 1920 graças a seus camaradas Theodor Adorno e Bertold Brecht – mas, à época do pacto entre Hitler e Stalin, já havia se desiludido com o comunismo real. E, a bem da verdade, sempre fora um marxista um tanto sui generis. O misticismo judaico acompanhou-o da infância ao túmulo. Sempre foi intelectualmente fascinado pela doutrina judaica do Messias, o futuro enviado de Deus, que virá redimir as confusões da história e encenar o epílogo de nossa tragicômica epopeia na terra. A decepção política e o sonho teológico perpassam suas Teses, escritas em tons de elegia e de parábola, num estilo de intensidade ominosa. Nessa reflexão profunda e urgente feita à beira do abismo, Benjamin lança um ataque certeiro contra o credo máximo daquele mundo que enlouquecia: a fé no progresso inelutável da humanidade.



Pelo menos desde o início da Revolução Industrial, o Ocidente se convencera de que o avanço técnico era sinônimo de avanço moral. A novidade de hoje, por banal que seja em si mesma, é sempre mais valiosa, mais sublime, mais respeitável que a novidade de ontem. No centro dessa concepção, está a ideia de que o presente é necessariamente melhor que o passado – em todos os aspectos. Segundo Benjamin, o culto ao Deus Progresso era uma neurose universal da qual o marxismo também padecia: para os materialistas clássicos, a história da humanidade era um fluxo implacável rumo à utopia e a revolução comunista era o resultado natural – e, portanto, acima de críticas – do desenvolvimento humano.



No lugar do Deus Progresso, Benjamin colocou o demônio da catástrofe. O avanço da técnica, o domínio material sobre a natureza, a capacidade de erigir prédios e detonar bombas – nada disso, argumenta Benjamin, tem um valor intrínseco em si mesmo. O desenvolvimento moderno pode ser uma aceleração rumo ao desastre. O progresso, quando desabrido e arbitrário, é a pior forma de regresso. E Stalin lá estava, ao lado de Hitler, para provar que o “resultado natural” da história podia ser o oposto da utopia. Essas sombrias intuições estão expressas com soberba imaginação poética em um dos parágrafos mais belos na história do pensamento. É a Nona Tese de Benjamin, escrita sob a inspiração do Angelus Novus, uma aquarela do suíço Paul Klee.



Na pintura, uma desajeitada figura angélica parece voar em marcha à ré, com os olhos fixos no caminho que vai deixando para trás. Trancado em seu quarto enquanto o exército alemão se aproximava, Benjamin observou longamente a aquarela de Klee e por fim escreveu: “O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. O anjo gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se a suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempesta-


de é o que chamamos de progresso”. O involuntário Anjo da História é uma dessas raras imagens que transcendem interpretações e dispensam comentários. Sabemos simplesmente que ele segue voando e que as ruínas ainda se acumulam ao léu.



Walter Benjamin foi, antes de tudo, um “homem de letras” (no sentido mais clássico e mais amplo do termo) numa época em que a ditadura dos especialistas já começava a estrangular o mundo ocidental



Naufrágio anunciado


Benjamin fugiu de Paris em junho de 1940, um dia antes que o exército alemão entrasse na capital – e a partir de então teve de perambular de cidade em cidade, carregando uma valise cheia de manuscritos inéditos, com a Gestapo em seu encalço. Em agosto daquele ano, conseguiu escapar para a Espanha. Seu plano era chegar a Portugal e dali emigrar para os Estados Unidos. Benjamin já estava na cidade fronteiriça de Portbou, na Catalunha, quando recebeu a notícia fatídica: o governo de Franco cancelara os vistos de todos os refugiados vindos da França. Alquebrado e exausto, após meses de pânico e fuga, Walter Benjamin tomou uma overdose de morfina em seu quarto de hotel, em 25 de setembro de 1940. Sua valise perdeu-se e até hoje não sabemos que manuscritos continha. As folhas rabiscadas com as Teses sobreviveram num dos raríssimos lances de sorte na vida de seu desafortunado autor: antes de fugir de Paris, ele entregara uma cópia a sua amiga, a filósofa Hannah Arendt, que, meses depois, conseguiu escapar para os Estados Unidos.



Se a execução de Sócrates foi o mito fundador da filosofia ocidental, o suicídio de Benjamin simbolizou de forma exemplar o naufrágio da modernidade. Um naufrágio anunciado: considerados em perspectiva, seus escritos têm uma sombria aparência de vaticínio. A disciplinada selvageria do Holocausto, com sua industrialização da morte em escala de milhões, seria impensável sem o avanço técnico e a mecanização das sociedades industriais. Mas o pensamento de Benjamin não é um simples aviltamento do presente ao sabor de idealizações do passado. Pelo contrário: em sua concepção da história, a catástrofe é permanente; cada nova era estraçalha algo de precioso que o período anterior conseguiu, por algum tempo, preservar. A redenção humana só virá quando o doloroso contínuo da história se interromper.



Como a revolução comunista falhou, só restava a Benjamin esperar que o prometido Messias judaico viesse um dia restaurar os escombros do Anjo desalentado. Em uma carta escrita a Hannah Arendt, em 1935, ele resumiu suas considerações sobre o futuro do ser humano – um pêndulo que oscila entre a redenção imaginada e o apocalipse provável. “Nesse planeta, um grande número de civilizações pereceu em sangue e horror. Naturalmente, é de se desejar que o planeta algum dia experimente uma civilização que renuncie a tudo isso... Mas é terrivelmente improvável que nós consigamos dar esse presente ao nosso mundo. E, se não o fizermos, o mundo finalmente punirá a nós, presenteando- nos com o Juízo Final.”



Livros


Obras Escolhidas I, Walter Benjamin, Brasiliense A Filosofia de Walter Benjamin, Benjamin/Osborne, Zahar

 

Fonte: Revista Vida Simples 


texto: José Francisco Botelho | ilustração Estúdio Area | design FMAISG

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Platão: As ideias e as formas, por José Francisco Botelho

O enorme apetite filosófico de Platão que marcaria para sempre nossa forma de enxergar o mundo

 


“Toda a filosofia ocidental é uma nota de rodapé à obra de Platão.” A célebre frase, cunhada pelo matemático britânico Alfred North Whitehead, é certamente uma hipérbole, mas isso não significa que seja absolutamente falsa. Afinal de contas, a própria verdade muitas vezes é assim, hiperbólica – e não há dúvida de que poucos filósofos tiveram tanta influência sobre o pensamento ocidental quanto Platão. A grandeza de suas ideias escapa ao domínio da filosofia: ele foi um dos poucos pensadores que moldaram civilizações com a força póstuma de seu gênio. Após o fim do mundo antigo, as doutrinas platônicas entraram na corrente sanguínea do cristianismo, repercutiram no judaísmo e no Islã, geraram inúmeros seguidores e detratores e, de uma forma ou de outra, ainda marcam profundamente a maneira como encaramos o mundo.

Discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, Platão é o elo central no grande triunvirato do pensamento grego – o eixo que articula um dos períodos mais intensos e produtivos na história da mente humana. É graças às obras de Platão que conhecemos as ideias de Sócrates; e foi com base nas teorias platônicas (e muitas vezes para contrariá-las ou corrigi-las) que Aristóteles elaborou grande parte de sua filosofia. Sem Platão, é possível que conhecêssemos Sócrates apenas como um personagem curioso e obscuro – e talvez a grande mente de Aristóteles tivesse se ocupado apenas com as ciências naturais, em vez de produzir o eclético legado que pautou os rumos do Ocidente por milênios. Aristóteles foi o filósofo do bom senso, da moderação e do rigor metódico; Platão foi o pensador do sublime, meio poeta e meio vate, autor de uma obra suspensa entre a ciência e a religião, entre o intelecto e a epifania. Por isso mesmo, a filosofia platônica acabou desacreditada – e às vezes até ridicularizada – ao longo dos últimos 100 anos. Aristóteles, com seu intelecto sisudamente ponderado, parece-nos mais lúcido e confiável. Mas é a obra de Platão, com seu ritmo ora poético, ora dramático e narrativo, que continua enfeitiçando leitores século após século. No eterno duelo entre Platão e Aristóteles, concorda-se facilmente com as razões do discípulo – contudo, é mais fácil é encantar-se com os voos oníricos do mestre.

Um aristocrata do espírito
Platão nasceu em 427 a.C. em uma família de aristocratas. Quando adolescente, pouco se interessava pelos assuntos do espírito. Forte e vigoroso, ele dedicou seus verdes anos ao atletismo e chegou a vencer campeonatos de luta. Também sonhava com glórias militares, como convinha a um membro da nobreza guerreira. A propósito: o verdadeiro nome do filósofo era Arístocles. O apelido “Platão”, que em grego significa algo como “Grandalhão”, era uma referência a seus largos ombros de atleta. É possível que Arístocles tivesse passado a vida a ganhar medalhas nas arenas, se não fosse pela picada do mosquito metafísico que, naquela época, andava zumbindo por Atenas. Com cerca de 16 anos, o belo e belicoso Arístocles deparou, nas ruas da cidade, com um sujeito pobre e feio, esfarrapado como um mendigo, mas dono de uma sabedoria hipnótica. Sempre cercado de ávidos ouvintes, aquela espécie de eremita tagarela – que respondia pelo nome de Sócrates – entregava-se diariamente a debates públicos, questionando seus interlocutores sobre o real significado de palavras aparentemente comuns – como Amor, Justiça, Verdade. O objetivo declarado de Sócrates era mostrar a ignorância essencial de todos os homens – espezinhando-os com perguntas irônicas e insistentes. Daí o apelido que dava a si mesmo: o mosquito de Atenas. Assistindo àquele plebeu sujo e mal vestido desconcertar a cidade mais poderosa da Grécia, o elegante e empertigado Arístocles concluiu que havia uma virtude maior que o sangue azul e a excelência física. O mosquito instilara fatalmente seu veneno: o Grandalhão decidiu virar filósofo.

Durante os 12 anos seguintes, Platão foi o discípulo mais fervoroso de Sócrates – até que, em 399 a.C., o petulante mosquito ateniense foi acusado de ofender os deuses gregos e condenado à morte por envenenamento. Amargurado com a execução do mestre, Platão partiu em uma viagem de 12 anos pelo mundo. Perambulou pela Grécia e pela atual Turquia, visitou o Egito e a Itália; talvez tenha andado pela Judeia e pela Babilônia, e há quem diga que chegou a molhar os pés nas águas do Ganges. Bebeu na fonte de diversas culturas, amadureceu entre gentes e costumes estranhos e retornou a Atenas aos 40 anos de idade, decidido a continuar a missão filosófica de seu professor. Para isso, fundou a Academia, uma escola gratuita de filosofia e matemática, considerada por muitos como a primeira universidade da história. Até sua morte, em 347 a.C., ele viveu debatendo com seus discípulos e compondo suas obras – os Diálogos, textos em que as mais variadas questões filosóficas são apresentadas na forma de debates entre personagens famosos da antiga Atenas. Lê-los não é apenas adentrar tópicos atemporais, mas também mergulhar no testemunho minucioso e imaginativo de um dos períodos mais extraordinários do intelecto humano; é andar pelas ruas de Atenas, trocar ideias e partilhar o vinho dos simpósios com Sócrates e Alcibíades, Xenofonte e Zenão de Eleia. Ótimas companhias, legadas a nós na prosa poética de um dos grandes autores do Ocidente.

Uma grande teoria

E aqueles antigos atenienses conversavam sobre tudo: nos 36 Diálogos que nos deixou, Platão aborda um feixe tão amplo de assuntos que, 23 séculos depois, Emerson exclamaria: “Platão é a filosofia, e a filosofia é Platão”. Com efeito, a semente de quase tudo o que viria depois está lá: os labirintos do corpo e da alma, da linguagem e da memória; a busca de utopias políticas e sociais; o questionamento sobre o real significado de nossa passagem por este mundo, ao mesmo tempo tão encantador e imperfeito. Todos esses temas se entrelaçam na grande questão metafísica que, lançada por Platão em seus diálogos tardios, haveria de dominar a filosofia pelos séculos vindouros: a “doutrina das Ideias”.

Essa grande teoria platônica é uma espécie de síntese magistral do pensamento antigo – e, para compreendê-la, vale a pena deslindar as raízes que lhe deram forma e as perguntas que tentou responder. Sócrates, como já vimos, expôs o grão de ignorância que está no centro de toda ciência humana. Outros pensadores daquele período, como Crátilo, foram ainda mais longe: afirmavam que o conhecimento da realidade é impossível, pois vivemos em um universo instável, onde tudo se transforma e nada se fixa. Uma árvore é apenas um estágio entre a semente e a madeira morta; qualquer ser humano é uma etapa entre o feto e o cadáver... Como podemos afirmar qualquer coisa sobre um determinado objeto, se a constante mudança do universo é mais rápida que nossa mente? Eis a charada que a doutrina platônica tenta resolver: o mundo revelado pelos sentidos parece inapreensível, mas precisamos de um fundamento sólido, eterno e universal, para erigirmos o conhecimento seguro (em grego, epistême).

Para encontrar um ponto fixo no aparente pantanal cósmico, Platão bifurcou a realidade. O mundo que vemos, sentimos e ouvimos – argumenta ele – não é plenamente real. Todas as coisas que conhecemos por meio dos sentidos – como nossos corpos, ou esta mesa, ou aquela árvore – são cópias da “verdadeira realidade”, que é incorpórea, imutável e eterna: as Ideias ou Formas. Criadas por alguma divindade misteriosa, inteligente e anônima, as Ideias existem fora do plano físico e, portanto, não podem ser apreendidas por nossos olhos e ouvidos – mas apenas compreendidas pelo intelecto. De um lado, portanto, há o mundo sensível – que é efêmero, enganoso e impermeável ao conhecimento. Do outro lado, há o mundo inteligível – cuja contemplação é a chave da verdadeira sabedoria.

Mas o que são essas Formas transcendentais, nos quais o nosso mundo se espelha foscamente? Esse perturbador museu de seres perfeitos e algo assustadores, dos quais somos reflexos empobrecidos, pode ser mais bem compreendido do ponto de vista da linguagem. Por exemplo: aplicamos a palavra “gato” a inúmeros seres que, embora parecidos, não são iguais. Logo, a palavra não pode referir-se a nenhum dos gatos individuais, tampouco à soma de todos – mas a um tipo de “felinidade” universal, que permanece sempre inalterado, enquanto os infinitos gatinhos do mundo sensível nascem, crescem, miam e morrem. Para Platão, o significado real de cada palavra não corresponde a convenções humanas, mas aos modelos criados ou imaginados por Deus. Os seres humanos são inúmeros, radicalmente diferentes, desesperadamente semelhantes, estonteados por sua própria multiplicidade – mas a Ideia de Humanidade é uma só. O Ser Humano platônico é verdadeiramente real; nós somos pobres aparências, fantasmas de carne e osso, cegos para a verdadeira face do mundo... A menos, é claro, que consigamos nos livrar da miragem dos sentidos e ascender à contemplação das Formas divinas. Um processo que o poeta-filósofo ilustra, tipicamente, com uma metáfora.

O mito, enfim
Foi no Livro VII da República que Platão elaborou a alegoria mais célebre da literatura. Conforme seu costume, o autor coloca a teoria na boca de Sócrates – mas é provável que essa narrativa, assim como a doutrina por ela ilustrada, seja de exclusiva autoria de Platão. Na República, Sócrates diz a um discípulo chamado Gláucon: “Imagina uma grande cova subterrânea, provida de uma grande entrada para a luz; e imagina um grupo de homens, presos desde meninos no interior da caverna, amarrados pelos pés, pelas mãos e pelo pescoço; não podem virar a cabeça, e são obrigados a olhar constantemente para o fundo da cova”. Incapazes de observar o mundo lá fora, os prisioneiros da caverna veem apenas as sombras que se desenham na parede de pedra – e, acostumados com a própria cegueira, tomam aquelas sombras pela realidade. “Que estranha situação, e que estranhos prisioneiros!”, exclama Gláucon. Sócrates replica: “Estranhos como nós mesmos”.

Eventualmente – prossegue a alegoria –, um dos prisioneiros consegue escapar aos grilhões e sair à luz do sol. Inicialmente ofuscado, ele pouco a pouco se acostuma à visão das coisas como elas realmente são. Caso permaneça lá em cima, esquecendo para sempre sua anterior existência de escuridão, ele se tornará um místico; caso retorne às profundezas, para tentar libertar seus irmãos da cegueira existencial, ele se tornará um filósofo. E correrá o risco de ser tomado por tolo ou subversivo: pois a reação natural dos prisioneiros é acreditar que apenas as sombras existem; e o homem que viu a luz, desacostumado às trevas, chegará até eles tropeçando como um inválido.

Execrar a doutrina das Ideias tem sido um dos lugares comuns do pensamento moderno (e do pós-moderno, e do hipermoderno; não levemos tão a sério a etiqueta dessas nomenclaturas). O fato, contudo, é que o próprio Platão havia previsto os limites de sua teoria. Em um de seus últimos diálogos, o Parmênides, ele se pergunta: no mundo das coisas idealmente perfeitas, haverá também a Forma da Feiura ou a Forma da Imperfeição? Acrescente-se: se tudo o que existe é reflexo de uma Ideia divinamente concebida, então deve haver um Lodo ideal, uma Pústula ideal ou – por que não? – um Idiota ideal... Platão deixa a questão em aberto – como, por sinal, faz com a maior parte dos temas que tocou. Eis aí uma contradição reveladora: modelo do pensador com aspirações sublimes e com sede pelo absoluto, Platão não nos deixou soluções, mas debates infinitos. Em seus diá logos, jamais sabemos ao certo quem está falando a verdade, quem está gracejando ou quem está sendo alvo da zombaria do autor. E, em meio às muitas vozes que ecoam em seus textos, ele semeou intuições originais que ainda desafiam o pensamento. Diz-nos ele à distância de séculos: este mundo, que tentamos inutilmente apreender com nossos sentidos e descrever com a linguagem, não é a realidade. E temos de admitir: talvez não seja, mesmo. Mas, nesse caso, onde está o real inegável, incondicionado, final? Não nos voltemos a Platão em busca de ajuda, pois ele não nos legou uma resposta definitiva, mas uma tentação, um farol que pisca e oscila, um horizonte demasiado distante, mas que ainda nos atrai como o canto das sereias (ou das Sereias?): a esperança da transcendência.


LIVROS
O Banquete, Platão, Difel
Um Café com Platão, Donald Moor, Arx
 


sábado, 7 de agosto de 2010

Kierkegaard - O tremor, por José Francisco Botelho


Para o filósofo dinamarquês, a angústia é o fruto estonteante da liberdade humana. Descubra esse paradoxo

 


Texto de José Francisco Botelho e  ilustração  de Isabel Falleiros 


Ao longo do século 20, poucas correntes filosóficas fizeram tanto sucesso quanto o existencialismo – escola de pensamento que sublinha, entre outras coisas, a reflexão sobre o absurdo da vida humana, deixando de lado a busca pela verdade suprema ou o bem absoluto. Após duas guerras mundiais, genocídios, fracassos ideológicos e algumas bombas atômicas, esse elegante evangelho do desespero caiu no gosto de pensadores profissionais e leigos. No século passado, a figura mais célebre do cânone existencial foi sem dúvida o mandarim materialista Jean-Paul Sartre: graças a ele, o existencialismo acabou associado a um ateísmo militante que, em momentos extremos, beira a intolerância contra qualquer forma de religiosidade (os atuais chiliques contra o véu islâmico na França são exemplos disso). Vale lembrar, no entanto, que o pai do pensamento existencialista moderno não foi um ateu, nem mesmo um agnóstico, mas um homem fervorosamente religioso que via no cristianismo sincero uma afirmação de individualismo e rebeldia: o dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855).

Inimigo declarado de todos os sistemas (embora cristão, ele era um crítico feroz das religiões organizadas), Kierkegaard escreveu uma obra cheia de exaltação, espiritualidade e agonia. Seus livros são, ao mesmo tempo, um dilacerante testemunho de fé e uma virulenta zombaria contra a sociedade europeia do século 19. Para ele, a triunfante feiura da Revolução Industrial e a empolada moralidade da burguesia estavam criando uma civilização de pseudoindivíduos acostumados a viver sem paixão e conformados com o próprio tédio. Em um de seus textos, ele escreve com delicioso azedume: “A maior parte da humanidade hoje é composta por chatos. E ninguém será tão chato a ponto de negar essa verdade”. Foi por causa de sua arrasadora honestidade intelectual que esse cristão renitente chegou a influenciar, 100 anos após sua morte, toda uma geração de descrentes. Com efeito, o pensamento de Kierkegaard tem ressonâncias que vão muito além da fé (ou da falta dela). Isso porque o tema mais prolífico e eloquente na obra do cristianíssimo rebelde dinamarquês é um daqueles assuntos que jamais envelhecem, e que podemos realmente chamar de universais: a angústia da condição humana.
Mal de família Para compreender o gênio conturbado de Kierkegaard, é preciso entreabrir o baú de sua história familiar. Michael Kierkegaard, pai do filósofo, nasceu em absoluta miséria nas charnecas gélidas da Jutlândia, no norte da Dinamarca, e passou a infância pastoreando rebanhos alheios debaixo de chuvas, ventanias e granizos. Era um garoto profundamente religioso e, por isso mesmo, não compreendia como Deus podia tratá-lo com tanta indiferença. Rezava constantemente por uma vida melhor, mas seus apelos pareciam cair em moucos ouvidos divinos. Certo dia, quando tinha 10 anos, Michael se revoltou contra aquela cósmica falta de consideração: subiu à encosta de um penhasco e, com o punho erguido contra o céu ventoso e gelado, lançou uma terrível e solene maldição contra Deus.

Nos anos seguintes, Michael Kierkegaard mudou-se para Copenhague e tornou-se um comerciante imensamente rico. Mas a lembrança de sua épica blasfêmia perseguia-o como uma sombra. Acabou se convencendo de que a maldição se voltaria contra ele: Deus, mais cedo ou mais tarde, haveria de punir sua petulância. A sina familiar sustentou sua paranoia: ele se casou duas vezes, e duas vezes tornou-se viúvo; dos sete filhos que teve, cinco morreram ainda moços. Um dos sobreviventes foi precisamente o caçula Soren – que teve uma infância soturna, marcada pelas mortes consecutivas dos irmãos e assombrada pelo temperamento sinistro do pai.

Soren Kierkegaard herdou a religiosidade atormentada de Michael e passou a juventude obcecado pelo pecado e a culpa. Sua tábua de salvação foi a filosofia. Ainda moço, entregou- se ao estudo dos pensadores gregos. Tinha especial apreço por Sócrates – com ele, aprendeu a esgrimir a lâmina da ironia. Nos anos seguintes, o sarcasmo e a maledicência erudita serviriam ao retraído Soren como uma espécie de escudo contra o mundo.

Aos 24 anos, Kierkegaard quase conseguiu livrar-se de sua herança de culpa e melancolia: foi nessa época que se apaixonou por Regine Olsen, uma garota bela, culta e abastada. Após um namoro platônico, ambos noivaram, planejando um futuro de idílios intelectuais e amorosos. Dois dias após o noivado, contudo, Kierkegaard teve uma misteriosa crise de pânico. Subitamente, o compromisso pareceu-lhe um grande erro – e Soren acabou por repudiar Regine sem qualquer explicação. Até hoje ninguém sabe ao certo por que o filósofo rejeitou a mulher que amava. Alguns opinam que ele pretendia levar uma vida de reflexão pura, na qual haveria pouco espaço para os deveres conjugais. Outros sugerem que Kierkegaard tinha um medo paralisante do sexo, o que tornaria esses deveres conjugais ainda mais assustadores.

Seja como for, o fato é que Kierkegaard acreditava-se incapaz de levar uma vida normal. Em vez de lamuriar-se, contudo, ele resolveu transformar sua miséria em objeto de reflexão. Se seu destino era a infelicidade, ele seria apaixonadamente infeliz – o que, em todo caso, parecia-lhe mais interessante que ser alegremente tedioso.
Existência X essência Ao longo dos 20 anos seguintes, mergulhado na solidão, remoendo suas frustrações e pensando sempre em Regine Olsen (que, àquela altura, já se casara com outro homem), Kierkegaard lançou as bases do existencialismo moderno em obras como Ou Isso ou Aquilo, Tremor e Temor e O Conceito de Angústia. Para compreender sua obra, antes é preciso recapitular duas ideias de imensa importância para toda a história do pensamento: os conceitos de “essência” e “existência”.

Ao escrever seus Diálogos, no século 5 a.C., Platão legou à filosofi a a divisão entre o mundo das coisas e o mundo das ideias – ou seja, entre os seres concretos e os conceitos racionais. Para Platão e seus discípulos, as ideias são anteriores (e superiores) às coisas. Os indivíduos seriam apenas manifestações mais ou menos confusas e deturpadas de conceitos gerais, ou “essências” – por isso, esse viés filosófico foi chamado de “essencialismo”. Ao longo dos séculos, esse modo de pensar levou à construção de grandes sistemas abstratos em que a existência individual se dilui na generalização: sob tal ponto de vista, a ideia unificada de “humanidade” seria mais importante e significativa do que as estranhezas e particularidades de cada um dos 6 bilhões de seres humanos que hoje habitam a Terra.

Foi contra essa obsessão de unanimidade, essa febre da abstração que Kierkegaard se rebelou. Para o filósofo dinamarquês, o que realmente importava não era a essência do todo, mas a existência de cada ser em particular – inclusive naquilo que possa ter de excêntrico, de louco e de inclassificável. A existência é, precisamente, aquilo que escapa ao crivo do pensamento, o cerne irracional que torna cada criatura única, insubstituível. As verdades subjetivas – próprias e inseparáveis de cada ser humano – são mais importantes que as verdades objetivas: a ideia geral de humanidade pode servir para livros de biologia ou manuais psicológicos, mas jamais dará conta de explicar ou definir plenamente um único indivíduo. Você, eu, Sócrates e o próprio Kierkegaard somos ou fomos criaturas ferozmente singulares, irredutíveis a ideias abstratas. Somos, fomos e seremos, no fundo de nós mesmos, inexplicáveis. E também imprevisíveis: já que a Razão não nos decifra, já que os conceitos não nos enquadram, como poderíamos quantificar a nós mesmos? E é nessa incapacidade de prever, de explicar ou de controlar nossa própria estadia sobre a Terra que Kierkegaard baseia seu conceito de angústia.
Angústia terapêutica Segundo Kierkegaard, a angústia é o fruto estonteante da liberdade humana. Para compreender essa ideia aparentemente contraditória, é preciso esmiuçar a ambígua teologia do cristão mais amado pelos ateus. Kierkegaard acreditava apaixonadamente em Deus, mas também afirmava que sua existência não podia ser provada pela razão. A divindade de Kierkegaard estava além da inteligência humana – e de nada adiantaria recorrer a Ele em busca de dicas ou soluções para nossos dilemas. Nesse sentido, o livre arbítrio do ser humano é absoluto e inviolável: Deus jamais interfere em um único ato de suas criaturas, por mais desastrosas que venham a ser suas consequências. Quando Adão mordeu a fruta proibida, cometendo o pecado original e condenando toda sua descendência a uma história de barbaridades e sofrimentos, a mão de Jeová não se estendeu para impedi-lo – e a culpa disso tudo não jaz na omissão divina, mas na escolha de nosso tataravô mítico.

Alguém poderia argumentar: mas, antes de comer a fruta proibida, Adão desconhecia o bem e o mal; como poderia adivinhar que sua escolha traria milênios de desgraça? E é precisamente aí que se encontra a originalidade de Kierkegaard. Para ele, a cada momento de nossas vidas, somos como Adão no Paraíso, com o terrível pomo nas mãos, obrigados a fazer escolhas potencialmente catastróficas – e sem nenhuma força superior que nos guie e coordene, ou que ao menos nos impeça de errar. Distante de Deus, e perante a falência da razão, o homem carece das ferramentas necessárias para se assegurar de que escolhe o caminho certo. A angústia é, precisamente, a consciência dessa liberdade sem freios, sem bordas e sem qualquer segurança – a tontura diante do abismo de possibilidades que se abre diante de nós a cada segundo.

No entanto, Kierkegaard não vê a angústia como uma patologia a ser curada – para ele, meditar sobre nossa sombria companheira de viagem pode ser terapêutico. “Aprender a angustiar-se é uma aventura que todos têm de experimentar”, escreve Kierkegaard. “O homem educado pela angústia chegou ao supremo saber: ele compreende que não pode exigir absolutamente nada da vida; que o horror, o aniquilamento e a perdição moram ao lado, e que o mesmo ocorre com todos os homens”. A sabedoria existencial está em aceitar nossa insegurança como a outra face de nossa liberdade – uma espécie de barganha tácita entre Deus e suas criaturas. Condenado a dar saltos no escuro, o homem tem de assumir plena responsabilidade pelos inevitáveis erros de sua frágil inteligência – lembrando que, a cada segundo, pode enterrar os dentes, por engano ou distração, no fruto fatídico.

Em seus últimos anos, Kierkegaard afundou ainda mais no ostracismo. Em uma série de artigos publicados na imprensa, lançou ataques à moral protestante, e suas diatribes lhe renderam a execração pública – coisa de pouca monta para um homem que sempre fora solitário. O único ser humano cuja opinião lhe importava talvez fosse Regine, a mulher que ele continuara amando por toda vida, sem jamais ter coragem de lhe explicar seus confusos sentimentos. Viu-a pela última vez em 1855, num passeio pelas ruas de Copenhague. Regina estava prestes a sair do país, pois seu marido fora apontado para um posto administrativo no exterior. O filósofo e sua musa cumprimentaram-se cortesmente. “Que Deus o acompanhe, e que tudo corra bem para você”, disse Regine, e se foi. Nunca mais se falaram. Kierkegaard morreu oito meses depois, assombrado até o fim pela misteriosa renúncia à mulher amada – uma dessas escolhas irracionais e arbitrárias que, segundo o próprio filósofo, norteiam a passagem do homem sobre a Terra. Kierkegaard bebeu até a última gota seu cálice de angústia, seguindo à risca seu próprio ideal de humanidade. Pois, como ele escreveu em um de seus tratados: “Se o homem fosse um animal ou um anjo, não sentiria angústia. Mas, sendo uma síntese, angustia-se. E tanto mais sente a angústia, quanto mais humano for&rdquo
Kierkegaard  O filsósofo que marcaria a reflexão sobre o ser ao longo do século 20 nasceu em Copenhague em 1813 e morreu na mesma cidade em 1855. Cristão, iria influenciar filósofos ateus como o francês Jean-Paul Satre, entre outros nomes do pós-guerra.


LIVROS
O Conceito de Angústia,  Soren Kierkegaard, Vozes
Kierkegaard, Valls & Almeida, Jorge Zahar

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A alegria

Saiba mais sobre o filósofo alemão que construiu uma obra em que a felicidade é um tapa de luva na cara do destino 

 texto José Francisco Botelho design Adriana Wolff e Julia Grassetti


Tragicamente alegre e alegremente pessimista. Humano e rancoroso, generoso e turrão. Todos esses epítetos são aplicáveis ao filósofo alemão Arthur Schopenhauer – cuja obra brilhante e virulenta é um dos maiores tesouros literários da filosofia ocidental. Adorado por artistas, poetas, escritores e pensadores marginais – mas também espinafrado por outros filósofos e muitas vezes ignorado pelas academias –, ele deixou uma obra carregada de humorismo e amargura, piedade e maledicência, pessimismo e esperança.



Considerado por muitos o pai da angústia moderna, Schopenhauer já foi descrito – de forma simplista – como o sumo-sacerdote do niilismo destrutivo. Mas sua dura sabedoria é um vinho doce-amargo, temperado em igual medida pelas dores do mundo e pelas alegrias da arte e do conhecimento. Schopenhauer resumiu essa postura ambígua, que oscila entre o desespero existencial e a esperança possível, numa máxima latina: tristis in hilaritate, hilaris in tristitia. O homem sábio, em outras palavras, deve ser “triste em sua alegria, alegre em sua tristeza”. Para compreender a alegria trágica de Schopenhauer, antes é preciso deslindar sua apaixonada apologia do pessimismo.



Arthur Schopenhauer
O chamado “filósofo do pessimismo” (um exagero, como se vê) nasceu em 1788 em Danzig, na época pertencente à Prússia, e morreu em 1860 na cidade alemã de Frankfurt.



Vontade cega Schopenhauer nasceu em 1788 na cidade livre de Danzig, que hoje faz parte da Polônia. Sua mocidade foi marcada pelo misterioso suicídio do pai (que pulou da janela de casa quando Arthur tinha 18 anos) e pelas pendengas literárias e intelectuais com sua mãe. Famosa na época, Johanna Schopenhauer era uma coquete beletrista de temperamento frívolo. Autora de romances folhetinescos e açucarados, ela sentia verdadeira repulsa pelo gênio sombrio do filho, que, desde tenra idade, já era um tanto obcecado pelos aspectos mais espinhosos da existência. “Quanto mais o conheço, mais difícil para mim é viver perto de você”, escreveu Johanna em 1807. “Sua eterna mania de cismar sobre a estupidez do mundo e a miséria humana enchem minhas noites de pesadelos.” E foi cismando teimosamente sobre as misérias do mundo que Schopenhauer escreveu, aos 30 anos, sua obra-prima: O Mundo como Vontade e Representação, publicado em 1818.



Espécie de bíblia do pessimismo, a obra colocou-o em rota de colisão com sua própria época e o transformou no filósofo maldito por excelência – um de seus admiradores, Friedrich Nietszche, mais tarde o apelidou de “cavaleiro solitário” da filosofia. O início do século 19 foi dominado pelas teorias otimistas de Friedrich Hegel, que considerava a Razão como o fundamento da existência. A História era vista como uma espécie de via ascendente: apesar de seus percalços, ela eventualmente conduziria a humanidade a um futuro de felicidade plena. Foi contra essa fortaleza de otimismo fácil que o jovem Schopenhauer dirigiu seus petardos agudos e contundentes. Para ele, a base do cosmo não é a Razão humana ou divina, mas uma força irracional e sem propósito: a Vontade, “mero ímpeto cego” que move todos os seres a uma existência fútil, sem sentido e essencialmente dolorosa. Em sua fome por existência, a Vontade gera, paradoxalmente, a destruição de suas próprias criaturas: por isso, somos seres feitos de desejos insaciáveis, em constante autoconflito. Em suma: “Toda vida é sofrimento”.



Para Schopenhauer, a História da humanidade não era um dos novelões faceiros e benevolentes que sua mãe publicava com grande sucesso (e que o jovem caturra detestava com todas as forças). Antes mesmo que o marxismo seduzisse os intelectuais europeus com promessas de um beatífico futuro de igualdade, Schopenhauer já chegara à conclusão de que todas as utopias – religiosas ou seculares – são contos da carochinha potencialmente perigosos. “Imaginemos, por um instante, que a humanidade fosse transportada a um país utópico, onde os pombos voem já assados, onde todo o alimento cresça do solo espontaneamente, onde cada homem encontre sua amada ideal e a conquiste sem qualquer dificuldade”, ele escreveu em um de seus ensaios, com típico humor negro. “Ora, nesse país, muitos homens morreriam de tédio ou se enforcariam nos galhos das árvores, enquanto outros se dedicariam a lutar entre si, a se estrangular, a se assassinar uns aos outros.” Se para alguns a existência humana é um melodrama com final feliz, para Schopenhauer ela é uma tragédia grega.



Tragédia alegre Mas recordemos: segundo Aristóteles, a tragédia é aquele gênero que provoca terror e piedade em sua audiência, para em seguida levar à purificação dessas emoções. Em meio aos tormentos de um universo trágico, há sempre a promessa da catarse – o êxtase no meio do horror. Fiel a suas fontes clássicas, o messias do pessimismo elaborou uma filosofia desiludida, sim, mas também dotada de uma aura de consolo. Criticando o pessimismo exacerbado e egocêntrico dos suicidas, o filósofo nos recomenda uma bravura estoica frente aos tormentos da existência. “Não cedas à adversidade, mas marcha audaz contra ela”, ele nos convoca solenemente. De certa forma, o adorável rabugento sugere que devemos rir – ou, pelo menos, sorrir – ainda que estejamos no meio do inferno. Aqui, a felicidade plena é impossível – mas o mesmo não vale para a alegria, exceção heroica e sempre desejável à sofrida regra da existência, e espécie de tapa de luva na cara do destino.



Hilaris in tristitia: conselho útil para uma época como a nossa, já saturada de horrores passados e à espera de minuciosos horrores futuros (que vão desde a metamorfose da Terra em uma panela de pressão superaquecida, povoada por seres famintos, até a possibilidade sempre presente de alguma estúpida hecatombe nuclear). Época que – com a exceção de alguns desatentos... – já perdeu suas ilusões em utopias sociais ou econômicas. O que fazer, quando nenhum paraíso parece convincente? A resposta talvez esteja no cálice de sabedoria amarga que Schopenhauer nos estende, com um piscar de olho zombeteiro. Perante um mundo desgovernado, o sábio deve adotar uma postura consciente das agruras da existência, mas atenta a cada possibilidade de alegria e pautada pela ética, fruto da compaixão universal – sentimento quase milagroso que permite ao indivíduo transcender sua própria dor e identificar-se com a dos outros. Sem esperanças de redenção absoluta, o homem sábio deve viver no presente, alegrando-se com as eventuais belezas da vida e suportando suas inevitáveis desgraças. Escreve Schopenhauer em seus Aforismos Para a Sabedoria de Vida. “Só o presente é verdadeiro e real... Por conseguinte, deveríamos dar-lhe uma acolhida jovial e fruir com consciência cada hora suportável e livre de contrariedades ou dores, em vez de turvá-la com expressões carrancudas acerca de esperanças malogradas... Quanto ao futuro, devemos pensar: isso repousa no colo dos deuses”.



Além da prudência estoica, há outra nota de esperança na obra de Schopenhauer: a salvação pela arte e pelo conhecimento. Em tempos de tecnocracia e utilitarismo, em que as artes são constantemente enquadradas como ferramentas de marketing ou veículos para esta ou aquela ideologia política, vale a pena retomar as ideias desse amante sincero da poesia e da música (não por acaso, Schopenhauer é um dos filósofos favoritos de escritores e artistas desde o século 19). A arte, para o pensador, é a porta do êxtase – o caminho que nos liberta temporariamente da Vontade cega e nos permite ver o sofrimento humano com o olho neutro da estética. É um repertório de sentidos possíveis em um universo de absurdos. “Ainda que não houvesse mundo”, ele escreveu, “poderia haver música.” Mas a contemplação do belo, para ser transcendente, deve ser desinteressada. Em outras palavras: deveríamos ler poesias, apreciar pinturas e escutar sinfonias não por obrigação curricular ou vaidade intelectual – como tantos fazem hoje em dia –, mas pela busca do deleite que nos cabe, em um mundo já suficientemente cheio de tédio e de misérias. Uma relação menos neurótica e mais erótica com a cultura é um dos bálsamos receitados por Schopenhauer para as feridas incuráveis da existência.



Gênio solitário Outra lição deixada por Schopenhauer foi sua própria vida – uma eloquente ilustração de que a teimosia compensa e de que o inconformismo é uma boa luta. Arauto do pensamento individual, Schopenhauer foi um filósofo sem papas na língua, e pagou um preço alto por isso. Na época de sua publicação, O Mundo como Vontade e Representação vendeu menos de 100 exemplares – e a carreira universitária de seu autor jamais decolou. Em 1820, ele conseguiu uma cátedra na Universidade de Berlim e, por pura implicância, suas aulas eram nos mesmos horários ocupados pelas conferências de Hegel, seu arqui-inimigo intelectual. Em vez de um duelo de titãs, o que se seguiu foi um dos grandes fiascos na história da filosofia: enquanto as preleções otimistas de Hegel lotaram salas, as aulas de Schopenhauer atraíam menos de dez alunos.



Schopenhauer sugere que devemos rir ainda que estejamos em um período difícil. Pois a alegria é uma exceção heroica e sempre desejável em nossa existência



Nos anos seguintes, Schopenhauer se tornou um inimigo declarado do mundo universitário. Em páginas deliciosamente azedas, o cavaleiro solitário fustigou os eruditos profissionais – em sua opinião, pensadores “assalariados” que passam a vida citando opiniões alheias, sem jamais desenvolver um pensamento próprio. “A peruca é o símbolo mais apropriado para o erudito puro. Trata-se de homens que adornam a cabeça com uma rica massa de cabelos alheios, porque carecem de cabelos próprios”, escreveu ele, com característica falta de condescendência, em Sobre a Erudição e os Eruditos. Vale esclarecer: o que Schopenhauer criticava não era a erudição em si mesma, mas o monopólio conhecimento conhecimento por patotas acadêmicas. O que esse gênio mal-humorado valorizava acima de tudo era aquela figura rara, quase milagrosa, que ele próprio encarnou à perfeição: o pensador independente.



Independente e solitário, Schopenhauer passou os últimos anos de sua vida em Frankfurt, morando com seu cachorro de estimação, o poodle “Atma” – “alma do mundo” em sânscrito –, cuja companhia achava preferível à da maioria dos seres humanos. Apesar da indiferença do público, ele continuou estudando e escrevendo com furor e gana (graças a um gordo estipêndio familiar, nunca precisou trabalhar para viver...). E o sucesso finalmente veio em 1851, com a publicação de Parerga e Paralipomena, uma coletânea de ensaios sobre temas variados como as mulheres, o suicídio e a poluição sonora (traço da vida moderna que, já naquela época, o filósofo achava insuportável). O estilo ameno e epigramático dessas reflexões granjeou-lhe uma fama tardia, mas duradoura. Nas décadas seguintes, enquanto a filosofia hegeliana entrava em declínio, a obra completa de Schopenhauer seria redescoberta por consecutivas gerações de artistas e desajustados. As ideias agridoces desse misantropo desgrenhado, alérgico à estupidez alheia, mas dotado de infinita compaixão pelas dores universais, entrariam definitivamente nas veias do Ocidente. Os ecos de sua obra se estendem de Nietszche a Freud e Wittgenstein, e isso sem falar na influência colossal que exerceu sobre gente do calibre de Richard Wagner, Proust, Joseph Conrad e Borges. Este último, certa vez, disse o seguinte sobre seu filósofo favorito: “Creio que ele nos deu, de algum modo, a chave para decifrar o mundo”.



O teimoso cavaleiro andante da filosofia tinha plena consciência de que, após tantas derrotas, ele finalmente venceria a peleja contra seu próprio tempo. Pouco antes de morrer, alguém lhe perguntou onde gostaria de ser enterrado. O hábil frasista retrucou: “Em qualquer lugar. A posteridade me encontrará”. 

Fonte: Revista Vida Simples - Edição 90 - 03/2010.
imagem em: sol.sapo.pt/.../archive/2010/05/29/1699649.aspx

sábado, 22 de maio de 2010

Montaigne - A amizade

 Autor dos Ensaios, obra que exala a nostalgia de uma amizade perdida, Michel de Montaigne concluiu que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos

texto José Francisco Botelho ilustração Sean Mackaoui

Um filósofo que zombava da filosofia. Um cético que acreditava em Deus e renegava o ateísmo. Um amante da paz e da tranquilidade, que adorava o som e a fúria das batalhas. Um misantropo que valorizava a amizade acima de todas as coisas. Essas e muitas outras contradições se encontram, em fascinante desarmonia, no vertiginoso autorretrato que o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) traça em sua única e maciça obra: Ensaios, livro indispensável não apenas para aqueles interessados em filosofia como para todos os amantes da boa literatura. Nascido em uma época de transformações, maravilhas e catástrofes, Montaigne testemunhou e viveu grandes reviravoltas históricas: a ascensão da burguesia, a descoberta de terras exóticas no Novo Mundo e os conflitos sanguinários entre católicos e protestantes. Em meio a esse mundo caótico e muitas vezes brutal, ele escolheu a si mesmo como objeto de reflexão – e compôs o mapa deliciosamente contraditório de sua própria alma, em escritos cheios de introspecção e exuberância, humor e melancolia.

Para alguns, Montaigne foi o maior porta-voz do ceticismo na idade moderna – colocando em suspenso todas as certezas absolutas, ele preparou o caminho para o iluminismo de Voltaire e Montesquieu. A grande originalidade de Montaigne, contudo, não é a negação da Verdade maiúscula, mas a busca de verdades possíveis e transitórias (e nem por isso menos significativas) nas obscuras fronteiras da personalidade humana. A filosofia ocidental, até então, havia encarado a Razão como uma ferramenta impessoal para a compreensão absoluta do universo: com Montaigne, o pensamento deixa de ser uma busca etérea por certezas fixas e se transforma em um olhar visceral e dinâmico para o interior do próprio indivíduo. Quatro séculos antes da invenção da psicanálise, esse pensador excêntrico, amigável e solitário já havia concluído que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos.


Montaigne Filósofo “moderno” e criador de um gênero literário, o ensaio, Michel de Montaigne nasceu em 1533 e morreu em 1592. Onívoro, parecia interessado em pensar sobre tudo.


O grande amigo Nascido em uma família de burgueses enriquecidos no comércio, Michel de Montaigne foi educado para se tornar um perfeito cavalheiro – seu pai, como muitos novosricos na época, queria apagar da árvore genealógica todas as marcas da origem plebeia. Antes mesmo de aprender o francês, o menino foi instruído no latim. Os familiares e serviçais da casa estavam proibidos de falar qualquer outra língua – e, até os 6 anos de idade, Montaigne conversava apenas no idioma de Cícero. Até a adolescência, o rapaz viveu sem obrigações: passava muito tempo lendo e sonhando, numa doce vida embalada por preguiçosas elucubrações. O gosto pela solidão contemplativa, adquirido tão cedo, haveria de acompanhá-lo até a velhice.


Montaigne só foi arrancado daquele ocioso paraíso aos 13 anos. Enviado a Toulouse, estudou Direito e ocupou o cargo de conselheiro legal em tribunais e parlamentos. Mais tarde, tornou-se cortesão no reinado de Carlos IX. Participou de cercos e grandes batalhas e, embora lhe repugnasse o derramamento inútil de sangue, Montaigne jamais negou o fascínio que sentia pela ação e pelo perigo. No burburinho da corte, por outro lado, ele aprendeu as manhas da alta sociedade e se tornou um renomado mulherengo e beberrão – mas sua devassidão era acompanhada por uma forte dose de melancolia. Sonhador e individualista, Montaigne sempre teve dificuldade em fazer amigos íntimos. Até que, aos 24 anos, conheceu o poeta e erudito Étienne de La Boétie.


Três anos mais velho que Montaigne, La Boétie era um homem de múltiplos talentos e interesses. Versado nas línguas antigas, ele escrevia sonetos em grego, latim e francês com idêntica fluência. Ainda muito jovem, ficou célebre pela obra Discurso Sobre a Servidão Voluntária, um libelo contra a tirania, escrito com a dicção solene dos clássicos da Antiguidade. Montaigne leu o livro antes de conhecer FILOSOFIA o autor; ao encontrar La Boétie, em Toulouse, já nutria por ele uma imensa admiração intelectual. Em breve, esses dois latinistas libertinos começaram a descobrir suas infinitas afinidades. Ambos amavam com idêntico fervor o vinho, as curvas femininas e a literatura; ambos veneravam a ética cavalheiresca e a individualidade de pensamento. E mais: numa época dilacerada pelos conflitos entre católicos e protestantes, ambos defendiam a tolerância religiosa e a convivência de ideias opostas. Durante quatro anos, em meio a bebedeiras e recitações da Eneida, Montaigne e La Boétie desfrutaram de uma dessas amizades hiperbólicas que às vezes parecem beirar a paixão platônica. “Se insistirem para que eu diga por que o amava”, escreveria Montaigne anos depois, “sinto que não saberei me expressar, senão respondendo: porque ele era ele; porque eu era eu”.


Uma boa fé Aos 29 anos, contudo, Montaigne foi subitamente privado de seu companheiro de prazeres e confrade de leituras: derrotado por uma grave crise de disenteria, La Boétie morreu após uma agonia lenta e dolorosa. Ao que tudo indica, foi a dor dessa perda que levou Montaigne a se refugiar – e se reencontrar – na escrita. Desgostoso com o mundo, o hedonista se transformou em eremita: abandonou as funções públicas em 1570 e se retirou para a propriedade rural que herdara da família, mergulhando na solidão. A partir daí, passaria a maior parte do tempo encerrado na torre do castelo, cercado pelos mais de 1500 volumes de sua biblioteca. Naquele isolado éden livresco, ele encontrou o único substituto possível para o amigo morto: nós, os infinitos leitores do futuro. É a essa legião de amigos invisíveis e íntimos que ele dirige a célebre advertência na primeira página dos Ensaios: “Eis aqui, leitor, um livro de boa fé... Sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empre gues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância”. É com essa irônica mesura que Montaigne nos convida a adentrar a turbulenta morada de sua alma.


E ele nos conduz por esse labirinto sem nos prometer conclusões definitivas e reconfortantes. A palavra essai, na época, significava “tentativa”. E é assim, às apalpadelas e aos tropeções, que Montaigne escreve sobre temas tão variados quanto a guerra, a equitação, a gastronomia, a botânica, o medo, as vestimentas, a tosse, os espirros, a flatulência, as carruagens, as virtudes e as fraquezas do órgão sexual masculino, os hábitos funerários dos antigos indianos, as viagens marítimas, a amizade, a solidão, a morte, os cálculos renais (apenas a enumeração exaustiva pode traduzir o gostinho de suas maravilhosas digressões). À primeira vista, os Ensaios são uma estonteante enciclopédia sobre tudo e sobre nada. Mas o tema central dessa epopeia sem método e sem jargões é o próprio Montaigne – o qual, por meio da autoanálise, acaba encontrando em si mesmo uma janela para a investigação de toda a humanidade.


Essa investigação, por sinal, não leva a uma verdade única, mas abre as comportas do entendimento para a multidão de verdades individuais que compõem o ser humano. Com seu afável ceticismo, Montaigne considera a Razão humana incapaz de resolver as questões transcendentes do universo – por exemplo, a existência de Deus e a imortalidade da alma. Para o autor, a própria descrença é um ato de fé. Perante dilemas insolúveis – como o são a maior parte dos temas da filosofia universal –, Montaigne não sugere uma resposta, mas uma pergunta: “Que sei eu?” A única coisa que podemos conhecer realmente somos nós mesmos; e, conhecendo-nos, podemos começar a compreender os outros. Pois, como nos diz o solitário habitante da torre, em seu tom oscilante entre a gravidade e o devaneio, “todo homem traz em si a forma total da condição humana”.


A tolerância Os Ensaios nasceram da nostalgia por uma amizade perdida – e não é exagero dizer que sua leitura, mesmo cinco séculos depois, é uma experiência semelhante à do contato direto e afetuoso com outro ser humano. Ler Montaigne é conhecê-lo intimamente, inclusive em seus defeitos. É graças à sinceridade radical do autor que conhecemos sua velada misoginia, sua indiferença em relação à esposa e aos filhos e suas rabugices. Não raro, ele pinta a si mesmo como inculto, grosseiro ou mesmo bobalhão – e o faz sempre com uma piscadela de ironia para o leitor. “Tenho uma maneira de pensar que me isola dos outros e, por outro lado, sou de uma ignorância pueril sobre o que todo mundo sabe. Esses defeitos valeram-me a reputação de bobo, que assenta em cinco ou seis fatos reais”, comenta, sem cerimônia, como se nos tivesse ao seu lado, no alto da torre, bebericando um vinho.


Ao lado dessas confissões despudoradas, encontramos virtudes que fazem de Montaigne um guia sábio. De inestimável valor para nossa época é sua defesa da tolerância. Dono de uma inesgotável curiosidade sobre outros povos, Montaigne salpica em seus escritos elogios às civilizações judaica e islâmica e aos indígenas do Novo Mundo – tudo isso no mesmo período em que a Inquisição calcinava hereges e os conquistadores ibéricos massacravam os “selvagens” das Américas.


Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto, com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais; mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.


Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto, com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais; mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.


Comparando o canibalismo indígena com a selvageria das perseguições religiosas na Europa, Montaigne aponta para uma sabedoria árdua, mas profunda, cuja utilidade é inegável em uma época como a nossa, dilacerada por ódios novos e antigos e obcecada com supostos “choques de civilizações”: o bem e o mal, a civilização e a barbárie estão misturados em todas as culturas, de forma indistinguível, e jamais formam compartimentos estanques. O homem, afinal de contas, é um “pobre animal” preso em um mundo que não pode decifrar; mas nesse universo caótico resta-nos a possibilidade de compreender uns aos outros – ou, pelo menos, tentar. É nesse sentido que Montaigne nos lega outra herança preciosa: o sentimento de humanidade, que nos une a todos em nossas limitações e mesquinharias, mas que abre a possibilidade de uma fraternidade universal, maior que as pátrias e as línguas. “Considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço a um polonês como a um francês, pospondo os laços nacionais aos universais e comuns”, escreveu ele, em um de seus muitos manifestos pela amizade entre os povos. E acrescenta, citando um exemplo tirado de Heródoto: “A natureza colocou-nos livres no mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares – tal qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a água do rio Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito de usar todas as demais águas, e secando, para seus olhos, todo o resto do mundo”.

Fonte: Revista Vida simples - Edição 92 - 05/2010.

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