"Aprender sem pensar é tempo perdido"
Confúcio.
Este blog foi criado com a finalidade de compartilhar ideias e novos conhecimentos, entre alunos, professores e todas as pessoas interessadas.
Críticas e sugestões são bem-vindas.
O que está se tornando senso comum sobre o período da nossa história que vai de 1964 a 1985 tem a profundidade de um pires. É sobre esse recipiente que alguns buscam, agora, instituir a tal Comissão Nacional da Verdade. Cuidado, porém: a principal realização de sua antecessora, a ainda hoje fervilhante Comissão de Anistia, concretizou o sonho dos alquimistas. As milionárias indenizações que concede transformaram os pesados “Anos de Chumbo” em festejados Anos de Ouro.
Não creia que toda objeção à tal Comissão da Verdade seja uma defesa da amnésia. Não há o menor perigo de que isso ocorra. A esquerda ocupou todo o material didático nacional, produziu dezenas de filmes e livros, instruiu e doutrinou quase todos os professores e jornalistas com a sua “verdade”. Assim, tudo quanto se lê e se ouve a respeito ensina que as elites nacionais, belo dia, por pura perversidade, resolveram incumbir as Forças Armadas de perseguir, prender e martirizar os intrépidos defensores da democracia e dos oprimidos. Patacoada! Aqueles anos loucos não podem ser compreendidos se desconsiderarmos a Guerra Fria e o movimento comunista, que, digamos assim, se espraiava usando a luta armada para instituir “ditaduras do proletariado”. Foi um jogo mundial, de vida ou morte, entre democracia e totalitarismo, cujas cartas já estavam na mesa quando Stalin, em Yalta, sentou-se ao lado de Churchill e Roosevelt compondo o trio vitorioso na guerra (1945).
Nas duas décadas seguintes, o comunismo fez dezenas de milhões de vítimas. Houve a vitória de Mao na China (1949), o ataque comunista à Coreia do Sul (1950), a sangrenta transformação de diversos países europeus em “Repúblicas populares”, a invasão do Tibete (1950), a divisão do Vietnã (1954), o Pacto de Varsóvia (1954), a vitória de Fidel (1959), a construção do muro em Berlim (1961), a Guerra do Vietnã (1961), o envio de mísseis soviéticos para Cuba (1962), o fracasso da resistência húngara e da Primavera de Praga (1956 e 1968) e a revolta dos universitários franceses (1968). Chega? Não. Tem muito mais. Embora me falte espaço, ainda é imprescindível referir a exportação de guerrilhas e revoluções comunistas para dezenas de nações recém-nascidas no continente africano. E, é claro, a infiltração no nosso subcontinente, sob o patrocínio de Cuba, Rússia e China.
A esquerda em armas jamais instituiu uma democracia! Nunca, em lugar algum. No Brasil, ela ridicularizava os que persistiram no jogo político. Mas foi através dele que a maioria da opinião pública mudou de lado, retirou apoio ao status quo, chegou-se à anistia e se restabeleceu o regime constitucional. Anote aí: a esquerda em armas não puxou seus gatilhos pela democracia e pela Constituição! E ninguém sacou um bodoque para restaurar o governo de Jango. As coisas não foram como lhe contam, leitor.
Reprovar um lado não significa aprovar tudo que foi feito pelo outro. O contexto não justifica as duas décadas inteiras de exceção, nem o emprego da tortura. Mas anistia é perdão e pacificação. Lutando por algo muito pior do que o regime que dizia combater, a esquerda em armas praticou incontáveis assaltos e sequestros, executou mais de uma centena de militares e civis, e “justiçou” adversários e companheiros. Tivesse vencido, ia faltar prisão e paredón no país. Perdeu. Empenhou-se pela anistia e a obteve. Foi perdoada. Mas parece não saber perdoar. Quer restaurar ódios na ausência dos quais a política lhe fica incompreensível.
"Nas demais sociedades civilizadas vale o princípio pelo qual é permitido tudo o que não é expressamente proibido em lei. No Brasil é proibido tudo o que não é expressamente permitido"
Todo cidadão que acompanha, mesmo de longe, o noticiário político seria capaz de jurar que há uma campanha eleitoral em andamento no Brasil e que diversas pessoas querem suceder ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2010. Há a ministra Dilma Rousseff e o deputado Ciro Gomes, do lado do governo, o governador José Serra, pela oposição, e outros mais. Ao mesmo tempo, o público é informado diariamente de que não há nenhuma campanha eleitoral e nenhum candidato à Presidência. Os comícios não são comícios. A propaganda não é propaganda. Os candidatos não são candidatos. O que é isso tudo, então? É exatamente o que parece, mas o governo e a oposição não podem dizer que é. Podem fazer tudo. Mas não podem falar; aí já seria contra a lei, que, na sua ambiciosa lista de regras destinadas a regular tudo, marca o dia 6 de julho do ano que vem para o começo das campanhas. Como se sabe, temos leis eleitorais rigorosíssimas neste país, possivelmente as mais severas do mundo. Enquanto nas demais sociedades civilizadas vale o princípio pelo qual é permitido tudo o que não é expressamente proibido em lei, no Brasil dos tribunais eleitorais a coisa funciona ao contrário: é proibido tudo o que não é expressamente permitido. É uma surpresa, no fundo, que alguém consiga ser eleito com tanta proibição assim – e a saída para os políticos, inevitavelmente, é trapacear. É o que está acontecendo no momento.
É ruim, porque a campanha eleitoral de 2010, como tantas que vieram antes dela, começa em cima de uma falsificação por atacado da verdade. O presidente Lula, por exemplo, viaja sem parar pelo Brasil fazendo comícios e pedindo votos para quem for o candidato do governo – e ameaçando o país com a ruína se o eleitorado cometer a estupidez de preferir um outro nome. Mas ele diz que está "inspecionando obras". (Já da inspeção que a lei manda fazer, a dos tribunais de contas, o presidente vive reclamando.) E os comícios, com ônibus fretado, despesa paga pelo Erário e sorteio de casas entre a plateia? "Qualquer reunião com mais de três pessoas já é comício", diz Lula. Ou seja: o que é que se vai fazer? Afinal, o presidente da República não pode ficar trancado em casa. Se acham que é comício quando ele discursa em lugares onde há gente reunida, paciência. Quanto aos votos que pede para a ministra Dilma, nenhum problema. O presidente diz que está apenas elogiando uma grande servidora do governo – e apenas dando a opinião de que ela seria um colosso como sua sucessora. Que mal haveria nisso?
A ministra Dilma, por sua vez, faz rigorosamente tudo o que os coordenadores de campanha prescrevem para um candidato. Há tempos deixou de comparecer com regularidade ao seu local de trabalho e passou a correr de um lado para outro atrás de votos, seja em shows de música popular com o cantor Dominguinhos, seja em "fiscalização de obras" nas margens do Rio São Francisco; há pouco foi vista inaugurando um estádio de futebol em Araraquara. O que isso tudo teria a ver com as funções que é paga para exercer na Casa Civil? Do lado da oposição, a peça de teatro é estrelada pelo governador José Serra, que quer a Presidência tanto quanto qualquer um dos seus adversários, mas diz que só vai tocar no assunto no ano que vem. Serra não pode fazer campanha aberta como Lula faz; tem de se contentar com os limites impostos pelo seu cargo. Carrega a mão, por exemplo, na propaganda oficial; a última, no gênero, é a decisão da Assembleia Legislativa que autoriza o governo a fazer publicidade de suas obras em outros estados, para "promover o turismo" em São Paulo.
Registre-se, enfim, a notável contribuição do deputado Ciro Gomes, que recentemente passou a ter seu domicílio eleitoral em São Paulo, para manter aberta a possibilidade de candidatar-se ao governo paulista. Mas o deputado não mora em São Paulo; só a Justiça Eleitoral acredita nisso. Tudo o que fez foi passar quatro horas na cidade, no começo de outubro, apresentar um endereço de fantasia e assinar um papel num cartório garantindo que reside ali. Um cidadão "comum", como diria o presidente Lula, não pode ter um domicílio falso; aliás, vive tendo de provar onde mora com contas de luz, correspondência de bancos ou carnês de crediário, e se der um endereço que não é realmente o seu vai, com certeza, arrumar complicação. Já para ser candidato a presidente da República ou governador do estado não há problema nenhum.
Não se sabe, é claro, quem vai ganhar as eleições de 2010. Mas a verdade, desde já, está levando uma surra.
A ideia tradicional de verdade, combatida por Hobbes, passava pela adequação entre o conhecimento e o ser. Para o filósofo inglês, tal visão era inconsistente. E vai além: só Geometria e Política podiam ter a pretensão de verdade, por serem criações do homem
Por Renato Janine Ribeiro
Renato Janine Ribeiro, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor titular da disciplina de Ética e Filosofia Política na mesma universidade. Tem 65 capítulos de livros e 17 livros editados, tendo recebido o prêmio Jabuti de melhor ensaio (2001), a Ordem Nacional do Mérito Científico (1997) e a Ordem de Rio Branco (2009).
Espontaneamente, a maior parte das pessoas tende a entender a verdade como adequatio. Esse termo difícil significa, apenas, que haverá verdade quando houver adequação entre a coisa e o conhecimento que temos dela. Mas essa concepção é contestada desde o início da modernidade. Há várias críticas a ela, e aqui veremos a de um filósofo em especial: Thomas Hobbes.
Quando estudamos Filosofia, quase sempre se destaca um dos dois campos seguintes: a teoria do ser (ontologia, que pode incluir a metafísica ou estar perto dela) e a teoria do conhecimento. Os grandes temas vinculados à ação parecem ser - nos currículos universitários - menores. Assim, na disciplina de História da Filosofia se estuda o ser ou o conhecer. É nas disciplinas de Ética ou Filosofia Política que se discute o que é certo, errado, bom ou mau no agir - seja este agir coletivo (Política) ou da pessoa mais individualizada (ética).
Ora, a questão da verdade é impreterivelmente uma questão da relação entre o ser e o conhecer. A convicção espontânea de que "verdade é adequação" supõe que conheçamos o ser. Por outro lado, Hobbes deve sua fama à sua teoria da Política. Sua física foi exposta ao ridículo por séculos. Pudera, ele afirmava a quadratura do círculo (o que quer dizer simplesmente que "pi" é um número racional; ou seja, que a circunferência é comensurável com o diâmetro, assim como o quadrado com sua diagonal). Então, por que usá-lo para discutir a crise moderna da ideia de verdade como adequação? Vejamos.
"Os que buscam o justo caminho da verdade não devem ocupar-se com nenhum objeto a respeito do qual não possam ter uma certeza igual à das demonstrações da Aritmética e da Geometria" DESCARTES
Hobbes se considerava um físico de qualidade. Quando foi fundada a Royal Society, em 1662, ele se indignou porque não o chamaram para ser membro dessa primeira grande academia de ciências. Num texto furioso, lembra que Mersenne e Gassendi (que muitos conhecem como correspondentes de Descartes) o admiravam. Mas sua ira não deu em nada. Mais que isso: se dependesse de sua física, Hobbes hoje seria, quando muito, uma nota de rodapé nos livros de História da Filosofia.
Aliás, Hobbes é Hobbes - ou seja, é conhecido e respeitado como um autor relevante, mesmo por quem discorda dele - basicamente por sua Filosofia Política. Suas outras obras são interessantes. Sua Política é genial. Eis a diferença.
Então, por que ver como ele põe em xeque a ideia anterior de verdade?
DESCARTES DUVIDA DA VERDADE PARA EDIFICÁ-LA
Nem todos concordam que os ditos livros sagrados devem ser aceitos sem questionamento. Bhaktivinoda Thakura, um erudito da cultura védica, escreveu o seguinte, 300 anos atrás:
"O conhecimento é como o Sol, enquanto que todas as escrituras são somente seus raios. Nenhuma escritura em particular poderia possivelmente conter todo o conhecimento. As compreensões particulares (svatah siddha-jnana) das 'jivas' são a base de toda escritura. Estas compreensões deveriam ser reconhecidas como sendo dádivas da personalidade de Deus.
Os 'rishis' perceptivos obtiveram este conhecimento autoevidente diretamente do Brahman Supremo e o transcreveram para o benefício de outras jivas. Uma fração deste conhecimento tomou forma como o Veda. A alma condicionada é aconselhada a estudar o Veda com a ajuda de todas estas explicações.
Mas mesmo com a ajuda destas explicações, ele ainda assim deveria examiná-las (as escrituras) à luz de seu próprio conhecimento autoevidente (ou compreensão pessoal), porque os autores destasliteraturas explanatórias e comentários não são sempre claros em seus significados. Em alguns casos, os comentadores confessaram ter dúvidas sobre sua própria compreensão.
Portanto, faz-se necessário cultivar conhecimento à luz da própria compreensão individual. Esta é a regra que governa o estudo das escrituras. Sendo que o conhecimento nascido de uma compreensão pessoal é a raiz de todas as escrituras, como podemos esperar obter benefício ignorando isto e dependendo exclusivamente das escrituras, que são os ramos que crescem a partir desta raiz?"
Em suma, Bhaktivinoda Thakura defende uma abordagem filosófica das obras teosóficas capitais da cultura védica, rompendo assim com a ideia de uma "receptividade passiva" que nada questiona.
Vocabulário:
Rishi - no texto de Thakura, assume o significado de "indivíduos capazes de receber o conhecimento diretamente de Deus". Jiva - "vida"; no texto, assume o sentido de "almas", "pessoas vivas".
O rei Luís XIV visita a Royal Society, em 1671. Hobbes, que se achava um bom físico, não foi convidado para fazer parte da primeira grande Academia de Ciências, quando esta foi fundada, fato que o deixou indignado
Porque o problema da verdade como adequação é um problema análogo ao que aparece no que Hobbes chama de estado de guerra.
O estado de guerra é a condição em que estaremos, se o poder do Estado não coibir a violência. Hobbes propõe assim, como solução para as divergências entre os interesses ou desejos das pessoas (divergências, digamos, políticas), a mesma solução que para suas divergências em convicção ou ideia (divergências, digamos, teóricas): o apelo a um árbitro. Porque as divergências põem as pessoas em conflito. Entramos em guerra porque queremos mais coisas, maior poder ou prestígio. Mas, implicitamente, a reivindicação de riquezas ou honrarias significa que temos uma crença ou ideia de que merecemos mais do que os outros. Teoria e conflito não se separam. Divergências teóricas acarretam guerras, e conflitos supõem divergências de ideias ou convicções.
PODER DO ÁRBITRO
A grande questão hobbesiana é impedir os conflitos. A mais recente teoria política democrática procura administrar os conflitos: aceitá-los como legítimos e apenas impedir que se tornem destrutivos do tecido social. Para Hobbes, isso seria impossível. Todo conflito é potencialmente dilacerante. Daí que deva ser cortado pela raiz ou, existindo, seja resolvido por um árbitro. Esse árbitro, na Política, se chama soberano. Na teoria do conhecimento, ele se nomeia apenas árbitro, mas é quem decide as divergências.
Para Hobbes, o homem não tem como afirmar que o conhecimento que possui sobre, por exemplo, o Sol, é adequado ao que o Sol realmente é.
Parece estranho. Mesmo aceitando a tese hobbesiana de que os conflitos "de fato" resultem em guerra - e, portanto, a paz exija um poder soberano que coíba todos eles no nascedouro -, por que um árbitro saberia, melhor que os outros, qual o resultado de uma operação matemática ou a verdade na física? Utilizada nesses termos, a sugestão hobbesiana é insensata. Mas se a solução hobbesiana pode não contentar, a forma como ele coloca o problema é rica. (Isso vale também para sua Filosofia Política). Vejamos então como Hobbes se opõe à verdade como adequatio.
A ideia tradicional de verdade consistia na adequação entre o conhecimento e o ser: o que eu sei sobre o Sol está adequado ao que ele é? Ora, aqui há um grande problema. Quem pode dizer se meu conhecimento do Sol é adequado ao ser do Sol (isto é, ao que ele é)? Outra pessoa. Ou seja, uma pessoa como eu. Mas o que lhe confere o poder de decidir se minhas ideias sobre o Sol são verdadeiras ou não? Como sabe ela qual conhecimento está adequado ao ser? Só uma terceira pessoa, e depois uma quarta, e assim ao infinito. Essa vertigem só tem fim se tivermos, para decidi-la de uma vez por todas, um árbitro.
"É uma doença natural no homem acreditar que possui a verdade"
PASCAL
Notem que a tese da adequação continua implícita numa espécie de senso comum sobre o que é a verdade. Apenas Popper - pelo menos assim entendo -, com a tese da falseabilidade (ver box acima), consegue uma alternativa eficiente para ela. Mas a tese de Popper presume séculos de experimentação científica (a qual, na época de Hobbes, estava em seus começos) e inverte o argumento, porque não se trata mais de provar uma lei científica, e sim de fazer que ela não seja destruída.
Voltando a Hobbes, ele assim recusa a ideia de adequação do conhecimento ao ser. Com isso, só duas ciências manterão pretensões à verdade científica. Uma delas tem 2 mil anos, a Geometria. A outra é nova, a Ciência Política, "que não é mais antiga do que meu livro Do cidadão", afirma ele. Por que a Geometria proporciona verdades? Eis a primeira pergunta.
Porque nada, na Geometria, depende da observação. A observação se sujeita a erros, como mostrou, pela mesma época, Descartes. Posso me enganar; posso ser enganado; no limite, pode até haver um gênio maligno (diz Descartes) que me engana o tempo todo. Ou seja, o engano pode decorrer de falhas de minha parte, de mentiras alheias, e pode ser ocasional ou permanente.
A observação não traz a verdade. Hobbes concordaria que a observação traz uma possibilidade de erro. Mas a Geometria é a única ciência existente que não depende da observação. Ela trabalha com figuras criadas por nós, que não existem no mundo real (não há círculos ou retas perfeitos na natureza). Por isso, tudo o que inferirmos sobre elas é verdade.
Daí, os absurdos da ciência hobbesiana, ridicularizados por muitos comentadores - lembremos que o estudo sério da física hobbesiana data de poucas décadas. Durante 300 anos, zomba-se dele, como zombaram os fundadores da Royal Society, a mais antiga sociedade científica do mundo, que não o convidaram para conviver com eles.
No caso da Geometria, sustenta Hobbes que o quadrado é comensurável com a diagonal. Por quê? Porque, tratando-se de criações do espírito humano, os números não podem ser irracionais.
A VIA POPPERIANA
Talvez a melhor solução para o problema da verdade em Ciência seja, ainda, a proposta por Karl Popper. Tentarei traduzi-la em linguagem não popperiana.
Desde a Antiguidade, há certo problema entre a dedução e a indução. Se tivermos certeza sobre um conhecimento, tudo o que deduzirmos dele estará também correto. Terá o mesmo nível de verdade, ou conseguirá de nós a mesma percepção de certeza, do que a proposição original. O problema é que pouco conhecimento novo se gera assim. Há uma única grande exceção: a Geometria ou, quem sabe, as matemáticas em geral. Como Euclides parte de algumas proposições que considera evidentes, todos os seus Elementos de Geometria compartilham a mesma verdade, até os teoremas não triviais, como o de Pitágoras. Mas para o conhecimento adquirido pela experiência, a dedução é pobre. Ou seja, quanto mais verdade ou certeza ela proporciona, menos conhecimento novo traz.
Aqui entra a indução. Em vez de partir de uma proposição ou de algumas verdades, para inferir (no caso, "deduzir") uma série de consequências, na indução parte-se de várias constatações comprovadas para concluir uma lei científica. Por exemplo, se constatamos que o Sol nasce todo dia e que depois de algumas horas chega a noite, ou que a água ferve a cem graus, podemos induzir leis científicas, que têm em seu favor o fato de produzirem conhecimento novo. Contudo, nada assegura que sempre as coisas sejam assim. São leis mais precárias. Mas, ao mesmo tempo, são elas que fazem avançar a Ciência, pois trazem conhecimento novo. (ver box sobre os astecas)
A proposta de Popper é elegante e brilhante. Em vez de afirmar que há leis científicas que são provadas, vira a questão pelo avesso. Só é científico o que se coloca sempre em sursis. Só é lei científica aquela que se enuncia em termos que permitem sua eventual refutação, sua conversão em falsidade - daí, o termo falseabilidade (em inglês, falsificability). Isto é, só é lei científica aquilo que pode ser demonstrado falso (no sentido de errado, não no sentido de mentira deliberada). Assim, para nossos dois exemplos: "o dia sempre se sucede à noite" seria científico porque implica que, "se uma vez o dia não se suceder à noite", estará refutado. "A água ferve a cem graus" é ciência porque está implícito que, "se a água não ferver a cem graus", estará refutada.
Aqui vêm alguns comentários adicionais. O primeiro, que não se opõe a Popper, é que muito conhecimento científico não chega a ser refutado. Os teoremas da Geometria euclidiana não foram refutados com as geometrias não euclidianas que surgiram nos últimos 200 anos. Continuam válidos, mas sua amplidão de validade foi diminuída. Já a temperatura em que ferve a água depende de condições atmosféricas. A lei científica é hoje mais complexa, mas inclui que - em certas condições - a água ferva a cem graus. O avanço da Ciência não é feito tanto de refutações, mas de correções.
O segundo é que a regra popperiana não vale para muitas formas de conhecimento. Os grandes exemplos são a Psicanálise e o marxismo. Se formularmos o complexo de Édipo, ao modo popperiano, como "um filho deseja matar o pai e casarse com a mãe e isso é válido até encontrarmos um filho que não deseje a mãe nem queira matar o pai", um freudiano poderá responder que essa "exceção" na verdade é apenas um caso de resistência, de denegação pela pessoa de um sentimento que - em última análise - tem. Não há como alegar evidências empíricas contra a Psicanálise, porque ela não lida com elas, mas com sua interpretação. E, para um marxista, um caso de patrão que não explore o empregado não refuta a existência da exploração: é apenas um modo de fazer os trabalhadores não perceberem que são explorados.
Diante disso, vários comentadores sugeriram que Psicanálise e marxismo não seriam ciências. Não o são, pelos critérios de Popper. Mas esses critérios não valem para tudo. Eles são conhecimentos importantes e de qualidade alta. A tese de Popper não serve para pensar seus graus de cientificidade.
De todo modo, o que nos interessa aqui é que Popper, ao deslocar a questão de como se prova uma lei científica para uma lei científica é algo que por definição está sempre em sursis e inclui na sua própria natureza o seu caráter precário, realiza uma façanha notável no plano do conhecimento
Leis científicas surgem da indução feita após várias constatações comprovadas. São verdades que podem vir a ser contestadas, mas que fazem avançar a Ciência
Para Hobbes, a razão não é uma faculdade. Ela é apenas um cálculo, uma conta que fazemos. Ora, como podemos criar algo - criar figuras geométricas a partir quase do nada - e não conhecer o que criamos? Portanto, talvez seja mais difícil fazer a conta, mas um dia chegaremos ao número racional que exprime a relação entre o lado e a diagonal do quadrado, entre o diâmetro e a circunferência do círculo. Faz sentido, não faz?
O mesmo raciocínio explica a segunda ciência segura e certa - a da Política. J.M.N. Watkins, bom estudioso de nosso autor, comete um erro quando explica como Hobbes deduz a Política. Hobbes aplica o método galilaico, que consiste em reduzir a complexidade aparente dos fenômenos a seu elemento mais simples (parte "resolutiva" do método) e, depois, a partir desse elemento, em reconstruir sua complexidade, só que agora com base no conhecimento e não na aparência (parte "compositiva" do método). Mas onde erra Watkins? Quando diz que o elemento da Política é o indivíduo. Não é. Se assim fosse, o Estado seria um composto de indivíduos, o que até pode ser verdade, mas não daria a essa tese consistência científica.
Por Renato Janine Ribeiro
OS ASTECAS
Um exemplo da precariedade citada no box anterior são os astecas. Quando se deu a conquista espanhola tinham notáveis conhecimentos científicos e técnicos, não estavam seguros de que a cada noite se seguisse um dia. Acreditavam que o universo estava sempre em perigo; para que o Sol nascesse, que as estações se sucedessem, que a primavera encerrasse o inverno e as colheitas alimentassem o povo, seriam necessários sacrifícios humanos, que agradassem aos deuses. Ora, essas práticas assustadoras assentavam na ideia de que a regularidade dos acontecimentos não basta para dizer que sejam universais. O fato de que há milênios o dia se suceda à noite não garante que sempre será assim.
"Toda a ideia que é absoluta em nós, ou seja, adequada e perfeita, é verdadeira"
ESPINOSA
Hobbes explica que a observação não pode ser critério para a verdade, porque ela leva a erros e ilusões. As miragens, comuns no deserto, são ilusões dos sentidos
O elemento mínimo que funda o Estado é o contrato - como se vê em Do cidadão ou no Leviatã. Remontando do mundo complexo em que vivemos até a base das relações entre os homens, Hobbes encontra o contrato, que não é uma verdade histórica, pois pode nunca ter acontecido, mas é "como se" tivesse acontecido. Só se explica a sociedade entre os homens com base neste "como se". Ele é o ponto de partida para fundar o Estado, a paz, a vida social. E quem firma esse contrato (mesmo que fictício)? Nós, os homens. Nós, que graças a ele nos tornamos povo. Portanto, o contrato está na mesma posição dos primeiros princípios de Euclides. Também é uma criação humana. Também não depende de existir ou não na vida "real". E, por isso, podemos conhecê-lo - e conhecer suas consequências - com a mesma certeza, e dotado da mesma verdade, que a Geometria. É por isso que Hobbes pode dizer que sua Ciência Política é, mesmo, Ciência.
Deu certo? Nenhum político jamais se disse hobbesiano. Só no século XX nosso filósofo - ao mesmo tempo em que Maquiavel, que, por sinal, ele criticou - ganhou simpatia, ainda assim apenas entre estudiosos da Filosofia. Antes disso, nem isso! Daí também que na bibliografia de William Sacksteder sobre Hobbes, entre os 200 e 300 anos de sua morte (isto é, o que foi publicado sobre ele de 1879 a 1979), haja pouquíssima coisa boa, e de lá para cá comece a haver muito trabalho de qualidade sobre ele. Mas respeitá-lo, por sua lucidez e franqueza, não é igual a assumir suas propostas sobre a organização do Estado ou mesmo sobre a quadratura do círculo. Contudo, a forma como critica a ideia de verdade como adequatio é das mais brilhantes que existe. Hobbes, cuja teoria política é genial enquanto sua física é só interessante, teve nas duas um papel análogo: apontou problemas, dissolveu velhos mundos, mesmo que o conteúdo de suas novidades, de suas criações, não tenha vingado.
Este artigo se inicia com uma história verídica, ocorrida há alguns anos em um complexo tenístico da Flórida, nos Estados Unidos. Era um clube com inúmeras quadras e ali estava sendo disputado um torneio amador em que, por atraso dos jogos, dois tenistas ficaram disputando uma partida até a madrugada, quando não havia mais ninguém no clube, à exceção dos dois jogadores e do árbitro geral, que estava aguardando o resultado na casa da arbitragem, situada bem distante da quadra da disputa. Terminado o jogo, os dois jogadores se dirigiram ao árbitro para comunicar o resultado. Perguntou o árbitro: “Quem ganhou?”. Respondeu um dos jogadores: “Fui eu”, ao que o outro falou: “Não, fui eu”. Como não havia testemunhas, o jogo teve de ser repetido no outro dia, dessa vez com assistência atenta. No fato em questão, obviamente, um estava falando a verdade e o outro era um tremendo cara de pau, mentindo com toda a convicção, aliás, comme Il faut, segundo os especialistas.
Todos os dias, jornais, revistas e redes de televisão nos bombardeiam com esse contraditório. Ora, para o cidadão comum, como pode haver duas verdades, completamente antagônicas sobre o mesmo fato?
O recente episódio envolvendo a ministra-chefe da Casa Civil e a ex-secretária da Receita Federal é um exemplo clássico dessas atitudes. Uma está falando a verdade, a outra não. As duas versões prevalecerão até que se encontrem provas de uma ou de outra e, mesmo assim, essas provas poderão ser contestadas conforme sua consistência.
Por que as coisas são assim?
Quando crianças, aprendemos que existe o certo e o errado, a verdade e a mentira, o mocinho e o bandido, que o bem prevalecerá, mas quando crescemos e “amadurecemos” nos damos conta de que não é bem assim.
A ideia de que “a mentira é um componente histórico da política e instrumento de trabalho de seus agentes” é, no mínimo, polêmica, visto que na maioria das vezes essa atitude favorece o mentiroso e não sua audiência.
A verdade é relativizada para servir às finalidades de quem as divulga. Nada tão grosseiro como o poste que bate no carro, mas adaptações dos fatos para servir aos interesses individuais ou coletivos. O fato em si deixa de ser importante, o que vale é a adequação do mesmo através de versões que, dependendo de como são divulgadas, poderão prevalecer permanentemente. Exemplo disso, em tom de blague, é outra história, também verídica, de um famoso criminalista de Porto Alegre que, ao receber um cliente apavorado porque tinha matado uma pessoa, lhe disse: “Um momentinho, dizem que o senhor matou alguém”.
É a chamada teoria da meia garrafa, que pode ser interpretada como meio cheia ou meio vazia.
E nós, então, humildes mortais, como ficamos?
Cada um preso às suas convicções, procurando analisar os fatos de maneira o mais isenta possível e torcendo para que os mocinhos ganhem no final.
*Médico e professor universitário
Fonte: Jornal zero Hora - Nº 16069 - 21 de Agosto de 2009.