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domingo, 10 de outubro de 2010

Sentido ético do eterno retorno em Nietzsche, por Suze Piza e Daniel Pansarelli*


O conceito que não tinha um compromisso com o que se convencionou chamar de coerência racional e que pregava a honestidade instintiva.


Por Suze Piza e Daniel Pansarelli*

A inconstância, talvez, possa ser tomada como o mais constante elemento que atravessa a obra filosófica de Friedrich Nietzsche. Desde seus primeiros escritos, a presença da figura dionisíaca – ainda que ao lado da outra, apolínea – marca o descompromisso de Nietzsche com a coerência racional, ou, dito de outra forma, seu compromisso com a honestidade humana, esta que ora se manifesta correta e logicamente (Apolo), ora é puro instinto, contradição, desejo (Dionísio). Lamentavelmente, o desenrolar-se da história do Ocidente teria favorecido a característica racional dos seres humanos, levando-os à constante repressão de seus instintos e desejos. Racionalizado historicamente além do que lhe é natural, estamos hoje, segundo Nietzsche, diante desse homem distorcido, amputado de sua plenitude de ser.
do autor já demonstram sua preocupação com a inconsciente abdicação, pelos homens, de seus desejos instintivos. Se Apolo e Dionísio, como metáforas representativas da constituição do ser, são figuras presentes em O Nascimento da Tragédia, de 1871, as consequências da deformação ocidental deste humano, por meio da valorização do racional em detrimento do instintivo, parecem ser o motivador da busca procedida por Nietzsche em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral, de 1873. Nesse breve texto, o autor acusa: a humanidade habituou-se a “mentir em rebanho”, a aceitar como verdadeiras as construções falsas, improváveis ou impossíveis de se comprovar, apenas por serem estas as construções aceitas pelo conjunto da sociedade.
A distorção de valores ocasionada pelo necessidade de aceitação social, o que leva os tantos e fracos a mentirem em rebanho, tem como desdobramentos dois complicadores à construção de uma ética que possa, efetivamente, ser compreendida como tal. A primeira, e talvez mais superficial dessas complicações, envolve a impossibilidade de se determinar o que poderia, de fato, ser considerado como um agir ético. Em sua argumentação, Nietzsche explica: nada sabemos sobre a “honestidade”, mas tão-somente sobre ações isoladas, cada distinta da outra, as quais nós, arbitrariamente e descartando sua individualidade, atribuímos um sentido comum, dando-lhe o nome “honestidade”. Só assim, pela arbitrária imposição de características comuns a ações distintas, chegamos a um conceito, fictício, o qual defendemos infundadamente como ético. Um sujeito encontra uma carteira e devolve esta a seu dono com todo o conteúdo; outro ajuda uma pessoa idosa a atravessar a rua, sem tirar proveito dessa pessoa; dessas duas ações, não participa nenhum elemento que carregue o nome “honestidade”, mas, ainda assim e sem explicações adicionais, chamamos ambas de ações honestas; mais que isso, identificamos a honestidade com a postura ética. Ora, nada há de “honestidade” em nenhuma dessas ações: na primeira, há uma carteira, um dono e a devolução; na segunda, duas pessoas e uma rua a ser atravessada. Nada mais. Qualquer tentativa de aproximar duas ações tão distintas só pode fundar-se na ficção inventada por alguém e irrefletidamente acompanhada pelo conjunto da sociedade, pelo “rebanho humano.”
Mas o problema de uma verdadeira ética humana tem suas raízes mais profundamente estabelecidas, chegando à própria constituição deste homem que habita o mundo presente. Após tantos séculos sofrendo e, depois, aceitando as distorções impostas ao seu próprio ethos, ao seu modo de ser no mundo, passadas tantas e tantas gerações em que a racionalidade apolínea imperou, restringiu, coibiu, castrou o desejo e o instinto dionisíacos, o próprio homem parece ter-se perdido. Aceitar acriticamente modelos éticos impostos, viver como gado humano, é consequência, não causa. A origem desta aceitação parece estar, segundo Nietzsche, na própria distorção da humanidade do humano. Este ser mais racional que instintivo não representa o pleno desenvolvimento da potencialidade humana ou, para dizer de maneira aristotélica – e, portanto, recriminada por Nietzsche –, este ser tal como descrito representa a atualidade do homem, não sua potência. Mas há, ainda, em alguns, a vontade de potência. O desejo – dionisíaco – de deixar de ser assim, tão humano.

O último homem e o além-do-homem

A reflexão acerca da condição humana, a partir de Nietzsche, leva à pergunta: que homem é esse que vemos pela nossa janela? Que homem é esse que vemos ao olhar no espelho? Segundo o autor, um homem que vive entre a felicidade, por um lado, e segurança, comodidade, ausência de dor, por outro. Essa vida não parece problemática à primeira vista. Mas só à primeira vista, pois se olharmos mais de perto: onde está o homem?
O homem foi apequenado, amesquinhado, o tipo-homem moderno é uma possibilidade histórica infeliz, a menor das possibilidades, de tantas que poderia ser. O último homem, tal como Nietzsche caricaturiza-o, é o animal de rebanho, esse animal que almejou o advento da felicidade, o desaparecimento da desigualdade, da injustiça e do sofrimento e que, conseguindo realizar parte desses projetos, está numa vida amorfa e é fisiologicamente decadente, pois é impotente para sofrer e impotente para suportar o sofrimento, é fraco, humilde, subserviente, é um sujeito (aquele que se sujeita a).
Que conceito de felicidade é esse, almejado e conquistado? É uma felicidade pequena, domesticada, dominada por freios sociais: segurança, bem-estar, estabilidade? Que felicidade poderia haver nisso? Isso é antivida. É vida não intensa, não experimentada, não trágica. A intensidade é condição necessária de toda grandeza, é a possibilidade de elevação do tipo-homem que está num estado de mediocrização (Mittelmässigkeit), redução da vida a relações de mercadorias, prazeres pequenos, rotinas entediantes, uma vida envolta por maquinaria, como vai dizer Heidegger mais a frente; corpos adestrados, como dirá Foucault. O homem foi sucateado, enquanto a Terra é racionalizada e administrada.
Nietzsche vê no modo de vida moderno uma anulação da subjetividade humana, em que a individualidade se perde, e em que impera a massa de rebanho, o espírito gregário e o consequente embotamento do indivíduo. Ele é, sem dúvida, o grande teórico e crítico da modernidade, que faz, para usar os termos do primeiro, uma “análise implacável de tudo que existe”. As poderosas teses levantadas por Nietzsche contra a religião, a moralidade e a Filosofia misturam a análise mais crua, inspirada no Iluminismo, com uma vitalidade romântica, para atacar os aspectos da cultura moderna que contrariam a vida. Essa é uma Filosofia da vida, vitalista. Nietzsche é um autor bombástico que não tem receios de produzir uma Filosofia a golpe de martelo. Sua crítica ferrenha à modernidade passa pela despersonalização dos indivíduos e pela formação social que cria um homem, segundo ele, fraco, humano, demasiadamente humano.
Defendendo que o homem é a somatória de impulsos, desejos e vontades, acredita que a visão de animal racional aceita pelo Ocidente como definidora do ser humano é equivocada, pois a razão é um produto cultural, social. A razão seria fruto de uma vida gregária que só surge em decorrência das circunstâncias as quais os indivíduos foram expostos.
Vivendo no mundo da razão e, portanto, valorizando a consciência como seu espaço privilegiado, o ser humano cria uma série de regras morais de convivência que o limitarão como ser humano. Dentre essas morais, o cristianismo é a que Nietzsche dedica mais tempo e espaço de reflexão. O cristianismo representa para Nietzsche uma moral dos fracos, pois valoriza o servilismo, a humildade, a aceitação, o conformismo com um tipo de sofrimento que só retrai, submete.
O cristianismo seria o legítimo formador de uma massa de rebanho, sem força, individualidade ou autonomia. Seria uma moral massificadora e de escravos. A modernidade, vitimada pelo capitalismo e herdeira da moral cristã, será fatal para as possibilidades da vida humana.

A antropologia nietzschiana passa pela defesa de uma superação desse humano que aí está. Na defesa de um super-homem que teria em si resguardada a força, os instintos e os desejos, rejeita-se o homem que surgiu do tipo de sociabilidade que criamos. O homem seria o meio entre o animal e o super-homem. A defesa do super- homem, em última instância, representaria um ultrapassamento da modernidade. O retorno do homem a si mesmo, resgate daquilo que perdeu quando se tornou consciência.
Numa perspectiva vitalista, Nietzsche se apega na antiga concepção do mundo grego – entre os princípios apolíneos e dionisíacos, quando estes estavam em vigência, e advoga em favor da vontade humana.
E é em meio a esse contexto de domesticação do homem que se gesta o seu contrário, é aí que Nietzsche desenvolve seu conceito de “além-do-homem” (Übermensch) como contramovimento, visando fazer face à mediocrização em andamento na modernidade, que infelizmente toma consciência de si na figura histórica do niilismo europeu1 . Quem é o alémdo- homem? É a representação da vontade de potência, da força e do desejo, da experiência que perfura e fortalece. O além-do-homem é da arte, da vida, do corpo, amoral. Indivíduo soberano, autêntico, é uma espécie de homem mais desenvolvida. Essa seria, portanto, uma existência sobre-humana, radicalmente singular, corporal, singular, livre.
Essa vida é vida de 1fato! E essa vida vale a pena ser vivida. Uma vida de experiências intensas, de contato com a terra, de realizações de desejo, de exercício da vontade. Uma vida que ao morrer seria mais que morte, seria consumação, combustão. O avesso da morte em vida do último homem, o além-do-homem acaba, esgota-se de tanta vida, a morte é apenas o acabamento de uma existência vivida em sua intensidade. Essa vida valeria ser vivida tantas vezes quanto fosse possível. O eterno retorno de Nietzsche pode ser interpretado como um recurso hipotético de validação da vida: eu viveria tantas vezes quanto fosse possível a mesma vida, pois ela foi, de fato, vivida. O conceito funciona também como um princípio ético, um imperativo que sai em defesa da vida e do corpo: “Age de tal maneira que tua vida possa ser vivida tantas e tantas vezes exatamente da mesma maneira”.


O eterno retorno, regra de ouro

A proposição do eterno retorno, tal como formulada por Nietzsche nos textos de 1881, é uma regra de ouro para o julgamento da eticidade da vida. Se o ser humano não tem em si mesmo o referencial para julgar a qualidade de sua vida – para julgar se vive ou não uma “boa vida” –, visto que se deformou historicamente, e sabendo que não pode confiar na razão (vilã da deformação humana) como critério para fazer este mesmo julgamento, o eterno retorno apresenta-se como possível parâmetro à valoração ética da vida.
Viver a mesma vida já vivida desde o nascimento até hoje, sem a possibilidade de transformar nada, sem alterar nenhuma escolha, sem suprir sequer uma omissão. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de viver eternamente esta vida até então transcorrida. Essa é a condição. Para aqueles poucos que vivem a boa vida, autenticamente, essa condição será desejosa: valerá a pena viver eternamente repetindo os mesmos atos, vendo a ampulheta de sua vida virar-se outra e outra vez. Para a grande massa, aquele “rebanho”, a situação seria odiosa, desesperadora. Aqueles que se resignam no presente, buscando relegar a um futuro – que, a bem da
verdade, não esperam concretizar – o que verdadeiramente desejam, esses abominam a vida eterna e circular. Por isso, o eterno retorno é uma regra de ouro da ética. A única que permite a cada um, em sua mais honesta individualidade, projetar e, principalmente, realizar a vida ética, a vida que vale ser vivida. Uma vez. E outra. Mais outra...

1 A reflexão trazida por este texto encontra respaldo no texto de Oswaldo Giacóia Jr., Críti ca da moral como políti ca em Nietzsche.

*SUZE PIZA é mestre em Filosofia pela UNICAMP. Atualmente, é doutoranda em Filosofia pela UNICAMP e professora assistente da Universidade Metodista de São Paulo ministrando aulas em diversos cursos da universidade na área de Filosofia. 

*DANIEL PANSARELLI é doutor em Educação (Filosofia e Educação) pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Educação e graduado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente, é professor na Metodista, onde coordena o curso de pós-graduação em Filosofia Contemporânea e História.

 

Apolo
 
Filho de Zeus e Leto e irmão gêmeo de Artemis, foi um dos principais deuses da mitologia greco-romana. É o deus da beleza, da juventude, da luz, do sol e da música. É o fundador do oráculo de Delfos, que tinha o objetivo de dar conselhos aos gregos por meio da sacerdotisa Pitonisa. Porém, diz a lenda que suas flechas podiam causar doenças aos homens.


 

Foucault

Importante filósofo francês nascido em 1926 e falecido em 1984. Publicou seu primeiro livro Doença Mental e Personalidade, em 1954. Encontrou em Nietzsche sua fonte de inspiração. Usava uma linha de pensamento mais “contextualista”, ou seja, analisava somente as interpretações feitas ao longo da História.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Razão e instinto, por José Francisco Botelho

O prazer de viver e o fatalismo da existência iluminam a obra original do pensador alemão que marcou o século 20

 

Eternamente insatisfeito, eternamente incompreendido e provocador até o último fio do bigode, o alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi o maior enfant terrible da filosofia ocidental nos últimos dois séculos. Exemplo perfeito do pensador que realmente diz o que pensa sem máscaras nem firulas – uma virtude que hoje anda fora de moda –, ele cortejou o escândalo, brincou com a loucura e, por causa de sua teimosia, amargou uma vida solitária e infeliz. Sua recompensa é o fascínio perturbador que continua exercendo sobre gerações de inquietos leitores mais de 100 anos após sua morte: pode-se discordar de suas opiniões, mas é impossível não se enredar em sua prosa temperamental e vertiginosa. Escritor, poeta, músico e crítico da cultura, Nietzsche foi acima de tudo um pensador hiperbólico – em suas paixões, em seus rancores, em sua lucidez e em seu delírio.

A posteridade o recorda principalmente por suas obsessivas diatribes contra a moral cristã – é de sua lavra aquele mantra religiosamente repetido pelo ateísmo moderno: “Deus morreu”. A sanha antimoralista de Nietzsche domina seus últimos escritos, recheados de grandiloquência e amargura; a leitura de suas obras de juventude, contudo, mostra que ele foi muito mais que um profeta do niilismo e arauto da morte divina. A força original de seu pensamento é a revolta contra os exageros do racionalismo – sua controversa façanha foi atacar frontalmente a ideia de que a razão humana, por meio da lógica e do bom senso, possa estabelecer verdades absolutas e compreender até as profundezas mais obscuras do próprio homem. Contra esse fundamentalismo do intelecto, Nietzsche propôs a madura aceitação do que exista de irracional no universo e em nós mesmos – helenista eufórico, ele se inspirou na terrível sabedoria das tragédias gregas para elaborar sua mistura de pessimismo e afirmação da vida. Em vez do rigor religioso ou da fé científica, ele apregoou a liturgia do fenômeno estético, espécie de misticismo sem Deus, que vê na arte a única redenção possível para o ser humano – essa criatura estranha e fantástica que Nietzsche comparou, em uma de suas passagens famosas, a “uma corda atada sobre um abismo”.


Nietzsche 

Influente como poucos, o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) iria não apenas marcar a história da filosofia mas também a estética e a política de nossa era.

Anticristo?  

Ironicamente, o autoproclamado Anticristo da filosofia veio ao mundo em uma família de tradição religiosa. Era filho, neto e sobrinho de pastores protestantes – e ele próprio cogitou seguir essa carreira. Ainda criança, testemunhou a morte precoce do pai: vitimado por uma obscura doença nervosa, Karl Ludwig Nietzsche perdeu a lucidez e a vida aos 34 anos de idade. A moléstia foi misteriosamente diagnosticada como “amolecimento do cérebro”. O pequeno Nietzsche se convenceu de que aquele era um mal hereditário, vendo na morte do pai um augúrio de seu próprio destino.

Por volta dos 15 anos, o filho do pastor trocou os salmos religiosos pelos clássicos gregos. Alardeando sua perda de fé, brigou com a família, tornou-se um erudito precoce e, com apenas 24 anos, virou professor de língua e literatura grega na Universidade de Basileia. Em 1870, foi convocado pelo exército, servindo como assistente médico no campo de batalha, durante a Guerra Franco-Prussiana (experiência que arruinou a saúde do jovem gênio livresco). Enquanto cuidava de feridos, sob o estrondo dos canhões, ele começou a escrever sua primeira obra-prima: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música. Publicado em 1872, o livro é um fascinante mergulho no espírito da antiga civilização grega, escrito numa prosa deliciosamente estranha, em que a reflexão filosófica flerta descaradamente com a poesia.

Para Nietzsche, as principais tragédias gregas – escritas por autores como Ésquilo e Sófocles no século 5 a.C. – contêm uma imagem profética da condição humana. Os heróis trágicos, como Édipo, Antígona e Prometeu, são levados à desgraça e à destruição por suas próprias virtudes. Contudo, em uma tragédia que se preze, a catástrofe não leva ao desespero total, mas a um misterioso consolo metafísico. A essência do mundo trágico está na capacidade de sorrir enquanto se mergulha no coração das trevas, e é isso que Nietzsche tenta resgatar, como antídoto para as mazelas e fraquezas de sua própria época: somos todos personagens de uma grande tragédia cósmica, e devemos viver de acordo com nossos papéis, sem recair no escapismo ou na lamúria. A chave da sabedoria está em aceitar o lado selvagem e transitório da vida – o que não significa renunciar a ela. Esse perigoso equilíbrio entre o prazer de viver e o fatalismo existencial é regido, na filosofia de Nietzsche, por duas figuras ao mesmo tempo opostas e complementares: os deuses Apolo e Dionísio, enfezados irmãos olímpicos, que entre socos e abraços regulam o estado de espírito da humanidade.

Na obra de Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco são dois impulsos ou visões de mundo que, ao longo dos séculos, se digladiam e se completam, determinando a postura humana diante da vida em diferentes épocas e lugares – e é na produção artística que esses polos se manifestam de forma mais clara. Na mitologia grega, Apolo é o deus da harmonia, da ordem, do comedimento, da civilização. Para Nietzsche, essa divindade altiva, serena e jovial representa a autoconfiança do ser humano e o desejo de conhecer e transformar humanamente o mundo. Sob a inspiração de Apolo, os homens tentam domar o caos do universo com a força da imaginação. O espírito apolíneo é o que separa o ser humano da natureza anárquica, e o leva a criar seu próprio mundo de ordem e beleza, recalcando o lado sombrio da existência. Escreve o poetafilósofo: “Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância – e que outra coisa é o homem? –, tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão magnífica que cobrisse com um véu de beleza sua própria essência. Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, de algum modo, tornam a existência digna de ser vivida”. O apolíneo leva o homem a desafiar o cosmos desumano e a criar a mais doce das ilusões – a vida em civilização. O melhor exemplo desse impulso são as artes visuais da Grécia antiga, com seu amor pelas proporções justas e por sentimentos bem dosados.

De tempos em tempos, contudo, o límpido reino de Apolo é invadido por seu irmão escandaloso e mal comportado. Deus da embriaguez, do êxtase e das emoções descontroladas, Dionísio é o símbolo da desmedida, do reencontro com a pulsão caótica da natureza. Pintores e escultores o representam com um sorriso ora maligno, ora sensual, e uma infalível taça de vinho nas mãos; nos tempos antigos, seus adoradores costumavam entregar-se a épicas bebedeiras e loucas orgias à luz do luar. Se o apolíneo tenta imortalizar as aparências criadas pelo homem, o dionisíaco quer rasgar o véu das ilusões e colocar-nos em contato com o verdadeiro fundamento da vida – o eterno ciclo de destruição e recriação do universo, regido por forças incompreensíveis, além do nosso entendimento. Dionísio traz a intuição de que todas as regras humanas, como a moralidade, são convenções (úteis ou não), abrindo-nos um espaço que está “além do bem e do mal” – expressão que dá título a outra obra famosa de Nietzsche. Mistura de terror e êxtase, em que a mente brinca com sua própria aniquilação, o dionisíaco dissolve a fronteira entre os indivíduos, o limite entre a cultura e a natureza, criando a experiência mística da unidade primordial. O homem vê seu próprio limite e é desafiado a intuir o que está além do humano. “Também a arte dionisíaca quer convencer-nos do eterno prazer da existência: só que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas”, escreve o autor em O Nascimento da Tragédia. “Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce está condenado a um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual – e não devemos, todavia, estarrecer-nos... Nós mesmos somos, por breves instantes, o ser primordial, e sentimos seu indomável prazer de existir.” A expressão máxima do dionisíaco é a música: arte sem formas, composta por emoções puras e desencarnadas. Na tragédia grega – que celebrava ao mesmo tempo a individualidade humana e o poder da fatalidade cósmica –, as forças dos dois irmãos olímpicos se contrabalançaram perfeitamente. Um belo e rápido equilíbrio, que existiu por um instante na história e depois desapareceu para não mais voltar.

Perigos do intelecto

O “homem trágico”, modelo de conduta para Nietzsche, é aquele que conhece os limites do entendimento humano e, contudo, não perde a libido pela vida. Mantém os olhos alegremente fixos no abismo, oscilando entre a embriaguez e a forma. Para Nietzsche, essa difícil simetria foi rompida pelo triunfo do racionalismo, que ocorreu com a filosofia de Sócrates e Platão no século 4 a.C. Com eles, nasceu uma degeneração do apolíneo: o “homem teórico” que rechaça a sabedoria dionisíaca e só aprecia aquilo que pode compreender. Renunciando ao mistério, ele põe suas supostas verdades acima dos prazeres indecifráveis da arte e da vida. Basta uma rápida reflexão sobre nosso próprio tempo para constatarmos que a tirania do homem teórico continua a atravancar nosso caminho. Ao longo do último século, quantas teorias – vindas das mais diversas áreas – tentaram convencernos de que não temos o direito de desfrutar o simples prazer de um bom livro ou de uma boa pintura? Quantos intelectos rigorosos tentaram reduzir nosso gozo estético a alguns mecanismos sociais mais ou menos suspeitos e aburguesados? Perguntas retóricas, naturalmente, pois seria impossível contabilizar essa trupe de hermeneutas tediosos cujo nome é legião.

Após O Nascimento da Tragédia, Nietzsche continuou sua cruzada contra a tirania racionalista em obras cada vez mais ácidas e mordazes, enfiando seu dedo petulante nas feridas da civilização e recusando-lhe qualquer anestésico. Sua verve explosiva acabou lhe arruinando a carreira acadêmica e afastou- o dos amigos. Sua saúde, que sempre fora frágil, deteriorou-se precocemente: atormentado por moléstias como a difteria e a sífilis, Nietzsche começou a perder a voz e a visão, deixando a vida universitária aos 34 anos. Irritado com o crescente nacionalismo germânico, renunciou à cidadania alemã e passou a viver como um pensador nômade, sem Deus e sem pátria – morando em estalagens baratas ao redor da Europa e escrevendo livros atrás de livros em meio a dores de cabeça dilacerantes, cólicas e crises de vômito. Essa descida aos infernos completou- se aos 45 anos, quando a sombra da loucura, que sempre o havia rondado, atingiu- o de forma devastadora. Certo dia, andando pelas ruas de Turim, o filósofo avistou um cocheiro que fustigava cruelmente sua montaria. Aos gritos, Nietzsche se abraçou ao pescoço do cavalo, tentando protegêlo do chicote. Depois caiu no chão, desmaiado. Havia perdido a razão, e nunca mais a recobraria – até hoje não se sabe se o colapso foi causado pela sífilis, pela genética ou por motivos mais obscuros. Nietzsche morreu em Weimar, pobre e louco, em 1900.

Cem anos após o ato final dessa tragédia, a obra de seu anti-herói desgrenhado e apátrida continua fonte inesgotável de perturbação e inspiração. Loucamente lúcido, ele continua a lançar-nos seu desafio: conseguiremos aceitar o estranho, o obscuro e o caótico em nós mesmos, sem cair no precipício? O próprio Nietzsche tropeçou em sua busca do ideal trágico: embora pregasse o equilíbrio entre Apolo e Dionísio, acabou resvalando para o lado da desmedida – prova disso é o hermetismo e a megalomania de alguns de seus últimos escritos. Mas, apesar das polêmicas sempre vivas, nem os detratores mais enfurecidos negaram a Nietzsche sua primeira e derradeira virtude: ele foi um grande escritor e expressou como poucos a fragilidade heroica do homem em um mundo nem sempre acolhedor e raramente compreensível.


Para saber mais: O Nascimento da Tragédia, Friedrich Nietzsche, Companhia de Bolso Nietzsche, Jean Granier, L&PM Pocket

Fonte:
Revista Vida Simples

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