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domingo, 24 de janeiro de 2010

Ensino de filosofia e a responsabilidade ética como postura moderada

Alcemira Maria Fávero1

Durante muito tempo o homem acreditou que poderia haver algum lugar seguro do qual pudesse partir para realizar suas ações no mundo, onde a vida humana pudesse encontrar a plenitude, em outras palavras, havia a crença no princípio do fundamento. No universo religioso Deus representou, e representa ainda, para muitas culturas o fundamento seguro para o qual tudo deve convergir. Em Deus estão os pontos de partida e de chegada do ser humano. O fundamento, na filosofia clássica, fez-se presente na compreensão metafísica de mundo, na qual conhecer significava buscar a essência em oposição à aparência e, na metafísica2 moderna, entre os muitos sentidos atribuídos a esse complexo conceito está a idéia do império da razão suficiente3.

Entretanto, não existe mais um lugar seguro para o homem apoiar o seu agir e viver tranqüilo, certo de que sua ação foi, antes tudo, uma ação ética. A ética, na educação, precisa ser pensada como experiência do saber viver junto. A educação deve contribuir para que os estudantes aprendam, pela sensibilidade ética e pela vivência de grupo, a perceber os aspectos conflitivos e injustos da realidade que os cerca e, com base numa experiência dialógica sobre os princípios de valor, possam, eles próprios, analisar, criticar e julgar as normas vigentes na tentativa de construir formas mais justas de vida para si mesmos e para os outros. O espaço escolar, nesse sentido, pode favorecer para que os estudantes orientem seu comportamento de forma coerente com os princípios que aprenderam a respeitar por vivenciarem um processo de reflexão e por entenderem a importância de serem seguidas normas socialmente construídas.

O objetivo do presente texto é analisar o problema da responsabilidade ética num tempo pós-metafísico com base em Habermas. Para tanto, iniciamos apresentando algumas características gerais do pensamento metafísico moderno e do pensamento pós-metafísico segundo uma leitura de Habermas. Em seguida, tendo como referência a pergunta “existem respostas pós-metafísicas para a questão da vida correta?”, investigaremos o texto de Habermas “Moderação justificada” (2004, p. 3 - 22), o qual servirá de suporte para podermos pensar sobre questões de sensibilidade e responsabilidade moral.

I. O pensamento metafísico e pós-metafísico 

A metafísica moderna pode ser entendida como o desejo da auto-realização do espírito humano, a união entre razão e liberdade, a crença na capacidade racional do homem para desvendar os segredos da natureza e, por meio dela, promover a emancipação do homem rumo à felicidade. Também se denomina “filosofia da subjetividade” ou “da consciência/autoconsciência”, ou seja, o sujeito cognoscente tem plena consciência das representações que tem dos objetos e das condições de possibilidade do conhecimento a priori dos objetos.

A crença iluminista pautou-se pela convicção de que o aprimoramento da razão poderia transformar a humanidade numa sociedade culta, eticamente correta, justa e igualitária. Contudo, esse ideal de cidadão livre e emancipado fracassou, porque a razão não libertou o homem; pelo contrário, condenou-o à ordem burguesa, às leis do mercado, e deixou-se instrumentalizar4.

Não existe mais lugar seguro, tampouco verdade absoluta. Os conhecimentos são provisórios e os valores morais/éticos são expressões da cultura localizadas no tempo. A pergunta que se coloca é: o que a humanidade pode fazer? E, nessa mesma direção, o que cabe à filosofia? O século XXI coloca nas mãos dos homens toda a responsabilidade pelas suas ações no mundo.

II – Moderação justificada 

Em seu texto “Moderação justificada. Existem respostas pós-metafísicas para a questão sobre a ‘vida correta’?”, do livro O futuro da natureza humana, Habermas procura trazer para a discussão justamente o problema da responsabilidade do ser humano perante o seu poder de intervenção na vida e o desafio da moderna compreensão de liberdade. Discute sobre o tratamento que se deve dar à pesquisa e à técnica genética; reflete a respeito do “poder ser si mesmo”e sobre a responsabilidade que cada um tem consigo mesmo e com os outros; questiona sobre o poder que um indivíduo tem na relação com o outro numa decisão que é irreversível, ou seja, a heterodeterminação pela modificação genética.

Habermas apresenta o texto em três momentos: no primeiro, procura refletir sobre o limite da filosofia ao tratar de questões que dizem respeito à “vida correta” após a metafísica; no segundo, traz para a discussão as idéias de Kierkegaard sobre ética, e, por último, fazendo relação com as idéias de Kierkegaard e com o papel da filosofia segundo uma visão pós-religiosa e pós-metafísica, analisa o problema da intervenção no genoma humano e as possíveis conseqüências que essa intervenção possa causar na autocomprensão ética das pessoas que sofreram modificações genéticas.

2.1 A vida correta e o limite da filosofia prática 

Se estamos conscientes de que respostas metafísicas ou religiosas não fazem mais eco nas sociedades plurais e complexas, somos obrigados a começar a pensar de outra forma: de uma forma que possamos discernir sobre o significado de ser livre, ser correto, praticar justiça, injustiça, direitos, deveres, que não seja pela compreensão e justificativa religiosa, tampouco pela idéia de que existam fundamentos seguros e princípios universais de conteúdos valorativos que possam, por eles mesmos, indicar a maneira correta para se viver bem e ser feliz. Essas questões precisam ser discutidas com a ajuda de razões epistêmicas num mundo intersubjetivamente compartilhado.

Habermas, ao iniciar seu texto com uma questão retirada do romance de Stiller “O que o homem faz com o tempo de sua vida?” ou “ O que devo fazer com o tempo de minha vida?”, parece estar justamente chamando a atenção para o fato de que as respostas às indagações éticas precisam ser diferentes das que estávamos acostumado a oferecer, pois, quando se respondia tendo em vista o religioso, o caminho indicado era o da salvação, ao passo que, quando se buscava a filosofia, as respostas indicavam modelos de vida éticos (modelo digno de imitação para vida).

Habermas entende que a filosofia não se julga mais capaz de dar respostas definitivas às perguntas que dizem respeito à vida correta porque não há como assegurar a totalidade da natureza ou da história. As sociedades, com suas respectivas culturas, foram se formando a partir de modos de vida que lhes são próprios, e o tempo histórico-cultural não é igual para todos. Entre uma cultura e outra existe uma diferença temporal; por isso, pode-se considerar como uma extrema agressividade a “necessidade globalizada” que uma modernização acelerada impõe às nações. Essa imposição vai obrigando as pessoas a perderem sua identidade cultural, suas raízes, o que causa estragos profundos na autocompreensão dos sujeitos. Não há como designar modos de vida exemplares para que todos sigam uma vez que as culturas são muito diferentes. Por isso, a questão “O que devo fazer com o tempo de minha vida?” só pode ser respondida pelo sujeito que a faz, ou seja, cabe a cada um decidir sobre a conduta de sua vida.

Uma sociedade democrática deve primar pela liberdade a fim de que os indivíduos possam, por si mesmos, desenvolver uma autocompreensão ética pessoal da “vida boa”. Caberia-nos aqui perguntar: como é possível a autocompreensão ética? O projeto pessoal de vida precisa ser construído pela pessoa, que é responsável por si mesma, mas isso não significa que tal projeto ocorra independentemente dos contextos partilhados intersubjetivamente, ou seja, que a autocompreensão possa ser entendida como algo que o sujeito constrói no isolamento, na individualidade; ao contrário, a autocompreensão só é possível na relação interpessoal. É preciso que cada pessoa se compreenda, seja responsável consigo mesma, preocupe-se com a sua vida e comece a questionar sobre qual é a melhor coisa a fazer por ela mesma e pelos outros. As pessoas podem, em sua autocompreensão existencial, seguir modelos de vida da sua moral religiosa, de ensinamentos de cunho valorativos da tradição familiar ou da comunidade local. A filosofia, diz Habermas, “não pode mais intervir no debate desses poderes de fé, fundada em seu direito próprio” (2004, p.6). O que a filosofia pode fazer é analisar as propriedades formais dos processos de autocompreensão sem assumir uma posição em relação aos conteúdos. Nas palavras do autor podemos conferir:
 
Desse modo, ela desfaz a conexão, que é a única a garantir aos julgamentos morais a motivação para agir corretamente. As condições morais só condicionam efetivamente à vontade quando se encontram inseridas numa autocompreensão ética, que coloca a preocupação com o próprio bem-estar a serviço do interesse pela justiça (HABERMAS, 2004, p. 7).

As pessoas podem até argumentar muito bem sobre o que é certo, errado, justo, injusto; estar esclarecidas e convencidas da importância da moral religiosa para uma vida eticamente correta; as éticas deontológicas poderiam fundamentar de maneira convincente as normas e os julgamentos morais, mas isso tudo não garante a prática de tais julgamentos. O que, de fato, poderia garantir que as pessoas pratiquem a justiça, ajam corretamente, sejam honestas etc.? Não se pode, a partir do texto, inferir que Habermas pense que haja garantia, mas, citando Kierkegaard e argumentando com base na sua proposta filosófica, parece claro que Habermas indica possibilidades para o agir correto por meio de elementos que permitam justificativas racionais. Também se pode constatar que o autor assume uma consciência de mundo desacralizada, por isso pós-religiosa. Defende, ainda, uma postura cautelosa perante as questões que tratam da vida humana e da ação do ser humano no mundo.

Com base nessa reflexão podemos entender que não se trata de desconsiderar os saberes espontâneos ou religiosos das pessoas; ao contrário, é necessário considerar os saberes próprios do senso comum ou da vida prática das pessoas, porque esses saberes são orientadores da vida. A consciência religiosa das pessoas representa algo muito forte no sentido de motivação para a ação e, por isso, é preciso ter cautela também nessa situação. Um conhecimento novo que ignora o saber cotidiano dificulta nossa autocompreensão “enquanto seres capazes de ação e linguagem”.

2.2 Ser si mesmo e a autocompreensão ética 

Para compreender a reflexão de Habermas sobre o autocompreensão ética e a responsabilidade num contexto pós-metafísico e pós-religioso, é preciso entender por que ele traz as idéias de Kierkegaard sobre o tema da ética. Habermas considera que Kierkegaard foi o primeiro a responder à questão ética com um conceito pós-metafísico do “poder de ser si mesmo”.

Tem “poder de ser si mesmo” o indivíduo que é consciente de sua existência. Como isso acontece? O indivíduo apropria-se de seu passado histórico “efetivamente encontrado e concretamente rememorado” e, examinando a própria vida, é capaz de arrepender-se de seus erros e voltar a agir na sociedade sem o sentimento de vergonha; assim, passa a ver em si a pessoa que ele gostaria que os outros conhecessem. A avaliação crítica da história de vida permite a cada um constituir-se na pessoa que quer ser e conduzir a sua vida segundo o próprio governo. Concentrando-se em si próprio, o indivíduo vai se libertando da dependência de um ambiente dominador, podendo recuperar sua individualidade e sua liberdade. Nas palavras de Habermas:
 
Na dimensão social, tal pessoa é capaz de assumir a responsabilidade pelos próprios atos e contrair compromissos com seus semelhantes. Na dimensão temporal, a preocupação consigo mesmo cria uma consciência da historicidade de uma existência que se realiza nos horizontes do futuro e do passado, simultaneamente entrecortados (2004, p. 10).
 
Habermas considera essa compreensão ética de Kierkegaard pós-metafísica, porém não pós-religiosa, porque essa forma de existência ética está nas mãos do ser humano; é um esforço próprio de cada sujeito; não há tutela, mas um sentimento (motivação) de respeito para com Deus. Para Kierkegaard, segundo Habermas, o espírito humano só pode alcançar a compreensão correta de sua existência por meio da consciência do pecado. O ser humano tem um compromisso para com Deus, ao qual ele tudo deve; obstinado para ser si mesmo, o homem reconhece-se finito e dependente em relação a um Outro (Deus).

O problema da motivação parece fundamental para se entender como é possível o agir correto. Nenhuma norma moral tem o poder de fazer alguém ser eticamente correto; fundamento algum pode convencer alguém do porquê de ser efetivamente moral. Portanto, somente algo que possa mexer com a vontade, o desejo, a motivação do sujeito para ser ético é que vai favorecer uma autocompreensão ética.

Para Habermas, se a compreensão for correta, a relação da transcendência de ser si mesmo, ou de um poder transcendental, não está em Deus, do qual o homem tudo depende, mas no logos da linguagem. As pessoas encontram-se inseridas histórica e socialmente num mundo da vida estruturado pela comunicação, e é pela linguagem que o entendimento entre os sujeitos torna-se possível. As pessoas buscam entendimento de si mesmas e sobre o mundo numa relação compartilhada intersubjetivamente. “Nenhum participante individual pode controlar a estrutura ou mesmo o desenrolar dos processos de compreensão e de autocompreensão” (HABERMAS, 2004, p. 16). Os homens entendem-se uns com os outros porque são sujeitos capacitados para a linguagem e para a ação. A ação comunicativa efetiva-se e tem força porque há nela pretensões e justificativas que podem ser aceitas pelos envolvidos. É nesse sentido que se pode dizer que o processo de autocompreensão ética só pode ser adquirido num esforço comum. “A partir dessa perspectiva, aquilo que nosso ser si mesmo torna possível surge antes como um poder transubjetivo do que como um poder absoluto” (HABERMAS, 2004, p.16). Em outras palavras, merecemos respeito porque convivemos uns com os outros e devemos lealdade à comunidade ou tradição a que pertencemos, não porque somos racionais, temos um fim em si mesmo ou porque somos filhos de Deus.


2.3 Moderação pós-metafísica e ética das espécies 

Os modos do poder de ser si mesmo revelam forças normativas orientadoras da vida, pois, quando dizemos que é preciso examinar a vida, avaliar, reconhecer, projetar, justificar, compartilhar e se responsabilizar, estamos indicando procedimentos. Esse direcionamento que visa a projetos de vidas individuais e a formas de vida particulares acaba, de certa forma, dando conta daquilo que se chama “pluralismo”.

A autocompreensão ética não está presa a fundamentos porque é algo construído no tempo e no espaço de cada pessoa. Não é lei, nem representa um lugar seguro; tampouco indica certezas, é falível e vulnerável. Diz-se, então, que é uma ética pós-metafísica reveladora de racionalidades que permitem antecipar uma vida fracassada.

A moderação pós-metafísica vê-se limitada ao discutir questões que tratam da ética da espécie e, “tão logo a autocompreensão ética de sujeitos capacitados para linguagem e para a ação entra totalmente em jogo, a filosofia não pode mais se furtar a tomar posição a respeito de questões de conteúdo” (HABERMAS, 2004, p.17). Habermas chama a atenção para o fato de que as conquistas das ciências afetam a autocompreensão das pessoas como seres que agem de forma responsável. As novas tecnologias e pesquisas científicas obrigam a sociedade a aceitar um discurso público do como se deve compreender o correto em relação à vida cultural, em outras palavras, a ciência decide o que é culturalmente uma vida boa.

Os avanços da biotecnologia, na sua empreitada de intervenção no genoma humano, podem representar, caso não haja moderação, uma ameaça à identidade da espécie humana, uma vez que a pessoa modificada geneticamente está heterodeterminada5. A intervenção na formação da identidade de alguém é unilateral e irreversível, o que, para Habermas, representa algo muito sério. Como alguém pode ser co-autor da vida alheia? Qual será a reação da futura pessoa ao se dar conta de que a sua biografia não lhe pertence, ou melhor, de que não pode se considerar como autora única de sua própria história?

No posfácio da obra O futuro da natureza humana, Habermas, tentando responder a objeções, acaba complementando o seu primeiro texto “Moderação justificada: existem respostas pós-metafísicas para questão sobre a vida correta?” com questões muito interessantes e, de certa forma, polêmicas sobre a aceitação de uma prática eugênica6. Pergunta: “(...) quais os efeitos do direito dos pais de tomar uma decisão eugênica sobre os filhos geneticamente modificados? Será que estas conseqüências eventualmente não afetam o bem-estar objetivamente protegido da futura criança” (2004,p. 106). “Será que os pais que só querem o melhor para seus filhos têm, realmente, condições de prever as circunstâncias – e o efeito conjunto delas – em que, por exemplo, uma memória brilhante ou uma grande inteligência (...) serão benéficas?” (HABERMAS, 2004, p. 116). Essas vantagens que a intervenção genética pode oferecer serão mesmo vantagens? No entendimento de Habermas, ter uma boa memória pode ser uma bênção, porém, dependendo da situação, não se pode esquecer que pode ser uma maldição. Mentes brilhantes, superdotadas, podem vir a ser, numa sociedade que supervaloriza a concorrência, mentes perversas. Como fica a idéia de igualdade de condições, de respeito e solidariedade entre as pessoas se alguns poderão estar “muito” à frente de outros? Essas pessoas desenvolverão em si o sentimento de obrigação e de responsabilidade pelos seus atos? No entender de Habermas:

 
Os sujeitos que julgam e agem moralmente supõem que entre si haja uma capacidade de imputação; eles atribuem a si mesmos e aos outros a capacidade de elevarem uma vida autônoma e esperam uns dos outros igual solidariedade e respeito (HABERMAS, 2004, p. 110).

A natureza orgânica, que no início da vida é resultado de contingência, passa a ser material de manipulação com intenção objetiva. Os cientistas, os geneticistas e os pais conseguirão prever objetivamente a relação que esse organismo modificado terá com o meio ambiente durante toda a sua história de vida? As pesquisas genéticas já mostraram que as relações fenotípicas são resultado da interação do genoma com o meio; também se sabe que a fenocópia7 já representa uma alteração no genoma, ou seja, o próprio organismo vai produzindo constantemente sua adaptação.

A ética, em nosso século, sem dúvida, passa por um momento sui generis de toda sua história, porque precisa ser repensada à luz deste novo tempo, que não é o tempo de todos os povos. Algo muito diferente está sendo trazido para a discussão pública porque, querendo ou não, o planeta inteiro está e continuará sendo atingido. Até então, a constituição genética dos recém-nascidos escapava de toda programação e da manipulação intencional feita por terceiros. O que se coloca hoje é essa possibilidade de terceiros interferirem no processo contingente de fecundação e, com isso, de modificarem a natureza da espécie humana. Entre o que se pretende manipular está o elemento da contingência humana – contingência no sentido de que algo poderia ser, mas também poderia não ser -, e o que se torna indisponível com a manipulação genética é justamente a contingência.

Uma pessoa determinada geneticamente não terá a seu favor o elemento contingente porque sofreu uma influência específica que terá conseqüências no curso de sua vida. Habermas compara essa situação de intervenção que inclui a capacidade cognitiva aos treinamentos forçados precocemente, entendendo que ambos são irreversíveis. Não ter acesso ao elemento da contingência significa não poder contar com o poder de ser si mesmo, uma vez que a manipulação genética poderá interferir nos fundamentos somáticos da autocompreensão espontânea e da liberdade ética da pessoa. A pessoa modificada geneticamente talvez não se responsabilize pelas conseqüências indesejáveis causadas pela situação à qual foi exposta (ser produto genético) e queira pedir satisfação aos seus pais pelo fato de não poder ter nas mãos sua própria história de vida. “Certamente, a pessoa em crescimento”, diz Habermas, “pode submeter sua história pessoal a uma avaliação crítica e a uma revisão retrospectiva. Nossa biografia compõe-se de uma matéria da qual podemos nos ‘apropriar’ e pela qual podemos, no sentido de Kierkegaard, nos responsabilizar” (2004, p.19).

III - Responsabilidade como postura moderada no pensamento pós-metafísico 

No presente texto procurou-se apenas realizar um exercício reflexivo na tentativa de buscar discernimentos, de provocar a tematização sobre a decodificação do genoma e de “exigir” da comunidade científica um certo “freio” no seu entusiasmo pela ficção científica. “Tenho a impressão de que ainda não refletimos suficientemente a fundo sobre essa questão. Sobretudo no que se refere à relação entre a indisponibilidade de um início contingente da história de vida e a liberdade para dar uma análise mais profunda” (HABERMAS, 2004, p.103).

É necessário, nesse sentido, buscar uma melhor compreensão desse “tempo” para podermos agir de maneira mais consciente e responsável em relação às conquistas científicas. Não se trata, como pensa Habermas, de criticar os avanços do conhecimento científico, mas de querer saber se, efetivamente, essas conquistas afetam a nossa autocompreesão como seres responsáveis.

Se o que resta é a responsabilidade, então é preciso garantir a liberdade e, ao mesmo tempo, problematizar a compreensão que temos dela. Liberdade, direito, poder e responsabilidade precisam estar sempre em debate, pois, quanto maior for conhecimento, maior será responsabilidade. Por isso, Habermas, ao tratar das novas tecnologias, afirma: “Os filósofos não tem mais nenhum bom motivo para abandonar esse objeto de discussão dos biólogos e dos engenheiros (...)” (2004, p. 22).

Quando dizemos que o que resta é a responsabilidade, estamos assumindo uma visão pós-metafísica e pós-religiosa do mundo. Pós-religiosa, porque não vemos a possibilidade de recorrer à fé religiosa ou às leis divinas para exigir das pessoas, poderosas ou não, que não façam bobagens, que sejam solidárias, que cuidem do planeta e que protejam a vida. Pós-metafísica, por estarmos cientes de que ser portador de uma razão esclarecida da qual podemos fazer uso não é suficiente para dizer que, necessariamente, a humanidade caminhará para a felicidade. A responsabilidade requer justificação racional, sensibilidade estética, conhecimento amplo, comunicação e amor – amor que representa o cuidado com a vida e que pode ser entendido como o sentimento de solidariedade, esta como garantia de sobrevivência das espécies. Pessoas não são coisas, objetos de pesquisa disponível à manipulação de terceiros.

A humanidade tem o dever de cuidar das vidas que ainda habitam este planeta. Seria muito interessante colocar a tecnologia a serviço da qualidade de vida, mas não com a preocupação de aperfeiçoar a vida de quem ainda não nasceu, e, sim, daqueles organismos que insistem em viver apesar de todas as agressões. Os genomas a cada instante se modificam para se adaptar e vencer as doenças, a miséria, a violência. Os cientistas querem evitar doenças no futuro de uma pessoa manipulando sua herança genética, contudo parecem esquecer que algumas doenças, ou a maioria delas, provêm da falta de cuidado com a vida. Se o homem aprendesse a cuidar da vida do planeta, muitas doenças desapareceriam e outras nem existiriam; talvez, ainda, a sociedade nem precisasse de células-tronco para criação de órgãos, porque cada vez menos nasceriam pessoas com os órgãos comprometidos, e a vida seria de qualidade.

Essas palavras soam como idéias românticas numa sociedade que se orienta por uma racionalidade instrumental em prol do valor econômico. Por isso, há a necessidade de serem colocadas em debate público as questões que interferem profundamente na vida humana e de exigir responsabilidade daqueles que detêm o poder. Além disso, no mundo da vida é preciso investir no poder ser si mesmo. Cada participante deve poder se apropriar da sua história de vida e examiná-la constantemente de um modo reflexivo e, na comunidade, discutir essas questões ou conteúdos novos que modificam a autocompreensão dos homens como seres humanos. Num contexto plural com inúmeras diferenças, é preciso poder esperar dos estudiosos, dos intelectuais, dos cientistas e dos governos uma postura de abertura, de flexibilidade, mas, também, de moderação e de responsabilidade.


Referências bibliográficas 

FAVERO, Altair A. Os paradigmas filosóficos e o problema do método, in FAVERO, Altair; TROMBETTA, Gerson Luís; RAUBER, Jaime José (Org.). Filosofia e racionalidade. Passo Fundo: UPF, 2002.
HABERMAS. Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
____.Moderação justificada. Existem respostas pós-metafísicas para a questão da vida correta? In: HABERMAS. Jürgen. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004a.
____. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004b.
____. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luiz Sérgio Repa, Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HORKHEIMER, Max, Theodor W. Adorno. Dialética do esclarecimento.Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
LOPARIC. Zeljko. Sobre a responsabilidade. Porto Alegre: Edipucrs, 2003.

Notas de fim
 
1 Assessora do Núcleo de Educação para o Pensar (NUEP), mestre em Filosofia da Educação pela UFRGS.
2 “(...) a metafísica, conhecimento especulativo da razão completamente à parte e que se eleva inteiramente acima das lições da experiência, mediante simples conceitos (não como a matemática, aplicando os conceitos à intuição), devendo, portanto, a razão ser discípula de si própria (...)” (KANT, 1994, p.16).
De maneira geral, metafísica significa o “estudo do problema do conhecimento, ou das condições e limites do conhecimento. Cada ciência estuda um fragmento do real, nenhuma estuda o próprio estudo: a metafísica tem por objeto a própria ciência enquanto conhece” (LALANDE, 1993, p.671).
3 Zeljko Loparic utiliza essa expressão em seu livro Sobre a responsabilidade, dizendo que é a ratio sufficiens, o fundamento próprio e unicamente suficiente; só existe aquilo que pode ser computável, calculado. “Tudo é posto sob o controle da única grande potencia existente: o princípio de explicitação da razão suficiente” (2003, p. 12).
4 Em Dialética do esclarecimento Adorno e Horkheimer sobre isso afirmam: “O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba. Ela é usada como instrumento universal servindo para a fabricação de todos os demais instrumentos” (1985, p. 42). E ainda esclarecem: “A essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie” (1985, p. 43).
5 A heterodeterminação não se refere à situação de aceitação ou discriminação que a futura pessoa poderá sofrer em seu grupo social porque seu patrimônio genético não foi obra da natureza e, sim, dos pais e dos cientistas. Não se trata também da suposição de que alguém, por ter sofrido intervenção genética para o aperfeiçoamento, venha a se sentir subjetivamente determinado por outra pessoa. Heterodeterminação refere-se a uma autodepreciação induzida que a futura pessoa sofrerá antes do nascimento a um dano de sua autocompreensão moral (Habermas, 2004, p. 110 – 112).
6 Habermas denomina “eugenia liberal” ao direito dos pais de interferirem na formação genética do embrião.
7 Por f enocópia entende-se a substituição de uma formação exógena (em virtude da ação do meio) por uma formação endógena (em razão da atividade do organismo).


Fonte:Revista Pragmateia Filosófica - Núcleo de Educação para o Pensar - NUEP - Passo Fundo - Ano 1 - Nº 01 - Out. de 2007
Imagens: Google

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Filosofia: necessidade de transgressão do pensar bem para o agir bem1

Jaime José Rauber2

Introdução

A filosofia é uma forma de conhecimento que, por natureza, identifica-se com a transgressão. O conceito de transgressão pode assumir diversas conotações, tanto positivas quanto negativas. No âmbito social, a transgressão pode assumir uma conotação claramente negativa quando há o rompimento com a ordem estabelecida e a não-observância das regras socialmente postas e objetivamente reconhecidas. No âmbito do conhecimento, a transgressão pode significar algo absolutamente positivo quando não se aceitam simplesmente as informações “jogadas” como se fossem verdades, mas, de forma crítica e metódica, buscam-se as últimas conseqüências dessas informações para verificar a sua veracidade. Desde as origens, a filosofia sempre foi compreendida como uma forma de conhecimento que busca ir além das verdades reveladas pelas explicações mitológicas. A filosofia pré-socrática caracteriza-se pela busca de explicações racionais para suas teses, superando as verdades reveladas pelos mitos, poemas homéricos e profecias.

Compreendendo a transgressão neste último sentido, pretende-se enfocar neste estudo a necessidade da transgressão no nível da prática pedagógica, o que, talvez, deveria ser precedido por uma reflexão sobre os objetivos e finalidades da educação formal, ou seja, da educação institucionalizada nos seus diversos níveis. Não se quer entrar aqui no mérito da discussão sobre a existência ou não de propostas pedagógicas em todas as instituições nem sobre como foram elaboradas. Observa-se, porém, que nas propostas pedagógicas minimamente elaboradas encontra-se uma certa unanimidade em torno da necessidade de se fazer com que os alunos desenvolvam um pensamento autônomo, preciso e bem desenvolvido.

Nas escolas, de uma maneira geral, há uma preocupação fortemente orientada para o desenvolvimento do pensar bem dos alunos e que estes consigam desenvolver um pensamento próprio. Essa preocupação, por vezes, é tão incisiva que se acaba deixando de lado uma reflexão mais específica sobre o que se entende por pensar bem. Há instituições que, em nome da qualidade, da inovação e da mudança no enfoque da prática educativa, entendem que o pensar bem por si só se justifica, ou seja, partem do pressuposto de que proporcionar o desenvolvimento do pensar bem aos alunos é o fim último da educação. Nessa perspectiva, a qualidade da educação é medida pela capacidade do desenvolvimento do raciocínio lógico, hábil e preciso dos alunos.

Contudo, cabe observar que a prática educativa voltada para o desenvolvimento do pensar bem dos alunos, desprovida de qualquer reflexão acerca do que se entende por esse pensar bem, pode ser algo extremamente perigoso. Medir a qualidade do ensino e o nível da aprendizagem puramente por meio de testes que avaliam a capacidade do raciocínio lógico e preciso dos alunos sobre conteúdos específicos em determinados programas de aprendizagem é algo altamente questionável. A qualidade do ensino de determinada instituição não pode ser mensurada apenas pelo número de candidatos (ex-alunos) aprovados em vestibulares e pelos escores obtidos nesses processos seletivos, mas pela capacidade de transgressão do pensar bem para o agir bem.

Nesse sentido, o presente estudo vai abordar, inicialmente, o conceito de pensar bem em suas diferentes dimensões, para, posteriormente, mostrar a necessidade de transgressão do pensar bem para o agir bem. Se se entende que a educação formal deve contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e solidária, é preciso compreender a razão pela qual a educação não deve se limitar ao desenvolvimento do pensar bem, mas se deve dar um salto a mais, transgredir para o agir bem.3

1. O que significa pensar bem

Se há uma preocupação geral das escolas em torno do desenvolvimento do pensar bem dos alunos, cabe, antes de mais nada, investigar o que isso significa. O pensar bem pode ser compreendido sob dois aspectos bem distintos, ou seja, podemos compreendê-lo de um ponto de vista puramente lógico/técnico e de um ponto de vista lógico e ético.

O pensar bem, na primeira perspectiva, consiste num pensar com logicidade, com criticidade, com coerência argumentativa. É o pensar do indivíduo que tem as habilidades de pensamento bem desenvolvidas, que tem um pensar cuidadoso, que tem abertura e busca novos conhecimentos. Esse pensar, extremamente importante para as chamadas “comunidades de investigação”, é o pensar do aluno que dialoga bem, que argumenta bem, que apresenta e exige boas razões. É o pensar do aluno que sabe classificar, comparar, levantar hipóteses, apresentar bons juízos, estabelecer relações com as falas dos demais. É o pensar do sujeito que desenvolve o espírito crítico, faz autocorreções, procura aprofundar e compreender o problema em questão e tira conclusões logicamente válidas com base nas idéias e argumentos apresentados. O pensar bem logicamente é um pensar tecnicamente bom, um pensar que traz qualidades e habilidades que todo pai sonharia para seus filhos, um pensar excelente para se prestar concursos e conseguir vagas disputadíssimas em vestibulares ou em testes seletivos voltados para o preenchimento de vagas em ofertas de trabalho.

Se compreendermos o pensar bem apenas dentro dessa primeira perspectiva, como sinônimo de um pensar altamente lógico, preciso e rigoroso, e não nos preocuparmos com o pensar bem num sentido mais amplo, a educação institucionalizada não estará dando conta de um dos seus principais objetivos, que é a formação dos estudantes para a prática da cidadania e para a promoção da justiça social. O pensar bem logicamente é um pensar atípico, não alcançável por qualquer sujeito, pois exige dedicação, aprofundamento e tem o pensar como atividade exclusiva, que não se dá em qualquer momento.4 Porém, o fato de se ter um pensamento hábil, crítico e cuidadoso não garante que o pensamento seja correto e bom do ponto de vista ético. O pensar bem logicamente ainda é um pensar falho, insuficiente e irracional se comparado ao conceito mais amplo de pensar bem.

O pensar bem lógica e eticamente, que é a segunda perspectiva mencionada acima, contempla todos os aspectos mencionados na primeira definição de pensar bem, mas vai além disso, porque também contempla a idéia do pensar bem do ponto de vista ético. O pensar bem eticamente não pode ser desvencilhado do pensar bem logicamente, pois cair-se-ia num senso comum. Como o fim da educação jamais deve ser a aprendizagem dos conhecimentos do senso comum, pode-se afirmar que o pensar bem eticamente pressupõe o pensar bem logicamente. O sujeito não terá boas razões para sustentar determinada ação sob o ponto de vista ético se não desenvolver um pensar cuidadoso, crítico e reflexivo, próprio de um pensar bem logicamente. Se não desenvolvermos um pensamento habilidoso e com maior precisão, dificilmente saberemos argumentar bem, levantar boas hipóteses e apresentar boas razões para sustentar determinada idéia ou pensamento. Não possuindo essas características, nosso pensamento, por mais que seja um pensamento eticamente correto, jamais poderá ser caracterizado como um pensar bem. Tal forma de pensar, desprovida das características da lógica, será um pensar do senso comum e, portanto, jamais poderá ser caracterizado como um pensar bem.

De forma inversa, o pensar bem logicamente desvinculado do pensar bem eticamente pode implicar ações estratégicas, ações instrumentais, ações não voltadas para o exercício do bem. Há juízes, advogados, médicos, administradores ou, mesmo, professores que exercem muito bem sua função do ponto de vista técnico; possuem grandes experiências e amplos conhecimentos teóricos e técnicos em relação ao que fazem, o que os têm destacado na profissão que exercem. Contudo, não é raro encontrarmos profissionais desse gabarito que utilizam seus conhecimentos de forma estratégica para benefícios próprios, sem se preocupar com as implicações sociais ou éticas de suas ações. Não podemos deixar de louvar o conhecimento técnico desses profissionais, que certamente exigiu muito esforço e dedicação, mas, desvinculado de um pensar bem eticamente, representa grandes perigos para a sociedade.

2. O pensar bem e a transgressão para o agir bem

O pensar bem eticamente, que pressupõe o pensar bem logicamente, deve trazer associado outro elemento, que é o agir bem. O pensar bem eticamente requer, necessariamente, o agir virtuoso. O pensar bem com logicidade e coerência faz com que o sujeito seja capaz de escolher a melhor opção, do ponto de vista ético, entre várias alternativas possíveis e, além disso, requer coerência entre o pensar e o agir. Pensar bem eticamente e não orientar seu agir de acordo com esse pensamento implica uma explícita incoerência entre pensar e agir. A desvinculação entre pensar bem e agir bem pode ser algo extremamente perigoso, pois, nesse caso, não haverá relação de proximidade entre a teoria e a prática.

De uma maneira geral, pode-se falar de dois tipos de incoerência: por um lado, há a incoerência no pensar, que constitui o pensar falacioso, incorreto, falso, insustentável; por outro, pode-se falar da incoerência na relação entre o pensamento e a ação. Nessa última perspectiva, é racional que a ação do homem seja guiada pela sua forma de pensar, pelo seu raciocínio, pela sua concepção de mundo. Dado que o homem é o único ser dotado de racionalidade, é racional que ele guie suas ações pela sua forma de pensar. Observando as relações cotidianas, podemos ver que, conscientemente, o homem não realiza ações que seu intelecto não concebe. A modo de ilustração, pode-se mencionar o fato de que o criminoso não comete crimes sem que seu intelecto admita ou conceba essa ação. Um assassino só é capaz de matar alguém de forma consciente e voluntária pelo fato de que essa ação faz parte da sua concepção de mundo, ou seja, da sua forma de pensar.

Partindo dessa tese de que o homem não realiza ações sem que seu intelecto as conceba (aceita), o indicativo imediato que se pode tirar, então, é a necessidade de as instituições educacionais se ocuparem com a tarefa de trabalhar o pensamento dos alunos para que aprendam a pensar bem eticamente. O pensar bem e o agir bem devem ser compreendidos como indissociáveis. Nesse sentido, se essa compreensão for correta, basta trabalhar o pensamento dos alunos e instigá-los a serem coerentes na relação entre pensar e agir para a construção de uma sociedade melhor.

Pensar bem logicamente, mas não vinculá-lo ao pensar e agir bem eticamente, é algo irracional. Todavia, em que sentido se pode afirmar que o pensar bem logicamente, desprovido de uma referência à ética, é um pensar irracional? Não deveríamos chamar de esperteza à categoria de ações orientadas pelo pensar bem logicamente, mas desprovidas do pensar bem eticamente?

Para Sócrates, a essência do homem está na alma. É a alma que distingue o homem dos demais seres. Se a essência está na alma, o homem deve cuidar mais da alma do que do corpo. Nesse sentido, de acordo com o pensamento do filósofo, a tarefa do educador é ensinar os homens a cuidar da própria alma. Os verdadeiros valores não estão ligados às coisas exteriores (riqueza, fama, poder, beleza, saúde física etc.), mas ligados à alma, e, segundo Sócrates, resumem-se no conhecimento.

Nas palavras de Sócrates, “ninguém peca voluntariamente: quem faz o mal, fá-lo por ignorância do bem”. O filósofo dá tamanha importância à razão e à capacidade de conhecer do homem que chega a afirmar que é impossível conhecer o bem e não fazê-lo. Com base nisso, é possível compreender o sentido da frase “Conhece-te a ti mesmo”, pois, segundo o autor, quem efetivamente conhecer a essência do homem jamais fará o mal. Contudo, essa idéia merece uma observação. Não parece ser “impossível conhecer o bem e fazer o mal”, mas “quem conhece o bem, jamais deveria fazer o mal”. Quem teve acesso à ciência e ao conhecimento, ou seja, quem aprendeu a pensar bem e a contemplar a essência do homem, jamais deveria fazer o mal.

É claro que, dentro do pensamento de Sócrates, a idéia de conhecimento está intrinsecamente ligada à prática do bem, ou seja, só é sábio aquele que, além de conhecer, pratica o bem. Contudo, fazendo um paralelo com a idéia de conhecimento que se possui hoje, é preciso reconsiderar a idéia do nosso velho Sócrates, pois o conhecimento ou o pensar bem são condições necessárias para determinar o que é bom, correto e justo, mas não condição suficiente para fazer o bem. Conforme mostrado acima, é perfeitamente viável alguém ter um excelente conhecimento técnico e lógico sobre as coisas, mas não ter uma prática eticamente adequada. Não basta ter conhecimento; é necessário ter disposição para agir bem. O pensar bem no sentido técnico não se identifica, necessariamente, com o pensar bem no sentido ético. O pensar bem por excelência congrega, simultaneamente, os três aspectos mencionados acima: o pensar bem logicamente, o pensar bem eticamente e a prática do bem, ou seja, ações que correspondem plenamente com as duas dimensões do pensar bem.

3. O pensar bem e os desafios da educação

Com base no que foi apresentado, é possível identificar dois grandes desafios da educação: o primeiro deles consiste em fazer com que os alunos aprendam a pensar bemlógica e eticamente para que saibam determinar o bom, o justo, o correto, o objetivamente válido; o segundo consiste em formar sujeitos que ajam coerentemente em relação ao que esse pensar bem determina.

O pensar bem por excelência requer autonomia no pensar e no agir. O aluno deve, por meio do trabalho desenvolvido na educação para o pensar, elaborar um excelente raciocínio, de forma que suas conclusões efetivamente se identifiquem com o pensar bem. Tais conclusões devem ser fruto de um processo de busca realizado pelos sujeitos da comunidade de investigação. A determinação do que é bom não deve ser feita de forma heterônoma, mas deve ser fruto de um processo de busca realizado pelo próprio aluno, auxiliado pelo trabalho de mediação do professor.

Se o aluno adquire autonomia no pensar e aprende a discernir o que caracteriza o pensar bem lógica e eticamente, a conseqüência desse processo é a autonomia no agir. O sujeito que entendeu o significado do pensar bem e desenvolve seu raciocínio por meio dessa orientação certamente também terá autonomia no seu agir; sua ação não será determinada externamente, mas pelo próprio sujeito por meio da prática do pensar bem.

Com a autonomia no pensar e no agir, as leis positivas (heterônomas) vão perdendo seu poder de força. O sujeito autônomo age motivado pelo pensar bem, não por causa das leis ou penas previstas. Numa sociedade onde os indivíduos pensam bem (autonomia no pensar e no agir) as leis positivas vão perdendo seu sentido. Tomás de Aquino afirmava que as leis positivas só existem por causa daqueles que não são capazes de cumprir as leis naturais (leis da razão). Além disso, afirmava que pelas leis positivas e pelo poder de polícia cria-se o hábito de fazer o bem; contudo, por mais que se possa criar o hábito de fazer o bem por meio do uso do poder coercitivo, é uma prática que não educa para o exercício da autonomia e da liberdade. Uma sociedade assim constituída, e que não se preocupa com o desenvolvimento da autonomia, corre o risco de ser eternamente dependente do poder coercitivo para manter uma vivência social pacífica.

Dado que o pensar bem implica o pensar bem logicamente, eticamente e a prática do bem (coerência entre pensamento e ação), cabe questionar como isso pode ser alcançado e que disciplina ou programa de aprendizagem poderá propiciar essa formação. Todas as disciplinas, certamente, têm potencialidades para desenvolver esses três aspectos do pensar bem. Entretanto, o que se tem observado é que o trabalho realizado em grande parte das instituições não surtiu os efeitos esperados em relação aos três aspectos de forma simultânea. Várias instituições escolares até conseguiram desenvolver um pensar bem nos alunos do ponto de vista lógico e técnico, mas mantêm carências em relação aos outros dois aspectos. Outras instituições até manifestaram uma grande preocupação em relação à formação para a ética e cidadania, mas, por falta de um trabalho mais sistemático e de conjunto, que contemple os três aspectos simultaneamente, também não têm alcançado esse objetivo.

Por mais que as diferentes disciplinas tenham potencialidades para desenvolver os três aspectos do pensar bem, em geral há uma preocupação maior centrada no desenvolvimento do pensar bem lógico e técnico. A filosofia como disciplina, porém, por seu método e pela sua natureza reflexiva, investigativa e crítica, tem maiores potencialidades para contribuir com o desenvolvimento do pensar bem nos três aspectos mencionados. Pela busca de um pensar logicamente sustentável, preciso, coerente e objetivamente válido, a filosofia pode dar conta do pensar bem lógica e tecnicamente. Por se preocupar constantemente com a definição do bom, do justo, do ético e se ocupar de forma crítica dos princípios norteadores da ação humana, a filosofia como disciplina tem um incomparável potencial para desenvolver o pensar bem do ponto de vista ético dos alunos, bem como a exigência da coerência entre pensamento e ação, que implica na prática do bem.

Incluir a filosofia como disciplina isolada nas propostas curriculares das escolas, sem um projeto mais orgânico que contemple uma reflexão sobre concepções e princípios norteadores da prática educativa, provavelmente não surtirá os efeitos positivos que a filosofia tem condições de proporcionar. Incluir a filosofia na proposta educacional da escola, desde que bem conduzida, é uma excelente oportunidade para desenvolver o pensar bem dos alunos no sentido amplo do termo, como descrito acima.

Entretanto, implantar a filosofia como alternativa para desenvolver o pensar bem dos alunos, principalmente em relação ao pensamento ético e à coerência do pensar e do agir, traz implícito um conjunto de questionamentos. A partir de que idade as crianças são capazes de aprender a pensar? As crianças são capazes de orientar seu agir pela razão, pelo pensar bem? Devemos perdoar as crianças e adolescentes por não usarem a razão em determinadas ações?

É comum observarem-se tomadas de decisão por parte de pais e professores orientados pelo princípio de que a “ criança não sabia” ou de que “ ela ainda é muito nova”. Contudo, tomadas de decisões dessa natureza estão baseadas implicitamente no princípio de que as crianças são seres irracionais, ou seja, de que são incapazes de pensar em suas ações. Não é tão simples determinar a idade ou o período em que a criança está apta a tomar decisões baseadas num raciocínio bem desenvolvido, mas o fato é que desde a infância as crianças desenvolvem raciocínios que orientam seu agir. É certo que na fase da infância grande parte dos raciocínios podem não ser adequados, mas isso não significa que não possam ser trabalhados e melhorados. As crianças, mesmo no período da infância, já são capazes de orientar seu agir pela razão. Nas palavras de Lipman, “se as crianças são consideradas incapazes de um comportamento moral guiado por princípios, incapazes de terem razões para o que fazem, então deveriam ser tratadas como animais inferiores” (1994, p.208). Ou seja, se não reconhecermos a capacidade de a criança pensar sobre suas ações e orientar o seu agir com base nesse raciocínio, estaremos considerando-a, implicitamente, como ser destituído de racionalidade, ou seja, como ser irracional.

O Programa de Filosofia com Crianças parte do pressuposto de que as crianças são capazes de pensar. É claro que ainda é um pensar que precisa ser lapidado, mas de forma alguma são seres que se equiparam a animais inferiores. Nesse sentido, ao invés de adotarmos atitudes pacifistas baseadas no princípio de que a “a criança não sabia” ou de que “ela ainda é muito nova”, convém desenvolver a capacidade de fazer a criança pensar sobre a ação realizada. Por mais que a capacidade de pensar na fase da infância ainda não esteja bem desenvolvida, é necessário que se procure desenvolvê-la para que a criança comece a compreender desde essa fase o que significa ter uma atitude racional.

Considerações finais

Para que haja a transgressão do pensar bem para o agir bem, não há necessidade de grandes investimentos materiais. A transgressão do pensar bem para o agir bem não requer praticamente mudanças na estrutura física das escolas, mas requer uma mudança na forma como se concebe a educação e seus objetivos. Essa mudança pode ser bastante rápida, mas, se posturas dogmáticas e de comodismo prevalecerem e não houver uma conscientização por parte dos sujeitos envolvidos na prática educativa, pode levar muito mais tempo do que se fosse necessária uma mudança geral na estrutura física das escolas.

O Programa de Filosofia com Crianças é uma iniciativa bastante interessante para que haja uma mudança na forma de se pensar a educação e, conseqüentemente, na educação para a prática do bem. O ensino de filosofia, como educação para o pensar, pretende formar sujeitos que desenvolvam um pensar bem, no sentido mais amplo do termo, e que, conseqüentemente, tenham um agir correspondente. Como já afirmado, não é só pela filosofia que podemos educar para a prática do bem, nem deve ser exclusividade dela. Contudo, o que não pode ser adiado é a preocupação com a formação holística dos alunos, o que deve começar a ser colocado em prática desde a elaboração da proposta pedagógica da escola. E aí vale a dica: a filosofia é um bom caminho para a transgressão do pensar bem para o agir bem.

Referências

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FÁVERO, Altair Alberto; RAUBER, Jaime José; KOHAN, Walter Omar. Um olhar sobre o ensino de Filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.

GOERGEN, Pedro. Educação moral: adestramento ou reflexão comunicativa? Educação e

Sociedade : revista quadrimestral de Ciência da Educação, Campinas, ano 12, n. 76, p. 147-

174, out. 2001.

KOHAN, Walter Omar; WAKSMAN, Vera (Org.). Filosofia para crianças na prática escolar. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. v. 1.

LIPMAN, Matthew; OSCANYAN, Frederick S.; SHARP, Ann Margaret. Filosofia na sala de aula. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.

LIPMAN, Matthew. O pensar na educação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

. A Filosofia vai à escola. São Paulo: Summus, 1990.

PLATÃO. A defesa de Sócrates. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Col. Os Pensadores).

RAUBER, Jaime José. O problema da universalização em ética . Porto Alegre: Edipucrs, 1999.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: atigüidade e Idade Média. São Paulo: Paulinas, 1990. v. I.

Notas de fim

1 As idéias gerais deste texto foram apresentadas no VI Encontro de Professores de Filosofia, realizado na Casa de Cultura, de Marau.

2 Mestre em Filosofia, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – Campus de Toledo.

3 Grande parte do texto que segue foi apresentado por mim no V Simpósio de Sul- Brasileiro sobre o Ensino de Filosofia, realizado entre os dia 11 e 13 de maio de 2005, na Unifra, em Santa Maria, RS.

4 Em contraposição ao pensar atípico, Lipman apresenta o pensar típico, que é aquele pensar do cotidiano, despreocupado, que pode se dar simultaneamente com outras atividades, que não é exclusivo e que está presente em todos os seres humanos. Se compreendermos que a capacidade de pensar do homem se identifica com o pensar atípico, fica fácil compreender a afirmação de Gramsci de que “todo homem é filósofo, pois o pensar é próprio da natureza humana”. Contudo, se compreendermos que à filosofia cabe um modo de pensar mais elevado (atípico), podemos afirmar que nem todos os homens são filósofos, pois nem todos conseguem desenvolver um pensar organizado, aprofundado, coerente, lógico e crítico.

Fonte: http://www.nuep.org.br/revista/n1/filosofia-necessidade.php

Revista Pragmateia Filosófica (On line) Núcleo de Educação para o Pensar - NUEP Passo Fundo - Ano 1 - Nº 01 - Outubro de 2007

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