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terça-feira, 20 de outubro de 2009

O blasfemador da internet


      
Para Andrew Keen, o fim da "ditadura dos especialistas" com a era digital poderá dar lugar à "tirania das massas"
      
Por Eduardo Socha


    
Em meados da década de 1990, Andrew Keen era um feliz empreendedor da internet no Vale do Silício (Califórnia), o éden da nova e então promissora economia. Criou várias empresas, algumas não deram certo. Quando chegou o estouro da bolha das "empresas pontocom" em 2001, Keen estava em vias de se transformar no anjo caído do paraíso digital. Resolveu lançar, em 2007, um livro abertamente apocalíptico contra a internet ( O Culto do Amador, publicado neste ano no Brasil).
            
Polemista habilidoso, ganhou fama rápida na grande imprensa norte-americana como o "anticristo da internet", epíteto que ele mesmo endossa, não sem um discreto sorriso no canto da boca. No livro, o jornalista britânico não economizou sua bem talhada virulência crítica para atacar a chamada web 2.0 - o conjunto de comunidades e serviços on-line que incentivam a participação dos usuários, ou seja, a nebulosa de codinomes (blogs, Facebook, Orkut, YouTube, Twitter, Wikipédia etc.) que aos poucos invade nosso cotidiano.
                
Controverso e provavelmente oportunista, o subtítulo do livro deixa entrever um ranço à primeira vista conservador - Como Blogs, MySpace, YouTube e a Pirataria Digital Estão Destruindo Nossa Economia, Cultura e Valores. Afinal, não é exatamente o que pensam os adeptos do movimento da livre cultura, que hoje fazem circular termos como Creative Commons, software livre e copyleft, e prometem a revolução cultural por meio da democratização radical da informação. Para Keen, no entanto, as novas tecnologias da web 2.0 e o enfraquecimento da noção de propriedade intelectual representam um perigo devastador para instituições que protagonizaram a difusão da cultura no Ocidente.
        
            
Creative Commons/Anne Helmond

O jornalista Andrew Keen

      
            
Cita como exemplo o colapso gradual dos grandes jornais nos EUA, das grandes editoras, das indústrias fonográfica e cinematográfica. Seria cômodo enquadrá-lo na figura do ressentido que resolveu investir no catastrofismo inconsequente e, claro, rentável. Mas o que parece incomodar no livro de Keen é o fato talvez de ele mesmo ser um insider e se declarar de esquerda. Ainda mora no Vale do Silício e está em contato permanente com os gurus da economia livre e da contracultura californiana. "Muitos dos meus amigos são empreendedores ali. Eu não era um jornalista que deu um passeio na região e chegou à conclusão de que as coisas iam mal", confirma à CULT.
      
Keen formou-se em história na London University (Inglaterra) e fez pós-graduação em ciência política na Universidade de Berkeley (Califórnia). De passagem pelo Brasil no mês passado, conversou com a CULT sobre as relações entre tecnologia, ideologia e política, a objetividade da imprensa e da informação, e os efeitos da internet na educação.
        
          
CULT - Você não acha que há um excesso de alarmismo em sua crítica à cultura da internet, principalmente dos blogs e das redes sociais, como Orkut e Facebook? Afinal, se as novas tecnologias acenam para uma revolução cultural, pode ser que estejamos vivendo um período de adaptação, com distorções iniciais, mas que, a longo prazo, podem concretizar uma efetiva liberdade de expressão...
          

Andrew Keen - Muito antes de ter escrito meu livro, estudei a história da Europa Oriental, em particular a Revolução Russa, o que me deixou um tanto cético em relação às revoluções. Sempre desconfio de ideias grandiosas e do otimismo das pessoas que defendem argumentos como o fim da história e a revolução democrática.
          
Dito isso, escrevi o meu livro como uma "subversão da subversão". Até então, tudo o que se falava e escrevia era sobre como a internet iria transformar a humanidade, tornando-nos todos livres, felizes e iguais. Não havia ninguém que questionasse essa ideia. Por isso meu livro foi projetado como uma polêmica e vigorosa reação a esse otimismo.
       
Confesso que o tom talvez seja um pouco exagerado, mas algo polêmico é, por definição, algo exagerado. Se eu tivesse escrito um livro mais equilibrado que considerasse um a um todos os prós e contras, ninguém o teria lido. Logo depois que meu livro saiu, vários outros foram publicados contendo argumentos muito semelhantes. Não que eu tenha sido tão original nas minhas ideias, mas várias publicações que se seguiram repetiam as coisas que eu tinha dito. Por isso acredito que precisávamos de um debate amplo a respeito desse assunto.
             
A grande sacada do meu livro é perceber que o novo modelo econômico, a tal "livre economia", não funciona. Uma vez que você dispensa os mediadores e editores, uma vez que qualquer um pode criar conteúdo, o modelo econômico resultante não é viável. O fato de você conseguir colocar um vídeo seu no YouTube não significa que você vá se tornar um produtor profissional, porque ninguém vai pagar por seu trabalho. A mídia sem o papel do editor não é confiável.
      
         
CULT - Você disse que a discussão sobre a web 2.0 não é mais tecnológica, e sim política e moral. O que o Google está fazendo hoje é semelhante ao que os monopólios industriais faziam no século 19. Qual a relação, nesse caso, entre tecnologia e ideologia?
      

Keen - Tecnologia é ideologia. Não quero aqui entrar num debate sobre a definição acadêmica de ideologia. Quando falo em ideologia, estou pensando num conjunto de ideias, ou de ideais, sobre o mundo. Há um excelente livro chamado From Counterculture to Cyberspace [Da contracultura ao ciberespaço], de Fred Turner, um brilhante professor e historiador da tecnologia. O argumento dele é o de que a internet foi criada a partir da inesperada fusão de duas construções ideológicas, dois movimentos ideológicos: o establishment militar, industrial e educacional que emergiu da Guerra Fria e a contracultura política dos hippies do norte da Califórnia, em especial aquela que surgiu em torno da figura de Stewart Brand. Não é coincidência que ambos os grupos tenham tendências libertárias. Muitos norte-americanos que viveram a Guerra Fria tornaram-se obcecados pela ideia de liberdade como oposição ao modelo soviético, ao passo que a cultura hippie defendia ideias semelhantes de questionamento da autoridade. Não surpreende, dessa forma, que a internet, que emergiu como ideologia do cruzamento dessas duas correntes, seja um movimento sem centro, um movimento de arestas que, por definição, não aceita qualquer tipo de autoridade.
          
Portanto, eu diria que existe uma relação muito íntima entre tecnologia e ideologia e que ela é muito mal compreendida. Muitas pessoas acreditam que acordamos um dia e lá estava a internet, como um inesperado presente de Natal. Para entender a tecnologia, é preciso entender as pessoas que a inventaram.
      
Também não é coincidência o fato de muitos dos principais ideólogos dessa nova cultura serem "cristãos renascidos" [ born again christians]. Acredito que existe uma forte ligação entre a cristandade dos renascidos e a internet. É só mais uma versão da velha mitologia cristã...
        
           
CULT - Talvez por isso você seja o "anticristo da internet"...
       
Keen - Sim, é por isso [risos]. Essa questão da ideologia é muito importante para mim. Ao contrário do que muitas pessoas acham, não sou um conservador. Considero-me politicamente de esquerda, mas não sou
hippie e acredito que a esquerda deva repensar sua maneira de lidar com a autoridade. Simpatizo com algumas das ideias que surgiram nos anos 1960, entretanto, vejo como problemática essa tendência anarquista de contestar toda e qualquer forma de autoridade. É a velha discussão entre Marx e os anarquistas, e estou obviamente do lado de Marx. É necessário um partido, uma estrutura. Não sou nenhum Stalin: acredito que é possível acreditar na autoridade sem ser um Stalin.
         
     

Creative Commons/Anne Helmond

Andrew Keen: "a internet é, em alguns casos,
 mais útil para regimes autoritários
do que para os democráticos"
CULT - Já que você falou de política, quais os impactos mais visíveis da internet nesse campo? Recentemente, tivemos um debate no Brasil sobre a regulação da internet para as eleições do próximo ano. O que pensa a respeito da regulação?
         
Keen - Não conheço a situação brasileira, mas acho que provavelmente seria contrário à propaganda política em blogs, porque ela facilitaria a corrupção. O problema é que a palavra blog hoje é vazia de significado, dada a diversidade de páginas que recebem esse nome. Ficaria muito preocupado com a propaganda política feita nesses blogs anônimos, que, a meu ver, levaria à corrupção e também porque a cada dia se torna mais confusa a distinção entre o que é um editorial e o que é pura propaganda.
            
Há uma esperança de que a internet vai transformar a política, acabar com o império dos velhos monopólios. Não estou convencido de que essa promessa política da internet tenha se cumprido. Essa ideia de que agora, graças à internet, os mocinhos chegariam finalmente ao poder, de que a "sabedoria da multidão" agora poderia se manifestar e de que as pessoas finalmente controlariam seus próprios destinos não se mostrou de maneira alguma verdadeira. Pior que isso, acho que ela seja danosa, porque encoraja uma atitude política fantasista e utopista.
          
Outro exemplo do fracasso dessa promessa política da internet é o que aconteceu no Irã, onde todos falavam de uma "revolução do Twitter", que nunca ocorreu, porque os antigos regimes são muito bons em manipular a internet, muitas vezes até melhores que os reformistas. Os chineses, por exemplo, são mestres em investigar a rede de blogs e comunidades virtuais em busca de dissidentes, para persegui-los. Esse uso que os regimes do Irã, da China e da Rússia vêm fazendo dessas ferramentas me faz pensar que a internet é, em alguns casos, mais útil para regimes autoritários do que para os democráticos.
       
            
CULT - Seu livro fala da transição da "ditadura do especialista" para a "ditadura das massas". Seria esse o problema fundamental da web 2.0?
        

Keen - A ditadura do especialista [ expertise] é uma peça importante da era industrial e é fácil criticá-la. De modo geral, acho que foi uma boa coisa. Para mim, essa divisão rigorosa da vida resultou na meritocracia. Não consigo ver o que poderia substituí-la. O sistema educacional é relativamente meritocrático e a maioria das pessoas quer se dedicar a algumas poucas atividades bem pagas, para as quais há uma necessidade limitada de profissionais.
Penso que vivemos uma época em que a ordem meritocrática está sob ataque. É possível reconhecer essa tendência no ataque aos políticos, à mídia, aos economistas. Em alguns casos, esse ataque é merecido, porque essas pessoas fizeram mal o seu trabalho. Mas não sei bem o que vem substituir essa ordem. Não acho que seja exatamente um poder das massas.
            
Aristóteles falava de oclocracia, a tirania das massas, um tipo de regime em que a plebe governa, mas que sempre acaba em tirania. A verdade é que, no fundo, por trás dessa oclocracia digital que vivemos, existem novos oligarcas, indivíduos com imenso poder e que muitas vezes escapam do nosso julgamento, porque não sabemos ao certo quem são. Não acredito na era das massas. Se ela existe de algum modo, o que mais temo são esses oligarcas que se escondem por trás delas e são capazes de mobilizá-las.
         
Por exemplo, no Twitter, é possível ver a influência de pessoas com centenas de milhares de seguidores. O ator inglês Stephen Fry "twitou" uma opinião favorável sobre um livro e esse livro foi de imediato para a lista dos mais vendidos no New York Times. Não estou dizendo que Fry é mal-intencionado. O que estou dizendo é que, uma vez que existem figuras poderosas com vários seguidores, partidos políticos e outras organizações tradicionais se enfraquecem.
          
É essa a mudança que tenho em mente no livro - uma mudança que vai da estrutura organizacional para uma estrutura demasiado centrada no indivíduo. Não sei se soube expressá-la tão bem ao escrevê-lo. A internet é cada vez mais um veículo de aquisição de poder para esses novos senhores feudais digitais, esses barões da nova era, que são imensamente poderosos, algumas vezes mais poderosos do que as organizações, o que pode ser muito perigoso. Os EUA precisam de checks and balances [a separação tradicional de poderes na democracia]. O que me incomoda é que estamos eliminando o checks and balances. Quando você se livra deles em nome da justiça, da liberdade, da igualdade, na verdade você está criando as bases para uma ditadura.
      
       
CULT - Você fala muito de analfabetismo digital. As escolas ainda não estão preparadas para a internet?
           

Keen - O que me preocupa são as crianças que obtêm informação na Wikipédia. Os melhores sistemas educacionais são os que são supervisionados por seres humanos. É muito perigoso quando se disponibilizam sistemas de conhecimento não supervisionados na internet, como no Google ou na Wikipédia. A internet pode ser uma ótima ferramenta para as crianças, mas cada vez mais você as vê usando e citando a Wikipédia, por exemplo. O que precisamos ensinar a essas crianças é o alfabetismo midiático. Temos de fazê-las entender que toda informação vem acompanhada de uma bagagem cultural.
           
Quem quer que seja o autor, todo texto é, em certo sentido, uma polêmica. Todo texto tem o seu viés, o que não significa que seja necessariamente corrupto. O desafio para as crianças é entender isso, em vez de apenas ler esse texto como mera verdade. E, quando um texto aparece na internet, ainda que no blog mais obscuro, ele ganha esse aspecto de verdade, sobretudo se endossa uma opinião prévia do leitor.
      
        
CULT - O que fazer?
      

Keen - Penso que os professores deveriam focar seus esforços em ensinar as crianças a ler e enxergar o que está por trás desse tipo de texto. Não é necessário ensiná-las como usar essas novas mídias, porque elas são projetadas para ser intuitivas. O grande desafio do século 21 é o alfabetismo midiático. Se queremos que essas crianças cresçam para tornar-se bons cidadãos, capazes de votar com consciência e de tomar decisões maduras sobre o mundo, precisamos ensiná-las a usar essas ferramentas com ceticismo e a diferenciar o que é confiável do que não é. Do contrário, acabaremos por infantilizar nossa cultura.
             
   
CULT - Como você é um dos maiores críticos da Wikipédia, procurei seu nome no site em inglês. No item "crítica à internet", lê-se que você não vê problemas em ser chamado de elitista e que, ao ser perguntado sobre se a internet era pior do que o regime nazista, você teria dito "pelo menos os nazistas não deixavam os artistas sem emprego". Como reage a isso?
    

Keen - [Risos] É engraçado você ter me perguntado isso, porque esse episódio nos conduz direto ao centro do problema. Trata-se de um ótimo exemplo das distorções e mal-entendidos causados pela cultura da internet. Veja você: Stephen Colbert é um dos comediantes mais populares dos EUA. Seu programa é um dos mais vistos da TV norte-americana, com uma audiência de vários milhões de expectadores. Não é bem um entrevistador, mas um comediante que criou uma persona paródica por meio da qual se apresenta como um entrevistador populista de direita. As entrevistas que faz não são entrevistas sérias, ao contrário, elas têm essa função cômica e paródica. Ele está ali mais para tirar sarro da cara do entrevistado do que outra coisa.
                  
Quando fui convidado para o programa dele, pensei que não perderia nada em ir falar do meu livro, mas logo me avisaram que, se havia uma coisa que eu deveria evitar, era tentar ser engraçado. Assim, uma vez no programa, decidi jogar o jogo cômico de Colbert e também eu interpretei o meu papel. Aí ele me encarou e me disse: "O senhor é um elitista!". E eu retruquei com aparente indiferença: "E o que há de errado nisso?". Depois disso todos me chamam de elitista quando me citam na Wikipédia.
          
Quanto à referência ao nazismo, obviamente trata-se de uma piada. Colbert colocou satiricamente essas palavras em minha boca, sem que eu as tivesse de fato dito. Em primeiro lugar, sou judeu. Em segundo lugar, fiz estudos acadêmicos sobre a história da Alemanha. Estou longe de ser alguém que não tem ideia do que aconteceu na Alemanha nazista.
Isso mostra o absurdo dessa cultura, na qual sou citado com base em um programa humorístico.
     
Mostra que as pessoas que escrevem na Wikipédia são pessoas com pouca cultura, que não têm senso de contexto nem entendimento aprofundado do mundo. Mostra ainda que toda essa cultura se enraíza no que chamo de uma comunicação nebulosa. Fico até contente que a entrada virtual sobre mim não tenha sido corrigida porque ela revela a péssima qualidade da Wikipédia.
     
A meu ver, o maior problema da Wikipédia não é o fato de ela conter equívocos e, sim, o de não haver ninguém que avalie os artigos e assuma a responsabilidade por eles. Eu sempre gosto de lembrar que o verbete da Pamela Anderson na Wikipédia é maior e mais meticulosamente elaborado do que o da Joana d'Arc, ou o da Hannah Arendt.

(...)

CULT - Você acredita no relativismo da verdade jornalística?

 


Keen - Tomemos como exemplo a questão da Palestina, que é um dos assuntos mais complexos e polêmicos que podemos abordar, uma questão sobre a qual está claro que não existe "a verdade", mas uma série de verdades conflitantes. Como você se informaria sobre o que está acontecendo no Oriente Médio, se quisesse realmente compreender a situação? A única forma de fazê-lo é ler as várias opiniões contrárias. Você teria de ler jornais que sejam anti-Israel e pró-Palestina, ler os artigos pró-Israel de Thomas Friedman no New York Times, os artigos de Robert Fisk no Independent, ler o Financial Times, cujo posicionamento é mais equilibrado. A questão com os jornais é que eles não apresentam ao leitor um pacote mastigado de notícias. Se ele quiser entender o mundo para se tornar alguém mais informado e, como consequência, um melhor cidadão e um melhor eleitor, ele tem de se esforçar, tem de trabalhar para isso, tem de estar disposto a ler opiniões diferentes e refletir sobre elas com um mínimo de ceticismo. Não estou dizendo que, se você ler todos esses artigos diferentes sobre o Oriente Médio, será capaz de extrair deles "uma verdade".
 


Acredito que a mídia mainstream criava o alfabetismo midiático na era em que crescemos. Hoje, a internet, por ser anônima, por ser um meio de comunicação cujas fontes são tão difíceis de avaliar e julgar, por ser, na verdade, incrivelmente tendenciosa, suscita o analfabetismo midiático.
 



Na verdade, isso não se deve exclusivamente à internet. Isso se deve, sobretudo, às transformações sofridas por nossa cultura, cada vez mais focada em rápidas acomodações intelectuais que deem conta da enorme velocidade do fluxo de informações.


Em resposta aos relativistas culturais radicais que dizem não haver verdades, digo que, sim, existem verdades. Há verdades nas notícias. Os terroristas do 11 de Setembro de fato jogaram os aviões contra aqueles prédios. Pode haver diferentes interpretações para esse fato, mas nada faz com que deixe de ser algo que realmente aconteceu, um fato e não uma convenção.
 


Mas, quando você elimina a responsabilidade do autor sobre o texto, quando você elimina a ligação que existe entre o escritor e o leitor, tudo se torna possível em termos de desonestidade. O que eu quero dizer é que a verdade, seja ela qual for, é muito mais escorregadia agora do que era na época da mídia mainstream.

   

CULT - Você mesmo disse que seu livro, publicado originalmente em 2007, contém erros...


Keen - Não diria erros, mas fraquezas. Idealizei demais a mídia


mainstream, eu deveria ter sido mais crítico a esse respeito.
 
 

CULT - Certo. Qual seria, de todo modo, a ideia central que não foi abalada de lá para cá?

 
Keen - A ideia fundamental é a de que a "cultura supervisionada" [curated culture] é algo bom; que o velho mundo midiático, o complexo ecossistema de indivíduos entre o autor e o público, serve para filtrar e melhorar o conteúdo. Quando você se desfaz dessa mediação, com o argumento de que a nova mídia é mais eficiente e lucrativa, também está se desfazendo de valores fundamentais e os resultados disso podem ser catastróficos.


Outra ideia importante é a de que a mídia mainstream é razoavelmente eficiente e, sem dúvida, mais eficiente que a nova mídia em encontrar e polir talentos. O talento é uma constante em nossa história. Sempre existiram pessoas talentosas. Mas a maioria das pessoas não o é. Isso não significa que elas sejam más, ou que mereçam ir para o inferno. Elas apenas não são muito talentosas e não têm nada de interessante a dizer. O desafio da mídia é encontrar as pessoas talentosas e lapidar seu talento, para poder torná-lo vendável. Quando John Hammond viu Bob Dylan numa casa noturna de Nova York em 1961, Dylan ainda não estava pronto para ser um popstar, mas Hammond era um olheiro talentoso, podia reconhecer a genialidade e o potencial daquele homem em sua frente. Cinquenta anos depois, Dylan é provavelmente o mais importante ícone cultural norte-americano do século 20. O problema é que nesse novo mundo os Dylans se perdem. Estamos jogando fora nossos talentos. Nesse novo mundo os que vão aparecer serão os autopromotores, que com frequência veiculam ideias bastante banais. Qualquer ideia mais substanciosa se perde.
 


Confesso que não é um argumento muito original. Já tinha sido desenvolvido pela Escola de Frankfurt. Porém vivemos um momento em que essa discussão se tornou particularmente aguda. Nesse sentido, muitas vezes brinco dizendo que o meu livro é uma espécie de " Adorno for dummies" [Adorno para leigos].







Fonte: Revista Cult - Edição 140


 

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Em meio ao tsunami da informação por Paulo Ghiraldelli Jr



Logo após a crise do PT de 2005, a professora Marilena Chauí escreveu que não era dada à prática de ler jornais.  Uma parte da juventude, já decepcionada com ela por causa da sua defesa pouco racional do PT, ficou mais inconformada ainda com tal declaração. Afinal, ela, que tanto fez na imprensa, chegando até a ter uma coluna semanal na Folha de S. Paulo, uma vez vendo a imprensa ter de malhar o PT, agia como a avestruz: cabeça enfiada no buraco, xô realidade. Era isso?
Não vou dizer que não era. É claro que Marilena estava magoada. Ninguém coloca 40 anos de sua vida em uma proposta política e, então, vendo tudo desmoronar, aceita o destino com tranqüilidade. Todavia, as pessoas esperam que o filósofo saiba enfrentar coisas assim com sabedoria. Até mesmo quem não tem uma idéia correta do que é um filósofo, quer acreditar que se trata de um intelectual que tem a mente aberta, alguém que pode mudar de idéia, pode engolir adversidades sem teimosia. Essa cobrança recaiu sobre ela. Veio então o tal “silêncio obsequioso”. Marilena se recolheu à academia e desta à aposentadoria. Uma vez no Conselho Nacional de Educação, justamente ali, onde poderia falar grosso, parou de falar.
Nas cambalhotas desses passos pouco alvissareiros, penso que Marilena acertou em alguma coisa. Atirou no que viu e acertou no que não viu. Ela acreditou que não deveria mais dar importância à imprensa porque esta estava distorcendo tudo. Acertou, mas não pelo que falou, e sim pelo que não falou.
De 2005 para cá a imprensa brasileira, especialmente os jornais impressos e as revistas, tem caminhado rapidamente na mesma direção de fragilização da imprensa mundial. A divulgação das informações via Internet demorou a ameaçar a imprensa, mas, enfim, ameaçou. A crise, agora, é sentida por todos. Os jornais não estão se agüentando nas pernas. Então, inicia-se uma transformação psicológica, às vezes não clara para os próprios jornalistas que a vivem, que segue na direção de agradar o leitor a qualquer custo. Os jornais querem agradar. Os jornalistas querem ser lidos. Querem mostrar para os chefes de redação que eles são lidos, que são importantes. Empurram para fora dos jornais e para fora de todo lugar intelectuais que eram amigos, mas que, agora, são concorrentes. Ao mesmo tempo, há uma bajulação do leitor jamais vista. Com isso, o eco do senso comum cresce absurdamente. Nasce a ditadura do senso comum sobre a imprensa e, quanto mais democracia temos – graças à Internet – mais a informação é produzida por nós mesmos para nós mesmos segundo nosso gosto mais pasteurizado. O resultado é este que vivemos: a cada dia nós temos uma dificuldade imensa de usar da imprensa para levantar elementos corretos para uma crítica de instituições ou pessoas ou governos que não são criticados pela maioria, ou pelo que se pensa que é a maioria.
A situação fica engraçada, pois até as frases que foram usadas, no passado, para atacar essa situação, são reiteradas sem mais conteúdo algum, e criam o sentido oposto. Por exemplo, quem hoje diz “a unanimidade é burra”, não diz nada. Pois exatamente quem fala isso, está dentro de uma unanimidade setorizada, que lhe dá a impressão de estar atuando de modo crítico e ousado.  O fenômeno dos blogs, twitters, podcasts e vídeos criou um mundo de jornalistas amadores que competem quase de igual para igual com os profissionais dos jornais impressos. Conquistam leitores. Trabalham de graça. Os jornalistas profissionais, desesperados, não conseguem não publicar em seus próprios blogs seus furos, pois ficam com medo de que o furo não seja furo em um prazo de segundos. Então, eles próprios solapam as bases financeiras dos jornais. A idéia trazida pela Internet é que toda notícia é gratuita para o consumidor, e que a imprensa deva ser virtual e tire seu lucro da propaganda. Sim! Mas a fase de transição para essa situação que aponta ser a correta é terrível.
Nessa fase, muitos imaginam que não irão sobreviver – e estão certos. Então, se agarram ao lema, às vezes pouco claro, mas que está virando regra: “não podemos perder o leitor”. Assim, se eu publico uma pesquisa, encomendada pelo governo, e esta pesquisa diz que Lula está com 80% de aprovação popular e, depois, tenho de publicar outra em que ele cai de aprovação, fico temeroso de publicar esta segunda, pois posso não só desagradar o governo, que paga a maior parte de minha propaganda, mas posso desagradar o leitor, que não quer que o país entre em crise e prefere acreditar que seu presidente está fazendo a coisa certa, e que vai bem. Em poucos movimentos, o eco do senso comum vai catalisando a si mesmo e, ao final, há uma total incapacidade de crítica.
Não estou dizendo a bobagem que ouvimos nos anos noventa, de que estávamos sob o tacão do “pensamento único”. Há diversidade, é claro, pois mil coisas estão acontecendo e sendo noticiadas com uma velocidade nunca vista antes, e num volume assustador. Todavia, essa diversidade, ela própria, tende a formar uma perigosa unidade momentânea de fundo conservador.
Eis como isso funciona. O volume de matérias que vai de todos para todos é imenso e a velocidade da troca é intensa, mas cada vez mais ele pode, em determinados momentos, seguir um único corredor, com um efeito de falsa mobilização. E isso até pelo fato que a análise não é mais permitida, todo mundo repassa o que recebe sempre tentando só chamar a atenção.  O caso do fora Sarney na imprensa e no twitter foi significativo disso. Sarney ficou sólido a cada dia, com apoio de Lula – era visível isso. Mas a gritaria do eleitor aumentou contra ele, uma vez que ele começou a provocar o leitor a partir de suas declarações no Senado. Ao mesmo tempo, todo e qualquer movimento de rua contra ele foi barrado, uma vez que o PT, o único partido com capacidade de mobilização de rua, aderiu à proteção de Sarney. Isso não causou revolta contra Lula, pois a Internet catalisou a raiva, mas de uma forma esquisita. Vários que votam em Lula, mesmo sabendo da preferência do Presidente pelo Senador, vieram para o lado dos que reclamaram do Senador apenas por ódio geral à política, e todos descontaram o ódio contra Sarney no twitter. Ora, isso gerou um movimento falso de oposição. Não estou dizendo que o movimento virtual é falso, o que estou contando é que, neste caso, surgiu sem conteúdo. Enquanto isso, a própria Justiça conseguiu calar a boca do Estadão que, por sua vez, agradeceu o fato. Pois se pudesse atacar Sarney até o final, iria acabar por bater em Lula e, então, sofreria a retaliação. Retaliação não só de Lula mesmo, que poderia tirar as estatais da jogada de alimentar a imprensa, mas retaliação do leitor. Esta última talvez viesse a ser até mais perigosa que a de Lula. Ao menos é isso que corre pela cabeça de muitos dos jornalistas.
Pode ser que este fenômeno que estou descrevendo aqui não dure muito. Pode ser quer a própria Internet, daqui a pouco, mostre que ela tem caminhos de liberdade que não estamos sabendo usar no sentido de mudanças substanciais, e não da reiteração do senso comum que estamos vivendo. Mas, no momento, especialmente no Brasil, o que estamos vivendo é isso. Nenhum de nós que está nesta avalanche de dar e passar informações sabe se o que estamos ouvindo é algo que podemos repetir sem ferir nosso único real desejo atual, o de sobreviver na tarefa de dar e passar informações, de se fazer notar, mesmo que não sejamos profissionais da imprensa. Tudo que todos começam a desejar, em uma situação assim, é não ofender aquilo que imaginamos que é o pensamento do senso comum.
Dessa forma, uma série de questões são criticadas e comentadas, mas somente na sua superfície. Ninguém quer aprofundar nada. A autocensura, essa figura que parecia que não mais iria estar entre nós, voltou. Não temos medo do tal “censor da ditadura”, que não existe mais, temos medo de nós mesmos, de falarmos algo que não condiz com a psicologia cordial que se instaurou no meio intelectual. Todos nós queremos ser conscientes, críticos, mas cordiais. Não queremos nos inviabilizar perante o comprador de nosso produto, o texto. Assim é que estão funcionando os jornais impressos, e também a TV. Aliás, parte da academia já havia aderido a isso há algum tempo. O poder de fogo do blogs, de reiteração do senso comum, faz os jornalistas não afrontarem mais ninguém. Jornalistas de esquerda e de direita chegam a um acordo tácito. Eles só podem falar na medida em que não contrariam seus públicos cativos. E eles estão confusos em saber qual o seu público cativo. Tornam-se conservadores em costumes na medida em que disputam com os blogs a preferência do leitor. Pois os blogs, na sua maior parte, representam a emergência dos escolarizados não politicamente engajados. Eles representam uma classe média conservadora em costumes que, enfim, sempre odiou ter de ir para a rua ou para os partidos para ter de mudar as coisas. Os jornalistas acreditam que estão perdendo para essa gente, e então, passam a reiterar o que dizem os blogs. O senso comum se amplia assustadoramente com essa alimentação de dupla mão.
Dessa forma, o que ocorre entre nós é um movimento quase que inverso do que se deu com o “fenômeno Obama”. Nos Estados Unidos, os não participativos viram nos blogs, vídeos e similares a sua chance de terem “um novo partido” que, enfim, atropelou pela esquerda o Partido Democrata e o Partido Republicano. No Brasil, não sei se podemos falar do mesmo fenômeno, vindo da direita. Mas, ao menos no momento, podemos falar de um fenômeno parecido, mas no sentido do conservadorismo moral, tanto na direita quanto na esquerda.  Isso está levando de roldão os jornalistas, mesmo os mais atentos, mesmo os que se achavam sabidos e autoconscientes. Cada profissional da escrita está tentando esticar o braço e dizer “eu estou aqui, aqui ó”.
Ainda que esse movimento possa, em alguns momentos, ser menos conservador que agora, o fato é que tudo vai se tornar mais aguerrido logo. Pois junto com a imprensa jornalística também o livro vai se modificar muito, uma vez que aquele que seria o potencial leitor logo estará cativo de programas de TV em canais online dirigidos a um público diminuto e específico. Este público seria o leitor do livro daquele intelectual que, neste futuro próximo, estará dirigindo o programa de TV.  Isso nós vamos assistir ainda neste final de década.


© Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo


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