sábado, 22 de maio de 2010

Montaigne - A amizade

 Autor dos Ensaios, obra que exala a nostalgia de uma amizade perdida, Michel de Montaigne concluiu que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos

texto José Francisco Botelho ilustração Sean Mackaoui

Um filósofo que zombava da filosofia. Um cético que acreditava em Deus e renegava o ateísmo. Um amante da paz e da tranquilidade, que adorava o som e a fúria das batalhas. Um misantropo que valorizava a amizade acima de todas as coisas. Essas e muitas outras contradições se encontram, em fascinante desarmonia, no vertiginoso autorretrato que o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) traça em sua única e maciça obra: Ensaios, livro indispensável não apenas para aqueles interessados em filosofia como para todos os amantes da boa literatura. Nascido em uma época de transformações, maravilhas e catástrofes, Montaigne testemunhou e viveu grandes reviravoltas históricas: a ascensão da burguesia, a descoberta de terras exóticas no Novo Mundo e os conflitos sanguinários entre católicos e protestantes. Em meio a esse mundo caótico e muitas vezes brutal, ele escolheu a si mesmo como objeto de reflexão – e compôs o mapa deliciosamente contraditório de sua própria alma, em escritos cheios de introspecção e exuberância, humor e melancolia.

Para alguns, Montaigne foi o maior porta-voz do ceticismo na idade moderna – colocando em suspenso todas as certezas absolutas, ele preparou o caminho para o iluminismo de Voltaire e Montesquieu. A grande originalidade de Montaigne, contudo, não é a negação da Verdade maiúscula, mas a busca de verdades possíveis e transitórias (e nem por isso menos significativas) nas obscuras fronteiras da personalidade humana. A filosofia ocidental, até então, havia encarado a Razão como uma ferramenta impessoal para a compreensão absoluta do universo: com Montaigne, o pensamento deixa de ser uma busca etérea por certezas fixas e se transforma em um olhar visceral e dinâmico para o interior do próprio indivíduo. Quatro séculos antes da invenção da psicanálise, esse pensador excêntrico, amigável e solitário já havia concluído que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos.


Montaigne Filósofo “moderno” e criador de um gênero literário, o ensaio, Michel de Montaigne nasceu em 1533 e morreu em 1592. Onívoro, parecia interessado em pensar sobre tudo.


O grande amigo Nascido em uma família de burgueses enriquecidos no comércio, Michel de Montaigne foi educado para se tornar um perfeito cavalheiro – seu pai, como muitos novosricos na época, queria apagar da árvore genealógica todas as marcas da origem plebeia. Antes mesmo de aprender o francês, o menino foi instruído no latim. Os familiares e serviçais da casa estavam proibidos de falar qualquer outra língua – e, até os 6 anos de idade, Montaigne conversava apenas no idioma de Cícero. Até a adolescência, o rapaz viveu sem obrigações: passava muito tempo lendo e sonhando, numa doce vida embalada por preguiçosas elucubrações. O gosto pela solidão contemplativa, adquirido tão cedo, haveria de acompanhá-lo até a velhice.


Montaigne só foi arrancado daquele ocioso paraíso aos 13 anos. Enviado a Toulouse, estudou Direito e ocupou o cargo de conselheiro legal em tribunais e parlamentos. Mais tarde, tornou-se cortesão no reinado de Carlos IX. Participou de cercos e grandes batalhas e, embora lhe repugnasse o derramamento inútil de sangue, Montaigne jamais negou o fascínio que sentia pela ação e pelo perigo. No burburinho da corte, por outro lado, ele aprendeu as manhas da alta sociedade e se tornou um renomado mulherengo e beberrão – mas sua devassidão era acompanhada por uma forte dose de melancolia. Sonhador e individualista, Montaigne sempre teve dificuldade em fazer amigos íntimos. Até que, aos 24 anos, conheceu o poeta e erudito Étienne de La Boétie.


Três anos mais velho que Montaigne, La Boétie era um homem de múltiplos talentos e interesses. Versado nas línguas antigas, ele escrevia sonetos em grego, latim e francês com idêntica fluência. Ainda muito jovem, ficou célebre pela obra Discurso Sobre a Servidão Voluntária, um libelo contra a tirania, escrito com a dicção solene dos clássicos da Antiguidade. Montaigne leu o livro antes de conhecer FILOSOFIA o autor; ao encontrar La Boétie, em Toulouse, já nutria por ele uma imensa admiração intelectual. Em breve, esses dois latinistas libertinos começaram a descobrir suas infinitas afinidades. Ambos amavam com idêntico fervor o vinho, as curvas femininas e a literatura; ambos veneravam a ética cavalheiresca e a individualidade de pensamento. E mais: numa época dilacerada pelos conflitos entre católicos e protestantes, ambos defendiam a tolerância religiosa e a convivência de ideias opostas. Durante quatro anos, em meio a bebedeiras e recitações da Eneida, Montaigne e La Boétie desfrutaram de uma dessas amizades hiperbólicas que às vezes parecem beirar a paixão platônica. “Se insistirem para que eu diga por que o amava”, escreveria Montaigne anos depois, “sinto que não saberei me expressar, senão respondendo: porque ele era ele; porque eu era eu”.


Uma boa fé Aos 29 anos, contudo, Montaigne foi subitamente privado de seu companheiro de prazeres e confrade de leituras: derrotado por uma grave crise de disenteria, La Boétie morreu após uma agonia lenta e dolorosa. Ao que tudo indica, foi a dor dessa perda que levou Montaigne a se refugiar – e se reencontrar – na escrita. Desgostoso com o mundo, o hedonista se transformou em eremita: abandonou as funções públicas em 1570 e se retirou para a propriedade rural que herdara da família, mergulhando na solidão. A partir daí, passaria a maior parte do tempo encerrado na torre do castelo, cercado pelos mais de 1500 volumes de sua biblioteca. Naquele isolado éden livresco, ele encontrou o único substituto possível para o amigo morto: nós, os infinitos leitores do futuro. É a essa legião de amigos invisíveis e íntimos que ele dirige a célebre advertência na primeira página dos Ensaios: “Eis aqui, leitor, um livro de boa fé... Sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empre gues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância”. É com essa irônica mesura que Montaigne nos convida a adentrar a turbulenta morada de sua alma.


E ele nos conduz por esse labirinto sem nos prometer conclusões definitivas e reconfortantes. A palavra essai, na época, significava “tentativa”. E é assim, às apalpadelas e aos tropeções, que Montaigne escreve sobre temas tão variados quanto a guerra, a equitação, a gastronomia, a botânica, o medo, as vestimentas, a tosse, os espirros, a flatulência, as carruagens, as virtudes e as fraquezas do órgão sexual masculino, os hábitos funerários dos antigos indianos, as viagens marítimas, a amizade, a solidão, a morte, os cálculos renais (apenas a enumeração exaustiva pode traduzir o gostinho de suas maravilhosas digressões). À primeira vista, os Ensaios são uma estonteante enciclopédia sobre tudo e sobre nada. Mas o tema central dessa epopeia sem método e sem jargões é o próprio Montaigne – o qual, por meio da autoanálise, acaba encontrando em si mesmo uma janela para a investigação de toda a humanidade.


Essa investigação, por sinal, não leva a uma verdade única, mas abre as comportas do entendimento para a multidão de verdades individuais que compõem o ser humano. Com seu afável ceticismo, Montaigne considera a Razão humana incapaz de resolver as questões transcendentes do universo – por exemplo, a existência de Deus e a imortalidade da alma. Para o autor, a própria descrença é um ato de fé. Perante dilemas insolúveis – como o são a maior parte dos temas da filosofia universal –, Montaigne não sugere uma resposta, mas uma pergunta: “Que sei eu?” A única coisa que podemos conhecer realmente somos nós mesmos; e, conhecendo-nos, podemos começar a compreender os outros. Pois, como nos diz o solitário habitante da torre, em seu tom oscilante entre a gravidade e o devaneio, “todo homem traz em si a forma total da condição humana”.


A tolerância Os Ensaios nasceram da nostalgia por uma amizade perdida – e não é exagero dizer que sua leitura, mesmo cinco séculos depois, é uma experiência semelhante à do contato direto e afetuoso com outro ser humano. Ler Montaigne é conhecê-lo intimamente, inclusive em seus defeitos. É graças à sinceridade radical do autor que conhecemos sua velada misoginia, sua indiferença em relação à esposa e aos filhos e suas rabugices. Não raro, ele pinta a si mesmo como inculto, grosseiro ou mesmo bobalhão – e o faz sempre com uma piscadela de ironia para o leitor. “Tenho uma maneira de pensar que me isola dos outros e, por outro lado, sou de uma ignorância pueril sobre o que todo mundo sabe. Esses defeitos valeram-me a reputação de bobo, que assenta em cinco ou seis fatos reais”, comenta, sem cerimônia, como se nos tivesse ao seu lado, no alto da torre, bebericando um vinho.


Ao lado dessas confissões despudoradas, encontramos virtudes que fazem de Montaigne um guia sábio. De inestimável valor para nossa época é sua defesa da tolerância. Dono de uma inesgotável curiosidade sobre outros povos, Montaigne salpica em seus escritos elogios às civilizações judaica e islâmica e aos indígenas do Novo Mundo – tudo isso no mesmo período em que a Inquisição calcinava hereges e os conquistadores ibéricos massacravam os “selvagens” das Américas.


Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto, com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais; mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.


Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto, com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais; mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.


Comparando o canibalismo indígena com a selvageria das perseguições religiosas na Europa, Montaigne aponta para uma sabedoria árdua, mas profunda, cuja utilidade é inegável em uma época como a nossa, dilacerada por ódios novos e antigos e obcecada com supostos “choques de civilizações”: o bem e o mal, a civilização e a barbárie estão misturados em todas as culturas, de forma indistinguível, e jamais formam compartimentos estanques. O homem, afinal de contas, é um “pobre animal” preso em um mundo que não pode decifrar; mas nesse universo caótico resta-nos a possibilidade de compreender uns aos outros – ou, pelo menos, tentar. É nesse sentido que Montaigne nos lega outra herança preciosa: o sentimento de humanidade, que nos une a todos em nossas limitações e mesquinharias, mas que abre a possibilidade de uma fraternidade universal, maior que as pátrias e as línguas. “Considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço a um polonês como a um francês, pospondo os laços nacionais aos universais e comuns”, escreveu ele, em um de seus muitos manifestos pela amizade entre os povos. E acrescenta, citando um exemplo tirado de Heródoto: “A natureza colocou-nos livres no mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares – tal qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a água do rio Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito de usar todas as demais águas, e secando, para seus olhos, todo o resto do mundo”.

Fonte: Revista Vida simples - Edição 92 - 05/2010.

São Paulo Faz Escola. E Nós, Fazemos Filosofia? - Parte II

 Jour et Nuit de M.C. Escher (1938)

Por Leon Denis 

Continuação do post anterior: São Paulo faz escola. E nós, fazemos Filosofia? -Parte 1

Com essa leitura da Proposta Curricular do Estado de São Paulo, passamos aos Cadernos do Professor.


1ª série do Ensino Médio

Nas orientações sobre os conteúdos do 1º bimestre das primeiras séries do Ensino Médio, temos uma afirmação que muito me chamou a atenção: "...temos de recorrer aos conhecimentos e às estratégias sugeridas pelos filósofos, encontrados na História da Filosofia e que devem ser utilizados para desenvolver o pensamento crítico, indispensável à promoção da dignidade humana." 10
Dois pontos saltam aos olhos nesse preâmbulo do Caderno: primeiro, ele exalta a importância de se recorrer ao filósofo e a História da Filosofia na qual esse está inserido, como fundamentais para pensar e levar os adolescentes a tal ação criticamente, ou seja, o Caderno inicia contradizendo a Proposta Curricular (p. 42-43) da qual origina e fundamenta-se.
Segundo, esse trecho grifado por mim, referindo-se à dignidade humana, nos lembra o que? A trindade que fundamenta a ideia de Ética (especista, sexista, racista, elitista) que nos formata há tempos; qual seja, o pensamento judaico-cristão, o pensamento aristotélico e sua extensão medieval e a ética do filósofo de Konigsberg. A filosofia moral tradicional, representada pela frase, "promoção da dignidade humana", irá percorrer todos os Cadernos do Professor de Filosofia enviados pela Secretaria da Educação. Vamos no encalço dessa proposta especista de trabalhar filosofia no ensino médio.
Na página seguinte encontramos o objetivo do Caderno: o desenvolvimento das competências e habilidades, "extraídas da matriz do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que são:
" * dominar a norma culta da língua portuguesa e fazer uso das linguagens matemáticas, artísticas e científica;
* construir e aplicar conceitos das várias áreas do conhecimento para a compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos, da produção tecnológica e das manifestações artísticas;
* selecionar, organizar, relacionar e interpretar dados e informações, representados de diferentes formas, para tomar decisões e enfrentar situações-problema;
* relacionar informações, representadas de diferentes formas, e conhecimentos disponíveis em diferentes situações, para construir argumentação consistente;
* recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para a elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sócio-cultural.11
Após ler essas competências e habilidades que os alunos do ensino médio devem ter ao término do uso desses Cadernos, surgiu a seguinte dúvida: o que foi trabalhado, desenvolvido nos últimos oito anos da vida escolar desse jovem, de modo que ele ainda não domine "a norma culta da língua", não construa e aplique "conceitos de várias áreas do conhecimento...", não selecione, organize, relacione e interprete dados e informações, e não recorra "aos conhecimentos desenvolvidos na escola..."? Da dúvida sobre essa última competência/habilidade nasce outra: que conhecimentos desenvolvidos na escola? Não vejo nenhum conhecimento sendo desenvolvido, apenas a reprodução nua e crua da tradicional moral cristã-burguesa, de uma ciência fria e biocida e de uma filosofia do descaso. Nem uma década de adestramento escolar consegue fazer um jovem ser competente e habilidoso naquilo que é antinatural. Será que em três anos em companhia desses Cadernos faremos o que em dez não tivemos competência para fazer?
De todos os verbos grifados acima faltou o pensar, talvez, seja porque pensar não é útil para o exército de reserva que estamos a formar. Mão de obra barata não pensa; executa. Aos nossos jovens não é permitido pensar. Nada irrita mais um professor medíocre, do que um adolescente pensante.
Passando brevemente pelos dois temas abordados no Caderno, temos no 1º o título: Por que estudar filosofia?
Até quando vamos continuar com esse senso comum acadêmico de que todo inicio de discussão sobre filosofia no ensino médio deve partir da justificativa de sua importância como disciplina escolar?
Por que estudar filosofia? Para que serve filosofia? Qual a utilidade da filosofia? etc, etc... A filosofia é a única disciplina escolar que tem que ficar justificando sua capenga e inofensiva presença no recinto. Explicar porque o aluno deve estudar filosofia é um ato extremamente desrespeitoso para com essa senhora de quase três mil anos. "Estudar" filosofia nos moldes tradicionais como o governo ratifica é um crime contra a juventude.
No 2º tema temos - as áreas da filosofia - instrumentos de pesquisa em História da Filosofia, onde "os conceitos básicos a ser desenvolvidos são: História da Filosofia, História, Biografia, características da Filosofia Antiga, características da Filosofia Medieval, características da Filosofia Moderna, características da Filosofia Contemporânea."12
Parece-me que a Proposta Curricular, como vimos acima, não concorda com esse 2º tema a ser desenvolvido com os alunos. Bom, contrariamente ao que a Secretaria da Educação a princípio propõe, o Caderno enfatiza:
"Após a explicação inicial sobre as divisões da História da Filosofia e a pesquisa, você pode pedir aos alunos que se dividam em grupos, sorteando entre eles o nome de um filósofo, cuja biografia deverão pesquisar. Não se esqueça de incluir nomes como Platão, Aristóteles, Santo Agostinho, René Descartes, Espinosa, David Hume, Voltaire, Hegel, Nietzsche, Karl Marx, Kant, Martin Heidegger, Sartre, Hannah Arendt e outros que consideram fundamentais. Procure contar aos alunos algumas curiosidades sobre a vida desses filósofos para estimular a curiosidade deles.
Em seguida, oriente os alunos sobre as fontes de pesquisa, enfatizando a importância de consultar boas enciclopédias, dicionários de filosofia, livros didáticos e paradidáticos, além de revistas especializadas. Caso seja possível em sua escola, recomende o uso da internet..."13
Depois dessa, parece que o "olhar voltado para o mundo" e o "recolhendo material nas ruas" ficou para trás. Sem contar aquele papo de que não iria muito longe o docente que restringisse a formação do seu aluno a compreensão das estruturas do pensamento de um filósofo. Estaria o Caderno de 1º ano testando o professor, ao estabelecer, nas páginas 35 a 43, que desenvolva o conceito de metafísica do pensador macedônico, Aristóteles, para saber se ele consegue ir um pouco mais que duas aulas? Testando ou não, a equipe organizadora dos Cadernos preparou para a 2ª série uma seqüência de situações de aprendizagem, pouco se importando com o que a Proposta Curricular indicou não realizar.

Situação de aprendizagem 1- O eu racional (Descartes)
Situação de aprendizagem 2- Introdução à Ética (Sócrates/Aristóteles/Epicuro)
Situação de aprendizagem 3- A liberdade (Sartre)
Situação de aprendizagem 4- Autonomia (Kant)

2ª série do ensino médio

Na orientação sobre o conteúdo do 1º bimestre da 2ª série, temos como objetivo do Caderno "fazer com que os estudantes se pensem como racionais, percebam a importância da ética, reflitam sobre a liberdade e, então, assumam sua capacidade de autonomia"14. Destacarei apenas alguns pontos dessas situações de aprendizagem ou temas, sob a ótica de uma filosofia crítica, animalista, que busca a expansão do círculo da moralidade.
O Caderno inicia com a afirmação de que o primeiro objeto da ética deriva da relação que estabelecemos com a vida. Mas qual objetivo é esse?
O parágrafo seguinte diz que, "a permanência e ampliação dos problemas que afetam todos os ambientes da vida social exigem um tratamento com base nas premissas próprias da ética"15. Mas que premissas são essas?
Segue a clássica questão de "como trabalhar com os alunos comportamentos preconceituosos, como o racismo, o machismo, o desrespeito às diferenças de religiosidade ou sexualidade - todos eles manifestados na própria escola e que, não raro, induzem às praticas de violência ou rejeição?"16.
Para pensar como trabalhar com os alunos a irracionalidade de comportamentos discriminatórios em nossa vida diária, temos primeiramente que incluir o especismo que foi excluído não só dos citados acima, mas também de todas as referências feitas a atos discriminatórios em todos os Cadernos do Professor. Não acredito que os autores desse Caderno tenham deixado o especismo de fora propositadamente, acredito que tal descaso com o pior dos preconceitos até hoje já desenvolvido é fruto da tradição moral antropocêntrica na qual esses autores estão imersos. O culto a Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, não lhes permite ver além da reflexão ética restrita que esses pensadores nos legaram.
Desenvolver um trabalho pedagógico com o fim de abolir todas as formas discriminatórias de ação em nossas crianças e jovens é mais problemático e complexo do que muitos doutos de plantão imaginam. Como erradicar um preconceito na escola se em casa o aluno recebe-o a conta gotas dos pais? A estrutura do sistema escolar é elitista. Se não a superarmos, dado que é estimulada pelos docentes -, essa dicotomia entre os tais melhores e os piores em sala de aula: "Mário sabe tudo, esse é um exemplo de aluno", "Fernanda só tira nota 10, vocês deveriam seguir o exemplo dela", como substituí-las por outras formas de estímulo, que não a competitiva?
Todo ato discriminatório começa em casa, é impulsionado pelas mídias e legitimado na escola. Pais, formadores de opinião e professores são esquizofrênicos morais17: são capazes de pedagogicamente vociferarem contra uma atitude preconceituosa no exato momento da prática de outra, exemplo: no momento do jantar em família - assistindo televisão, é claro -, o pai concorda com a matéria no telejornal que condena uma ação de tortura e assassinato de uma jovem, mas seu prato é composto de um pedaço de um ser que foi torturado e assassinado para o alimentar. Um outro exemplo seria: um professor de Biologia que inicia sua aula condenando a atitude da Medicina nazista que utilizava seres humanos como cobaias para experimentos, e minutos depois faz apologia aos "avanços" científicos oriundos da experimentação animal não-humana. Uma boa parte da violência praticada pelos jovens é devida à esquizofrenia moral que os pais e professores, seus formadores diretos, sofrem.
Para concluir essa leitura da orientação sobre os conteúdos do 1º bimestre da 2ª série, um outro parágrafo chama a atenção:
"O princípio inicial da ética é a compreensão do sujeito ético, quando o individuo se reconhece como um ser capaz de agir de forma ética. É esse o primeiro problema a ser trabalhado neste caderno: se o aluno for capaz de se perceber como um ser fundamentalmente pensante, conseguir se reconhecer também como um ser capaz de fazer o que é eticamente necessário e recomendável.
Para tanto, começaremos com uma discussão a respeito do cogito cartesiano, passando depois para o tratamento da diferença entre moral e ética. A partir disso, será trabalhado o tema da liberdade e seus limites, seguido de discussões sobre autonomia, a forma legisladora do indivíduo livre."18
Se o aluno "for capaz de perceber"? Se o aluno "conseguir se reconhecer"? O que isso quer dizer?
Todo aluno tem certeza (absoluta) de que é um ser pensante, mesmo não sabendo o que é pensar. Também está convicto de que suas ações são corretas do ponto de vista ético, mesmo não sabendo o que é ética ou filosofia moral. Para confirmar a certeza ou achismo do aluno sobre seu estado de ser pensante e de agente moral, o caderno parte do cogito cartesiano, ou seja, já começamos partindo de um erro lógico - que o filólogo Nietzsche não me deixe mentir. Do erro cartesiano será feito a distinção entre moral e ética. Na sequência temos a liberdade e seus limites e a autonomia kantiana. Liberdade e autonomia são os conceitos mais reutilizados dentro de uma escola estadual paulistana. Toda vez que pego um texto de filosofia no ensino médio que tem como referência a ideia de liberdade e autonomia, me lembro do que uma aluna me disse em sala de aula a pouco mais de um ano: "o único momento que temos um pouco de liberdade é quando tomamos nosso banho de sol, professor". Das 7h às 9h30 ficam nas celas (salas) onde os corpos e as mentes são domesticados, das 9h30 às 9h50 é o banho de sol (intervalo/recreio) e das 9h50 às 12h20 voltam a cumprir suas penas sob a vigilância policial (professores). Os carcereiros (inspetores de alunos) geralmente cumprem bem seu papel de contenção das possíveis fugas, sob o olhar atento da direção da penitenciária (escola).

Situação de aprendizagem 1 - O eu racional

Segundo o Caderno, o cogito cartesiano ajudará o aluno na constituição de si como "sujeito ético", existência ética somente possível após a constatação de que é um ser pensante. Bom, o uso do cogito ergo sum como fundamento para provar sua existência demonstra a princípio a falta de conhecimento lógico dos autores desse caderno, provavelmente pela cegueira no culto à imagem dessa divindade francesa.
Na obra, A Condição Humana, a pensadora política Hannah Arendt faz a seguinte observação: "cogito ergo sum contém um erro de lógica; que como observou Nietzsche, dever-se-ia dizer cogito ergo cogitationes sunt: e que, portanto, a percepção mental expressa no cogito não prova que eu existo, mas somente que a consciência existe"19.
Levar o aluno à constatação de que ele é uma res cogitans e, que é a partir dessa compreensão como um ser que pensa, que ele iniciará uma reflexão ética sobre suas ações, não permitirá pura e simplesmente que esse jovem consiga romper a barreira especista que separa cartesianamente os possuidores de uma "alma imortal" dos "autômatos".
O aluno da 2ª série do ensino médio, ao qual esse Caderno é direcionado, nasceu numa tradição antropocêntrico/especista, em boa parte, graças a Descartes, que tão forte influência exerce sobre a filosofia, as ciências e o cristianismo. Dizer que a filosofia cartesiana ajudará o aluno na sua formação como sujeito ético é a mais clara demonstração de que se depender da filosofia ensinada nas escolas públicas do Estado de São Paulo o círculo da moralidade não vai se expandir. O que os autores desse material governamental não conseguem ver é que entrar no campo da ética através do cogito é deixar no mundo das res extensa uma boa parcela dos humanos (seu foco de preocupação moral) e não só os ‘brutos'.

Situação de aprendizagem 2 - Introdução à Ética

Nessa situação de aprendizagem o que se pontua é levar o aluno ao exercício diário da reflexão ética nas mais diversas situações de sua existência individual e coletiva. Em três aulas de "50 minutos" o professor deve transmitir expositivamente os seguintes conteúdos ou temas: ética, moral, critérios éticos, Sócrates, Aristóteles, virtude, Epicuro, Hedonismo.
Por que a surpresa? Você acha que isso não é possível? Para a Secretária da Educação, é. Três aulas, oito temas. Ao professor cabe o milagre da multiplicação do tempo, do seu conhecimento mínimo em enciclopédia; isso sem contar o estado espiritual dos alunos que irão ‘receber' esses temas fundamentais para que ao término do seu ano letivo tenham dentre suas competências e habilidades a capacidade de intervir solidariamente em seu meio, respeitando os valores humanos'.
Para iniciar os alunos no campo da reflexão ética o Caderno propõe começar pela diferença entre moral e ética. Eis a distinção feita pelo Caderno:
"para começar, é possível lembrar que a moral define o que é bom e o que é mau, antes das ações, e que a ética define o que é bom e o que é mau segundo as circunstâncias. Ambas seguem princípios de ação. Os princípios da moral são ideias, ou seja, objetivos a ser alcançados. Os princípios da ética são reflexivos, norteiam a reflexão na hora em que precisamos agir".20
Na página seguinte, em um quadro de comparação temos:
Moral: "é o que já foi decidido: ela permite tudo, desde que não se desobedeça a princípios".21
Ética: "tudo depende: ela permite tudo, desde que não se faça mal a ninguém".22
Caro leitor, você quer mesmo que eu comente isso?
Primeiro, vou citar três autores contemporâneos de perspectivas filosóficas diferentes, mais que em um dado momento frisaram a distinção entre moral e ética.
Em "Ética na Alimentação: o fim da inocência", a eticista brasileira Sônia T. Felipe diz:
"Enquanto moral é o conjunto de ‘valores' preservados numa determinada cultura, podendo ser, portanto, relativa à uma cultura e não a outras, ética é a determinação de fundamentar a ação em bases não relativistas. O que é certo ou errado fazer, da perspectiva ética, não muda de cultura para cultura, de região para região, de classe para classe, sexo para sexo, religião para religião, a menos que circunstâncias prementes coloquem os humanos em condições tais que seus atos de sobrevivência não possam mais ser consideradas livres"23
Cortina e Martinez assim distingue:
"Chamamos de ‘moral' esse conjunto de princípios, normas e valores que cada geração transmite à geração seguinte na confiança de que se trata de um bom legado de orientações sobre o modo de se comportar para viver sua vida boa e justa. E chamamos de ‘ética' essa disciplina filosófica que constitui uma reflexão de segunda ordem sobre os problemas morais" 24
E o professor Adolfo Sánchez Vasquez apresenta sua leitura nos seguintes termos:
"não se podem confundir a ética e a moral. A ética não cria a moral. Conquanto seja certo que toda moral supõe determinados princípios, normas ou regras de comportamento, não é a ética que os estabelece numa determinada comunidade. A ética depara com um experiência histórico-social no terreno da moral, ou seja, como uma série de práticas morais já em vigor e, partindo delas, procura determinar a essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes da avaliação moral, a natureza e a função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos e o princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais (...) A ética não é a moral e portanto, não pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescrições; sua missão é explicar a moral efetiva e, neste sentido, pode influir na própria moral."25
Na distinção feita na página 19, do Caderno do Professor, os autores do material "pedagógico" dizem que os princípios da ética "norteiam a reflexão na hora em que precisamos agir". No entanto, só para não perder o costume de afirmar aqui e negar ali, três parágrafos após tal afirmação, temos: "Para desenvolver a reflexão ética, temos de conhecer e aplicar critérios de escolha, que são uma espécie de regras do pensamento ético. Os critérios não dependem do que as pessoas acham na hora que têm de decidir sobre o que fazer em determinada situação."26
Como os autores, de correntes filosóficas diferentes, aos quais recorri, deixam bem claro, há uma distinção entre moral e ética que não aceita o "ela permite tudo" e o "tudo depende". Como introduzir os alunos no campo de reflexão ética, tendo sua definição como, "tudo depende: ela permite tudo, desde que não se faça mal a ninguém" (ninguém da espécie humana)? Se permite tudo, já autorizou o mal!
Para dar continuidade a essa pretensa introdução à Ética proposta pela Secretaria da Educação, os autores do Caderno do Professor recorrem à Ética racionalista socrática (dois curtos parágrafos), à ética sexista, especista, racista e elitista aristotélica (duas páginas) e a epicurista (dois parágrafos e algumas máximas).
Aristóteles será a grande referência dessa situação de aprendizagem. O Caderno se fundamenta na hierarquia psicobiológica das almas; apresentando um quadro comparativo das funções das partes da alma: vegetativa, sensitiva e intelectiva. Obviamente esta última, a função racional, somente possível à espécie humana (aristotelicamente falando). Esta afirmação bem clara no Caderno mostra a deprimente falta de capacidade reflexiva dos formuladores desse material. Somente alguém que não quer ver, eticamente falando, poderia afirmar ainda hoje, e não só afirmar, mas continuar a propor um ensino de ética em cima desse critério psicobiológico aristotélico, apologista da racionalidade e do pensamento como exclusivos dos humanos. A miopia intelectual, parece não deixar os formuladores desse Caderno perceberem que estruturar a comunidade moral na posse da razão exclui boa parcela da própria espécie humana. Como defender isso hoje?
Vejamos o seguinte trecho:
"Qual é a felicidade de uma planta? Luz solar e água, por exemplo. Qual é a felicidade de um animal? Não sentir fome e poder viver em liberdade. E, por fim: Qual é a felicidade do homem? Desenvolver aquilo que tem de diferente em relação a todos os outros seres - a racionalidade. Para Aristóteles, a alma humana tem três partes: a alma vegetativa, com necessidades biológicas como as plantas; a alma sensitiva, com necessidades de sensações e movimento dos animais, e a alma intelectiva, com a necessidade de usar o pensamento".27
Partindo desse trecho síntese do pensamento aristotélico poderíamos pensar: por que não fazemos de fato uso do pensamento, da racionalidade, esse componente da alma intelectiva, que, segundo o Caderno - herdeiro do estagirita -, nos diferencia dos não-humanos para avaliar que o desejo, o interesse dos animais acima descritos é não ser privado de nutrientes para seu desenvolvimento e da vida livre para concretização de seu fim último, a felicidade. Se o telos eudaimônico do animal não-humano é viver livremente, que também é o nosso, por que os tratamos como despossuídos do desejo e interesse em ter esse fim realizado? Levar a sério o princípio da igual consideração de interesses semelhantes faz-se necessário.
Faço aqui uma pequena digressão para apontar o caráter sexista desse trecho aristotélico do caderno. "Qual é a felicidade do homem?" Estará o professor adepto desse material governamental atento ao apresentar essas funções das partes da alma para os alunos, que essa visão sexista é inaceitável, e que no lugar de homem o correto é ser humano.
Ao estabelecer num Caderno direcionado a alunos do ensino médio uma proposta de estudo de ética tendo como referência a ética aristotélica continuamos no inaceitável círculo moral fechado, padrão no qual há milênios somos formatados. Os autores desse Caderno governamental por estarem tão imersos na soberba supremacia humana há tanto propagada, não conseguem ver o limite da filosofia moral tradicional. A ética aristotélica se fundamenta na racionalidade, na posse plena da razão, sem ela nada é digno de consideração moral. A questão aqui é: todos os humanos estão de posse plena da razão? Não só as plantas e os animais não-humanos estão excluídos da comunidade moral aristotélica (cartesiana e kantiana também), mas também um número considerável de membros da espécie humana. É esse padrão moral fechado, discriminatório e contraditório (pois, fere as exigências de universalidade e imparcialidade como critérios racionalmente válidos) que queremos passar para nossos alunos?
Enquanto continuarmos a reproduzir essa filosofia do descaso como fundamental, indispensável e única, nossos alunos nunca serão capazes de uma reflexão que ultrapasse a constatação de sua capacidade racional como base de sua agência moral e perceba a vulnerabilidade como uma marca da paciência moral. Vulnerabilidade que nós, humanos, compartilhamos com os animais não-humanos e ecossistemas do início da nossa existência ao nosso perecer.

Situação de Aprendizagem 3 - A Liberdade

Neste tópico, o Caderno inicia com a seguinte interpelação:
"Inicialmente, você pode lembrar aos alunos que a construção de um mundo melhor necessita do uso da razão, o que nos leva a perguntar: o que impede a solidariedade, o que impede o respeito generalizado no interior da humanidade?"28
Pensando em termos sartrianos (já que é ao Existencialismo é Um Humanismo que o Caderno recorre para elaborar essa situação de aprendizagem), o que impede é a má-fé. Conceito também aplicado ao próximo parágrafo do Caderno que versa sobre a ideia religiosa de destino e determinismo. Todo o século XX foi marcado pelo estrago do "uso da razão" que em nada contribuiu para um mundo melhor. Em um mundo racionalista, o espaço para solidariedade e respeito é bem restrito. Ter a vontade como uma decisão fundamentada na razão não nos garante o exercício da liberdade.
Seria interessante, se não fosse demagógico, um Caderno de Filosofia para o ensino médio fundamentar-se no conceito de liberdade do pensador francês Jean-Paul Sartre para analisar "a construção de um mundo melhor", "a solidariedade", "o respeito" e "destino e determinismo".
Como frisei em outros momentos, como um professor de filosofia pode levar um aluno à reflexão sobre um tema que nem ele refletiu? Ler uma obra, repetir seus principais tópicos é uma coisa. Ler, refletir, discutir com o autor e aplicar a ideia é outra. A primeira atitude todos os docentes fazem, repetir frases feitas. A segunda exige tempo, dedicação e capacidade de criticar e autocriticar, ação não muito comum entre os docentes do ensino médio.
A liberdade sartriana vai na contramão do conformismo, da respeitabilidade da ordem estabelecida, da tradição e dos valores dados, situações muito exaltadas na escola pública atual.
"Nós escolhemos um projeto para nós mesmos, o que Sartre chama de compromisso. Nós nos comprometemos com nossos valores, gostos, sonhos, desejos e projetos. Sobre o que somos e o que seremos, nós decidimos. A razão disso tudo é a liberdade que nos permite tornar um tipo de pessoa, voltar atrás ou mudar para outra direção."29
O que seria para um professor de nível médio, comprometer-se ‘com nossos valores, gostos, sonhos, desejos e projetos'?
O ato de aceitar esse Caderno governamental passivamente como a maioria aceitou é comprometer-se com a má-fé. É fugir da responsabilidade de projetar-se. Comprometer-se com os valores dados, com os projetos da Secretaria da Educação, com os desejos do corpo burocrático da escola é covardia.
É essa má-fé e covardia dos docentes de filosofia que impede a expansão do círculo moral, impossibilitando consequentemente a libertação humana e não-humana.
Indiscutivelmente somos e seremos o que decidimos ser. Mas, e quanto à assumir a responsabilidade pelo que escolhemos ser? Se meu aluno disser que não vai usar esse Caderno, eu como professor respeitarei sua opção, sua escolha, livre ou autoritariamente (fazendo jus ao aparelho ideológico do Estado ao qual sou vinculado), imporei sobre ele o uso do caderno?
Toda essa discussão sobre liberdade e, principalmente, liberdade em Sartre, que é politicamente engajada, foge totalmente da realidade vivida por professores e alunos nas escolas. O professor tem, sim, liberdade para escolher o sim ou o não na sua prática docente. Mas, aos alunos, só lhes é permitido escolher o que é estabelecido de cima para baixo. Qualquer ato de fuga do estabelecido é visto como ato de rebeldia e severamente punido.
Quantos professores do Estado de São Paulo leram essa conferência sartriana proferida dois anos após a publicação de sua principal obra filosófica, onde está desenvolvida sua tese sobre a liberdade? É perversidade perguntar quantos leram L' être et el neánt?
O professor escolheu seguir esse Caderno, comprometeu-se com o que foi estabelecido. Mas, e o aluno de 15 anos, pode escolher não utiliza-lo? Pode escolher não participar dessas aulas de ‘filosofia'? Não, ele não pode optar por um caminho não estabelecido. A única escolha que cabe ao aluno fazer dentro desse padrão é assumir a responsabilidade por uma nota vermelha tirada em uma avaliação imposta sobre o ato de ser livre.
"O aluno é livre, livre para fazer o que eu quero, porque na sala de aula quem manda sou eu" (discurso docente comumente aceito). É essa autoridade quietista em sala de aula (e na vida extra escolar) que irá introduzir os alunos no pensamento engajado de Jean-Paul Sartre?

Situação de aprendizagem 4 - autonomia

Para fechar o caderno do 2º ano, seus autores propõem o conceito de autonomia kantiana. Da ética aristotélica, cogito cartesiano e autonomia kantiana, só faltou ter o livre arbítrio tomista, no lugar da liberdade sartriana, para o círculo dos grandes mestres da filosofia moral tradicional especista ficar completo.
Não poderíamos esperar mais de um documento governamental do que a reprodução de uma tradição ideologicamente perfeita para a manutenção do status quo. É isso que precisamos ensinar (reproduzir) aos nossos alunos: somos pensantes, éticos, livres e autônomos.
Nossa! Como são pesadas essas palavras.
Normas da vida - deve-se passar para os adolescentes que em todos os lugares têm normas, regras. Na família, na escola, na sociedade como um todo, ou seja, deve-se ensinar a respeitar as regras de conveniência dentro da comunidade humana (os iguais). Como bem disse a professora Sônia T. Felipe "... o reino dos fins. Sem autonomia não há moralidade nem, tampouco, humanidade"30.
Vejamos a seguinte passagem dessa situação de aprendizagem,
"... Há regras dentro de nós mesmos, criadas pelas nossas necessidades e pelos nossos desejos. Temos necessidade de comer, beber, dormir, se divertir, passear, conhecer coisas novas, etc. Os desejos, em geral, partem das nossas necessidades, mas podem extrapolá-lo, criando necessidades que nem sempre são boas. Por exemplo, temos necessidade de ter um calçado que não faça mal à saúde dos pés e das costas, mas há quem gaste todo o dinheiro do mês em um tênis de marca".31
Dentro da comunidade dos iguais temos a necessidade de comer os não-iguais, por uma questão obvia para a filosofia moral tradicional; não são iguais a nós, são desprovidos de razão, linguagem, vontade, liberdade e consciência.
Dentro da comunidade dos iguais temos a necessidade de beber secreção extraída das mamas de fêmeas de outras espécies. Elas não são iguais às fêmeas da comunidade a qual pertenço, comunidade que há pelo menos cem anos atrás também não aceitava a fêmea de sua espécie como igual.
Dentro da comunidade dos iguais temos a necessidade de dormir com roupas confortáveis feitas de pêlos e peles dos não-iguais.
Dentro da comunidade dos iguais temos a necessidade de nos divertir em circos, rodeios, touradas, rinhas, parques aquáticos cujos "atores" principais são os não-iguais.
Dentro da comunidade dos iguais temos a necessidade de passear (em família, de preferência) em zoológicos, pois é o lugar onde preservamos os não-iguais.
E dentro da comunidade dos iguais temos a necessidade de conhecer coisas novas oriundas do seqüestro, confinamento e assassinato daqueles não-iguais chamados exóticos.
Que nosso aluno tenha conhecimento de que nossos desejos podem criar "necessidades que nem sempre são boas", como, gastar "todo o dinheiro do mês em um tênis de marca", atitudes que não obedecem àquela característica que nos distingue dos não-iguais: a razão. A razão nos manda ter um calçado "que não faça mal à saúde dos pés e das costas", independentemente da marca.
E como todos já sabem - mas o professor de filosofia não perderá a oportunidade de reforçar - nada melhor para a "saúde dos pés e das costas" do que um calçado feito da carcaça de um não-igual. Caso apareça algumas dores advindas do mau uso ou da má qualidade do produto, uma boa relaxada num sofá de couro (de um não-igual é lógico) acompanhado de uns dois travesseiros feitos de penas e plumas ( de alguns não-iguais), deve resolver o problema.
No parágrafo seguinte do Caderno, temos:
"Quando obedecemos apenas as leis ou as normas que procedem dos desejos ou da necessidade, vivemos na heteronomia (hetero: de fora; nomia: norma), quando as normas são produzidas em lugares diferentes da nossa razão, e é justamente a razão que tem a capacidade de produzir normas que nos permitem viver nossa liberdade."32
Em resposta a essa passagem, nada mais apropriado que a coerente leitura da eticista Sonia T. Felipe: "Nesse sentido, ao definir que, por ser dotado de razão e vontade livre, necessita um espaço para agir sem ser constrangido por interesses, necessidades, ou por quaisquer outros poderes heterônomos (móbiles) à sua vontade, o sujeito moral"33 [nesse momento, o professor de filosofia munido desse Caderno], "acaba por afirmar que somente a posse da razão, a liberdade e a vontade, associadas, tornam um ser vivo digno de consideração moral. O círculo se fecha. Seres autoproclamadores de sua racionalidade, liberdade e autonomia definem apenas a comunidade de seus pares como dignos do dever de consideração e respeito."34
A conclusão, a lição que fica para os alunos é que "para além dessa linha divisória, ficam todos os demais seres vivos, destituídos por vezes de razão, por outras, de vontade autônoma. Os não-iguais não são dignos de consideração moral"35. Nessa perspectiva ensina-se aos jovens a desnecessidade de respeitar o outro que "lhe aparece numa configuração não semelhante".
Façamos uma última citação dessa situação de aprendizagem cuja posse plena da razão é a base sem a qual não há autonomia: "Quando a razão cria normas pensando a partir de nós mesmos, em nossas necessidades, desejos e todos os seus limites chamamos a isso de autonomia, que é a capacidade de criar e obedecer as regras que inventamos para nós mesmos"36.
Como um professor de filosofia pode ensinar para seu aluno que ser autônomo é ter a capacidade racional de criar e obedecer às regras que inventamos para nós mesmos, sabendo que boa parte de seus iguais durante longos períodos de suas vidas são desprovidos de racionalidade, do uso de linguagem a ela associada consequentemente incapazes de atitudes estabelecidas por sua própria vontade?
O conceito de autonomia kantiano (assim como os cartesianos e aristotélicos citados nesse Caderno) é extremamente excludente e discriminatório. Infelizmente, os jovens alunos da rede estadual do ensino de São Paulo continuarão submetidos a um ensino que os coisifica ao coisificar aqueles que foram deixados de fora da comunidade dos iguais por não possuírem uma configuração semelhante aos dotados de razão, linguagem e consciência.
Os autores desse Caderno perderam, perdem e devido à miopia intelectual e crônica esquizofrenia moral, vão continuar perdendo a oportunidade de propor um ensino que redefina a comunidade moral humana, formando jovens realmente éticos, livres e autônomos.

3ª série do ensino médio

Na orientação sobre os conteúdos do bimestre, encontramos a seguinte descrição objetiva do Caderno:
"Na 3ª série do ensino médio, a disciplina filosofia preservará seu compromisso com a formação para a cidadania já trabalhada nas séries anteriores. Dois temas são centrais nos cadernos da 3ª série: o homem e as características que o tornam potencialmente capaz de construir uma convivência solidária no planeta terra e o discurso filosófico. Consideramos esses termos de grande relevância para compor a formação dos jovens no ensino médio. Esses jovens encontram-se em fase de definições cruciais para a sua vida - definições de natureza afetiva, profissional e existencial em geral, incluindo-se aí dilemas políticos, éticos e estéticos. A reflexão de natureza filosófica pode ser fértil para contextualizar e desvendar pistas para o encaminhamento desses dilemas. Pensar o homem por meio do discurso filosófico, eis o compromisso que propomos para estas aulas de filosofia.
Neste bimestre, será retomada a discussão sobre a filosofia propriamente dita com o objetivo de provocar a reflexão sobre preconceitos em torno desta disciplina e do próprio ato de filosofar. Essa retomada tem, ainda, a intenção de delimitar o campo a partir do qual será tratado o tema central do caderno: o homem. Após a retomada da questão. "O que é filosofia?", serão abordadas duas características fundamentais do ser humano, a saber, sua condição de animal entre os demais seres da natureza e sua capacidade de criar linguagem".37
Como não poderia deixar de ser, temos o mais-do-mesmo de todo manual de introdução à filosofia. O que é? Para que serve? Já que as pessoas a vêem como inútil.
Sobre o compromisso da filosofia com a formação para a cidadania, de onde veio essa ideia? Sabemos que todos os documentos governamentais repetem esse discurso de formar para cidadania. Mas que cidadania? Esse discurso burguês (já desvelado por Marx, Nietzsche, Frankfurtianos e outros) é reproduzido cotidianamente pelos filosofantes paulistanos como o máximo dos objetivos a alcançar.
E o tema central do caderno será o homem. Mas na Proposta Curricular, nos Cadernos da 1ª e 2ª série, o tema era o que senão o homem? O que é mais digno de consideração, senão o homem?
O compromisso para as aulas de filosofia é pensar o homem e não o ser humano. Como vimos no caderno de 2ª série, sob a influência do estagirita, o homem aqui citado como fonte de inspiração para o pensar filosófico é o portador do sistema reprodutor masculino. Ou seja, as alunas do Ensino Médio continuarão estudando a história dos homens.

Situação de aprendizagem 1 - o preconceito em relação à filosofia

Não me deterei muito nessa 1ª situação de aprendizagem por ser uma revisão do que já foi exposto no caderno da 1ª série. Mas uma citação exige um comentário, é a definição de filosofia: "uma reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas"38.
Nada está mais longe dessa definição de filosofia do que os capítulos (temas) apresentados até agora nos Cadernos e os três que faltam para concluir o da 3ª série. Na situação de aprendizagem 2 - filosofia; no segundo objetivo veremos que os autores levaram a seguinte passagem de Gramsci a sério: "não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos (variando literariamente a sua forma): a repetição é o meio didático mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular".39 Em todos os Cadernos, temos repetido o discurso filosófico tradicional antropocêntrico. Seja cronologicamente ou não, seja pelo racionalismo, contratualismo ou idealismo, o homem é sempre a medida de todas as coisas. Deve-se repetir os argumentos antropocêntricos variando literariamente a sua forma para que a suposta supremacia humana sobre os não-humanos fique gravada na mentalidade popular. Este é o objetivo do Caderno de Filosofia da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Situação de aprendizagem 2 - filosofia: definição e importância para o exercício da cidadania

O 1ª objetivo dessa situação será defender a tese de que a filosofia não é um exercício exclusivo de meia dúzia de intelectuais de gênios e sim de todos os humanos, no sentido gramsciano.
"...todos somos filósofos, pois todos somos capazes de refletir, pensar e conhecer com algum grau de logicidade e sistematização [...] o desafio é despertar nos alunos a consciência dessa sua potencialidade e da importância de que seja desenvolvida, atualizada, mostrando-lhes que esse desenvolvimento é essencial para sua formação como cidadãos críticos e conscientes de sua condição de sujeitos da história e que o estudo da filosofia na escola pode ajuda-los a atingir esse objetivo. Daí a importância de que sejam motivados a se dedicar a ele com afinco"40
A 1ª questão que surge é ao definir filósofo aquele é que capaz de refletir, pensar e conhecer com algum grau de logicidade. Tal critério deixaria uma boa parcela da população fora desse grupo seleto de amantes do saber. Se pensarmos no sentido latino do termo refletir, teremos que reconhecer que não são todas as pessoas humanas que praticam esse exercício. Além do que, teremos que incluir alguns animais não-humanos no grupo dos filósofos, pois muitas espécies têm a faculdade de pensar e conhecer muito bem seu ambiente natural avaliando e elaborando estratégias concretas para lidar com os objetos e outros animais que ali coabitam.
Nietzsche disse certa vez que "o homem é sempre mais macaco que qualquer macaco"41. Seria um absurdo afirmar que pelo menos alguns não-humanos são filósofos? Acredito que não. Já que "a filosofia está presente na linguagem que utilizamos, mesmo que não tenhamos consciência disso"42, por que ela não pode estar nas múltiplas linguagens não-verbais dos animais não-humanos? O Caderno diz que,
"...toda atividade humana, mesmo aquelas que são predominantemente práticas (as diversas formas de trabalho manual, por exemplo), é sempre acompanhada de um pensar, de um saber, em suma, de um trabalho intelectual, racional, reflexivo. É nesse sentido que podemos afirmar que ‘todos os homens são filósofos'"43.
Por isso, insisto que nesse sentido, várias espécies exercem conjuntamente aos seus afazeres práticos, um bom exercício intelectual. Proponho mudar a máxima gramsciana para: todos os seres sencientes são filósofos.
A 2ª questão é: como o estudo da filosofia na escola pode ajudar o jovem a atingir o objetivo de desenvolver sua potencialidade à reflexão e ao pensamento crítico, condições, segundo este Caderno, essenciais para o exercício da cidadania? A resposta dada pelo Caderno é: dedicar-se ao estudo da filosofia com afinco. Precisamos avisar os professores de filosofia do Estado que eles não são cidadãos. Por quê? Como por quê? Você acredita que eles se dedicam à filosofia com afinco?
A filosofia passada na escola, em especial a proposta por esse Caderno não é capaz de transformar o aluno em um cidadão crítico e consciente; pelo simples fato de que jogar no colo de um adolescente um número considerável de temas pensados por filósofos de épocas e correntes filosóficas diferentes é não só anti-filosófico, como um crime contra a mente desse aluno que não tem hábito de leitura - principalmente o nível de leitura que a filosofia exige.
Como uma pessoa que se intitula professor de filosofia pode pensar que é possível a um adolescente assimilar em quatro aulas de "50 minutos", os conceitos de razão, subjetividade e cogito em Descartes e nas três aulas seguintes o aluno deve aprender o que é ética moral, critérios éticos, ética socrática, ética da virtude e as divisões da alma aristotélica e o hedonismo epicurista?
É impressionante a capacidade que esses manuais de filosofia têm para o devaneio. Depois, os autores, como os desse Caderno, têm a coragem de dizer que os preconceitos com a filosofia são infundados.
Que possibilidade real os alunos da 3ª série do ensino médio tem para desenvolver uma "reflexão crítica dos conhecimentos e das ações" tendo contato com a matéria uma vez por semana durante ‘50 minutos'? E os professores são capazes de desenvolver o pensamento crítico, fazendo o que fazem de melhor: reproduzir frase feita? Entre apresentar a vida e obra de filósofos e levar suas teorias às últimas consequências mudando literalmente a vida espiritual dos alunos e de si mesmo, há um abismo.
"A experiência nos ensina infelizmente o que ela tem de melhor - ou de pior: ela diz que nada se opõe mais à produção e a perpetuação dos que são grandes filósofos por natureza, do que os maus filósofos pela graça dos Estado"44 .
O Caderno pede um exercício para ser realizado em casa pelos alunos; uma análise do caminho percorrido pela consciência do operário do poema de Vinícius de Moraes, O Operário em Construção. O que chama a atenção nessa atividade que a distingue das realizadas em classe é que "agora deverá ser feito pelos alunos com relativa autonomia". Como ‘relativa autonomia'? E a tal autonomia kantiana da situação de aprendizagem do Caderno da 2ª série? Onde fica a Resposta à pergunta: que é ‘esclarecimento'?
Claro está que em sala de aula o aluno não tem autonomia. E a relativa que terá em casa será outorgada pelos déspotas.
Se, para Gramsci, ‘todos os homens são filósofos', para mim há controvérsias, principalmente pensando nos professores de filosofia da rede pública de São Paulo. Estão tão mergulhados em sua menoridade que se tornam incapazes de ousarem "fazer uso de seu próprio entendimento"; porque o entendimento que tem não lhes pertence, os ‘universais abstratos' não são ideias suas por mais que acreditem que sim. Pensando em termos gramscianos, os professores de filosofia utilizadores passivos desses Cadernos seriam filósofos especialistas, diferentes do filósofo não-especialista que compõe o povo, já que,
"o filósofo especialista: pensa, reflete, raciocina observando mais cuidadosamente as regras da lógica e os procedimentos metodológicos que utiliza; conhece a história do pensamento, isto é, a história da filosofia; é capaz de analisar os problemas de seu tempo à luz da contribuição dos filósofos do passado que já se debruçaram sobre eles"45
E essa, em tese, deveria ser a característica de um professor de filosofia. É? São capazes de analisar os problemas de seu tempo à luz da contribuição dos filósofos do passado que já se debruçaram sobre eles? Se sua resposta é sim, então me explique porque o problema ético atualíssimo do uso de animais não-humanos para todos os fins fúteis, mas lucrativos, não são analisados? Por que o descaso com o seqüestro, confinamento, tortura e assassinato do não-semelhante? Professor de filosofia que se apega à tradição de modo cego está longe de cumprir com as características acima citadas e muito mais longe de ser um verdadeiro amante da sabedoria, pelo contrário, não passa de um mercenário.
O 2º objetivo dessa situação será reforçar a definição da filosofia como amor à sabedoria e não à opinião.
O aluno acabou de sair de algumas aulas onde todos são filósofos e, agora tem novamente uma aula sobre o significado etimológico da palavra filosofia e sua origem mitológica no Banquete platônico. O que interessa para um grupo de jovens de 16 anos a gênese mítica da filosofia segundo Platão? Formaremos esses jovens para cidadania ensinando-lhe que filo é amor e, sofia é sabedoria? O que isso altera no seu cotidiano social, político-econômico? A juventude vive o aqui e o agora, de nada vale Demócrito, Aristóteles, Leibniz, Kant etc, se suas teorias não forem aplicadas hoje. O que esse caderno traz não passa de informação histórica.
Ao propor a questão ‘o que é, afinal, a filosofia?, para os alunos e, recebermos como resposta: filo = amor e sofia = sabedoria, temos a mais clara demonstração da incompetência filosófica estadual. Isso é fazer filosofia? Algum professor de filosofia teria coragem de defender que gastar uma ou duas aulas com a etimologia da palavra levará os alunos à reflexão, à criticidade? Pouco importa a definição etimológica da filosofia. Precisamos de um ensino filosófico que cumpra realmente sua função que é mostrar as falhas e falácias da ordem vigente, questionar o acordar e o dormir desse aluno, seus hábitos e costumes.
Precisamos de um ensino filosófico que questione a si mesmo, que seja abertamente opositor à inércia do status quo. Status quo que é a espinha dorsal desse material governamental.
Precisamos de um ensino filosófico que derrube as ideias dominantes, os valores impostos e a vida cotidiana irrefletida.
Precisamos de um ensino filosófico ‘intempestivo', dialético, descontraído, criativo que questione de fato o habitual, o óbvio. Não há nada mais importante para a filosofia crítica que o duvidar do óbvio.
Precisamos de um ensino filosófico que não seja do descaso, que seja revisor, dialógico e estimulador de novas formas de ver o mundo, estimulador de novos valores em oposição aos estabelecidos e petrificados.
Mas e a questão, ‘o que é filosofia'? Bom, o que ela, é não sei. O que sei é que se levarmos a sério sua natureza crítica, questionadora e o que ela nos ensina nessa linha, nunca aceitaremos a condição de servos voluntários de um sistema econômico - muito bem representado pelo sistema educacional - insano, injusto, antiético e biocida.
O 3º e último objetivo dessa situação de aprendizagem é passar para os alunos a noção de filosofia como reflexão.
Para realizar tal tarefa, os autores do Caderno se fundamentam no texto, "a filosofia na formação do educador", do professor Dermeval Saviani. É nesse texto que o professor Saviani apresenta a tese de que para que uma reflexão possa ser adjetivada de filosófica, ela precisa seguir as seguintes exigências, ser:
"Radical: em primeiro lugar, exige-se que o problema seja colocado em termos radicais, entendida a palavra radical no seu sentido mais próprio e imediato. Quer dizer, é preciso que se vá até as raízes da questão, até seus fundamentos. Em outras palavras, exige-se que se opere uma reflexão em profundidade.
Rigorosa: em segundo lugar e como que para garantir a primeira exigência, deve-se proceder com rigor, ou seja, sistematicamente, segundo métodos determinados e colocando-se em questão as conclusões da sabedoria popular e as generalizações apressadas que a ciência pode ensejar.
De conjunto: em terceiro lugar, o problema não pode ser examinado de modo parcial, mas numa perspectiva de conjunto, relacionando-se o aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido. É neste ponto que a filosofia se distingue da ciência de um modo mais marcante. Com efeito, ao contrário da ciência, a filosofia não tem objeto determinado, ela dirige-se a qualquer aspecto da realidade, desde que seja problemática, seu campo de ação é o problema, esteja onde estiver..."46
Até o momento que escrevo esse texto, nenhum professor de filosofia do Estado de São Paulo que tenho contato ou não, apresentou uma análise crítica, rigorosa e de conjunto sobre esse Caderno. Como vou ‘ensinar' aos alunos a proceder de maneira reflexiva, fazendo uso da radicalidade, do rigor e da globalidade, se nem o material didático que recebo para trabalhar, submeto-o a tal exercício?
Vamos ser radicais:
Qual o objetivo verdadeiro desse caderno? É uma atitude filosófica, todos os docentes de filosofia usar o mesmo texto, os mesmos temas, os mesmos métodos em todo o Estado? Se o estudo da filosofia é fundamental para o exercício da cidadania, sem a filosofia não temos um cidadão pleno? E que tal ir às raízes da questão da naturalização do seqüestro, confinamento, tortura e assassinado de seres sencientes não-humanos? Se o direito a ter sua integridade física e psíquica respeitada advém da posse plena e uso da linguagem, consciência e pensamento e se nesse grupo incluímos os bebes, comatosos e senis, porque não incluímos os animais não-humanos?
Vamos ser rigorosos:
A sabedoria popular (os filósofos não-especialistas do Gramsci) da qual a maioria dos docentes da filosofia são herdeiros, transmite cotidianamente a coisificação do não-humano; por ter sido Deus que os fez assim, como coisas, produtos, itens de propriedade, etc. Onde está o rigor na análise desse costume do uso do não-humano como coisa pelo povo e, não menos pela burguesia? Onde está o proceder sistemático, rigoroso (crítico) sobre o uso pseudocientífico dos animais para pesquisas biomédicas, farmacológicas, bélicas, psicológicas, nutricionais, etc? Cadê o exame dos fundamentos das conclusões populares e científicas?
Vamos ser globalizantes:
Se os professores de filosofia do Estado de São Paulo submeterem os seus hábitos corriqueiros a uma reflexão rigorosamente radical, eles perceberiam que o copo de leite que tomam pela manhã, o pedaço de um cadáver que comem no almoço, por exemplo, é fruto da tortura, do assassinato de um ser senciente, portanto, um hábito injusto e nada ético; além da contribuição direta para o desmatamento de florestas inteiras, poluição de rios, lagos, lençóis freáticos, solo e atmosfera; sem deixar de considerar o malefício do consumo de alimentos de origem animal riquíssimos em medicamentos para sua própria saúde psicofísica.
Acertadamente não podemos dizer que uma pessoa humana que consome cadáveres, secreções mamárias e derivados de outras espécies tem uma saúde mental digna de nota. Filosoficamente, numa perspectiva de conjunto, eu não posso ficar apenas com o dado infundado da ciência nutricional e médica especista de que para obter proteínas a melhor fonte são as carnes; ômega 3 deve ser oriundo de peixes e cálcio de secreção mamária de outras espécies. Não há nada de inocente no nosso hábito alimentar,47 ele envolve a vida e a morte de humanos, não-humanos e ecossistemas.
Em suma, antes de educar os educandos deve-se educar os educadores. Insisto, como um professor de filosofia pode falar de radicalidade, rigor, criticidade, visão de conjunto, reflexão e dúvida, se ele não aplica essas bases, esses fundamentos filosóficos de leitura da realidade a si mesmo?
Reflexão = reflectere = voltar atrás, fazer retroceder. Afirmo que os menos capazes de uma reflexão filosófica, hoje, são "os filósofos pela graça do Estado". Infelizmente são esses que estão nas salas de aula perante milhares de jovens, reproduzindo informações biográficas dos manuais de História da Filosofia. Como docente de Filosofia sou perseguido pela máxima socrática que "uma vida irrefletida não vale a pena ser vivida", ela me leva à reflexão. Não vejo isso na quase totalidade dos docentes de filosofia.

Situação de aprendizagem 3 - A condição animal como ponto inicial no processo de compreensão sobre o Homem

"Esta situação de aprendizagem tem como objetivo dar início à reflexão sobre os seres humanos, destacando a importância de admitir sua condição de animal dotado de um corpo que o aproxima e o distingue dos demais seres do planeta. Admitir essa aproximação e essa distinção requer esforço típico da reflexão filosófica, indubitavelmente necessária para a formação ética e para a construção da convivência humana solidária. Afinal, uma das perguntas centrais de filosofia é exatamente: Quem somos nós? E ainda: Qual é a nossa condição de transformarmos o mundo em que vivemos em um lugar melhor?
Nessa situação de aprendizagem, começaremos por aquilo que o nosso olhar constata de imediato quando mira um ser humano e a si mesmo, ou seja, começaremos pela evidência de que temos um corpo. E esse corpo nos remete, antes de tudo ao lugar dos animais. As primeiras perguntas, em nossa reflexão filosófica, são: Que espécie de animal somos nós? O que nos caracteriza? O que nos marca como animais da espécie humana?"48
Para a realização do objetivo dessa situação de aprendizagem são indicados textos de Pascal e de Descartes. Mas para destacar a importância de admitir a condição animal do ser humano, não deveríamos recorrer a Charles Darwin? E por tabela a Desmond Morris, Donald R. Griffin, Frans de Waal, James Rachels (Created from animals), e alguns neurocientistas hodiernos?
Nesta situação de aprendizagem o fio condutor será a corpolatria antropocêntrica. Somos dotados de um corpo que nos aproxima e também nos distingue do restante do mundo animal. "Diferença ou singularidade?" perguntará a estudiosa Sônia T. Felipe49.
Quando o Caderno diz ‘um corpo que o aproxima" percebemos a herança hierárquica psicobiológica das almas aristotélicas, ou seja, o que aproxima nosso corpo do animal não-humano é a sensibilidade física, as sensações, a alma vegetativo-nutritiva.
Quando o Caderno diz "um corpo que... o distingue dos demais seres", remete à questão "Quem somos nós?", e é aqui onde a supremacia humana é filosófica, cientifica, jurídica e teologicamente apresentada. Encontramo-nos no cruel mundo da somatofobia.50
Quando as perguntas: "Quem somos nós?"; "Que espécie de animal somos nós?"; "O que nos caracteriza?"; "O que nos marca como animais da espécie humana?", são feitas por um Caderno especista, antropocêntrico, o que ele espera é uma resposta antropocêntrica e, não há resposta melhor do que essa passagem da obra de Keith Thomas, O Homem e o Mundo Natural:
[...] o Homem foi descrito como animal político (Aristóteles); animal que ri (Thomas Willis); animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin); animal religioso (Edmund Burke) e um animal que cozinha (James Boswell antecipando Lévi-strauss). Como observa o Sr. Cranium do Romancista Peacock, o Homem já foi definido como bípede implume, como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um bastão. O que todas essas definições têm em comum é que assumem uma polaridade entre as categorias "homem" e "animal" e que invariavelmente encaram o animal como inferior (...) alguns viam os animais como totalmente irracionais. Robert Lovell, em 1661, dividia o conjunto da criação animal em duas categorias, "racionais" e irracionais" situando só o Homem na primeira".51
Ter o Humano como o único ser racional é senso comum no ensino da filosofia do descaso. O problema é que a quase totalidade do pensamento filosófico ocidental trata com descaso a diferença de grau do humano para o animal não-humano. A filosofia do descaso nos legou a somatofobia, herdamos a visão dicotomizada de tudo. Vivemos em uma sociedade somatofóbica e, se depender das situações de aprendizagem desse Caderno, a dicotomia corpo humano superior, corpo não-humano inferior - pois sua espinha dorsal (Aristóteles/Descartes/Kant) moral é a formatadora dessa visão -, continuará sendo passada aos alunos naturalizando a exploração e violação do corpo vulnerável do outro.
"As concepções de René Descartes e de Kant representam as mais fortes influências especistas na história da Ética (...)
Descartes pode ser considerado o mais influente precursor do racionalismo moderno. Sua concepção dicotomizada da natureza viva, da qual o Humano faz parte, a separação dos dois elementos dos quais o animal é constituído, corpo e alma, cristaliza todos os preconceitos contra os quais hoje temos de lutar (...) Os animais aparecem como os mais fortes candidatos a alvo da somatofobia: são os mais diferentes de nós em seu aspecto físico".52
O Caderno incumbe o professor de frisar aos alunos que "somos um corpo, somos o nosso corpo, e que a filosofia sempre se esforçou para evidenciar as diferenças entre Homens e os demais seres da natureza", mas que também é típico da filosofia, uma reflexão que procura nos aproximar dos demais animais. Está mais que evidente que a proximidade não é o que nos levaria e aos jovens alunos ao reconhecimento e respeito à vida, ao corpo do outro de outra espécie pelo seu caráter vulnerável como o nosso. O que "aproxima os Homens dos demais animais", segundo esse Caderno, foi muito bem expressado criticamente nos seguintes termos pela eticista brasileira Sônia T. Felipe:
"Ao interagir, é com o nosso corpo que nos colocamos no espaço territorial ocupado já por um outro, apresentamo-nos ao outro através de nosso corpo. Com ele estabelecemos contato com o corpo do outro. Nossa cultura nos autoriza a fazer o que for necessário para garantir o provimento dele. Para muitas pessoas, isso quer dizer liberdade para avançar e atacar o corpo de outro animal, liberdade para confiná-lo, forçá-lo à reprodução ininterruptamente, matá-lo. Revelando a mais absoluta incoerência moral, não admitimos que façam ao nosso corpo o que fazemos com naturalidade ao corpo de outros. Exemplo disso são as restrições ao uso de humanos em quaisquer investigações e a não restrição ao uso de não-humanos em investigações cruéis e violentas".53
Mas a seqüência de incoerências continua. Segundo essa situação de aprendizagem, o que nos distingue dos animais não-humanos, é a responsabilidade. Responsabilidade que advém "justamente por sermos seres de consciência, capazes de prever conseqüências, assumir equívocos e de rever metas contemplando a preservação da própria vida e de outros seres"54.
A superioridade biológica humana foi magistralmente derrubada pelo naturalista Charles Darwin, pesquisador que os autores do Caderno excluíram; agora a distinção é jogada na posse da "consciência". No lugar de Pascal e Descartes, não deveríamos ter aqui Freud? Não foi esse médico que tirou o Homem do centro de si mesmo? Se os autores desse caderno realmente quisessem levar à reflexão a posição do ser humano como um corpo entre outros corpos na grande vastidão das expressões de vida no planeta, teriam buscado fundamentação em Darwin, e na etologia contemporânea; mas preferem insistir em Descartes.

Situação de aprendizagem 4 - A linguagem e a língua como características que identificam a espécie humana

Nesta situação de aprendizagem, continua-se no mais-do-mesmo dos manuais de introdução à Filosofia. Agora o foco é a linguagem, tema muito importante para a filosofia tradicional, como uma das características que dá ao Humano o direito de subjugar as outras espécies. Neste 4º e último tema, os autores iniciam citando a Política de Aristóteles e concluem indicando as Investigações Filosóficas de Wittgenstein, ou seja, dois pensadores especistas que vêem a posse da linguagem verbal humana essencial para expressar o pensamento e como os animais "não falam" como nós, estão fora do círculo moral. Aos animais não-humanos não cabe a tríade: linguagem, consciência e pensamento. Seguindo essa linha de raciocínio aristotélico-tomista-cartesiana, o Caderno diz:
"A ideia é que eles [alunos] considerem o processo de pensamento como um fenômeno permitido pela palavra. Ainda que não expresso, que não dito, um pensamento é produzido com a articulação de palavras.
As palavras articulam-se no contexto de uma língua. Por isto é possível afirmar que não existe pensamento sem a base, sem o suporte de uma língua.
A língua por sua vez, tem seus suportes. A língua falada tem como base física os sons, ou seja, a vibração do ar e a língua escrita tem sua base na imagem, quer dizer, em um desenho no espaço. Ela também tem uma base física no animal que fala. A língua falada depende de um aparelho fonético bastante sofisticado, e a língua escrita depende de uma mão igualmente sofisticada, ambas características exclusivas da nossa espécie."55
Lendo o trecho citado acima, percebemos o quanto a filosofia transmitida nas escolas e, nas academias, é risível; um campo do conhecimento tão respeitado por uns e tão temido por outros, pela sua coerência lógica na apresentação de suas argumentações.
Há cento e cinquenta anos, Charles Darwin derrubou nossa pretensa superioridade, de lá para cá, o avanço dos estudos cognitivos, etológicos e éticos animalistas tem simplesmente confirmado aquilo que desde os primórdios não deveríamos ter nos desligado, dicotomizando nossas relações. É essa incoerente, cruel e injusta dicotomia especista - quem fala pensa, quem não fala não pensa -, que esse Caderno governamental quer transmitir para os alunos da rede pública de ensino do Estado de São Paulo. Não podemos encarar como sério um material didático direcionado à disciplina de Filosofia que diz não existir pensamento sem o suporte de uma língua, tendo como referência a linguagem verbal humana; que vincula pensamento à articulação de palavras. Pior do que essa seqüência de sandices, incoerências e preconceitos travestidos de filosofia é a aceitação passiva e submissa dos docentes de filosofia desse material. O resultado é a contínua transmissão da cultura da barbárie, da banalização do mal.
Vejamos o que diz a professora Sônia T. Felipe ao comentar a crítica do pensador norte-americano Tom Regan à tese cartesiana:
"Quando se trata dos seres humanos, afirmamos que estes têm desejos, crenças, consciência e percepção espaço-temporal de si. E o fazemos por observar seu afã em satisfazer suas necessidades e desejos, ainda que essas atividades não sejam acompanhadas de linguagem verbal. Pressupomos, nesse caso, uma forma de consciência ou pensamento que não depende da linguagem verbal, nem de sintaxe, gramática ou semântica. Um cão tem uma forma de consciência ou pensamento que lhe permite distinguir pelo olfato, palato, tato e visão o osso preferido, entre objetos de plástico, borracha ou madeira que o rodeiam. Quando tem necessidade ou desejo do osso, o cão jamais "erra" na identificação do objeto de sua preferência. Nesse sentido, o cão demonstrou possuir aquele tipo de capacidade requerida por Frey para o estabelecimento do respeito moral, qual seja, a da crença. Não se pode negar que o cão crê que é verdadeiro aquele osso, escondido entre outros objetos de idêntica forma e espessura. O animal não expressa verbalmente sua preferência convicta, mas o faz através de sua escolha."56
O exemplo dado acima da capacidade cognitiva canina foi observado, pelo menos desde Montaigne, em várias espécies. Ou seja, a tríade linguagem, consciência e pensamento já está mais que comprovada não ser exclusiva dos humanos. Não podemos deixar de lembrar que não são todos os humanos que se expressam pela linguagem verbal e nem todos são conscientes.
Na penúltima página do Caderno, a quarta situação de aprendizagem fecha com chave de ouro na transmissão da filosofia tradicional, afirmando que:
"Outra característica importante do ser humano que é permitida pela linguagem pode ser encontrada na capacidade de sair do presente e da presença do que é visto para lançar-se ao passado, ao futuro e a mundos nunca visitados.
Aliados à faculdade da memória, a língua e a linguagem nos trazem registros do passado; e aliadas à capacidade imaginativa, nos projetam para o futuro. Passado e futuro só existem por causa da linguagem e da palavra. (...)
A linguagem é isso: um processo que permite a criação de fatos na mente das pessoas. Permite a criação de imagens, de ideias, de acontecimentos, de emoções, de julgamentos e, até mesmo, de todos esses aspectos simultaneamente."57
Sempre a necessidade de se autoproclamar; temos que exaltar uma "diferença" entre os humanos e os não-humanos para usar isso como sinônimo de superioridade do primeiro. Nós temos, nós somos; eles não.
No quinto capítulo de sua obra, Ética Prática, o pensador australiano Peter Singer, buscando fundamentação nos estudos da Etologia das últimas décadas, desmistifica a ideia de que os animais não-humanos são despossuídos de racionalidade, autoconsciência e que não tem noção de passado e futuro.
Utilizando os exemplos da chimpanzé Washoe58, do gorila Koko e do orangotango Chantek, que através da linguagem de sinais usada pelos surdos, demonstraram ter uma imagem dos seus próprios corpos: lembraram de acontecimentos de anos anteriores, de datas, o que é uma clara noção de tempo; Singer questiona:
"A linha de argumentação que nega um comportamento intencional aos animais pode ser tida como bem fundada ao restringir-se a animais sem uma linguagem? Não creio. (...) Não há nada de inteiramente inconcebível no fato de um ser ter capacidade de pensamento conceitual sem que tenha uma linguagem; existem exemplos de comportamento animal extraordinariamente difíceis, quando não categoricamente impossível, de serem explicados, a não ser que se parta do pressuposto de que os animais estão pensando conceitualmente."59
Na seqüência, ao comentar os comportamentos da chimpanzé Julia, que não havia aprendido nenhuma forma de linguagem, Singer argumenta que "seres sem linguagem podem pensar em moldes bastantes complexos"60.
Para desespero dos filósofos tradicionais e de seus herdeiros, a existência tanto de consciência de si quanto a percepção da consciência do outro em comunidades de chimpanzés estudados por Franz de Waal e sua equipe, são incontestáveis.
Singer cita um episódio descrito pela primatologista Jane Goodall, sobre as estratégias e intenções de um jovem chimpanzé de nome Figan, que para ter acesso a uma banana planejou uma ação futura.61
Não é novidade para quem convive com cães e gatos que esses animais são autoconscientes e têm senso de futuro; que sabem quando seus guardiões estão chegando a suas residências ou estão enfermos. Lembrar de acontecimentos passados e planejar o futuro também é observado em aves como o gaio aphelocoma californica. Exemplos de ações especistamente tidas somente como humanas são vistas em várias espécies, como no corvo-da-nova-caledonia, elefante asiático, ciclídeos africanos, papagaio-cinza-africano, lêmure-de-cauda-anelada, carneiros, polvo-gigante-do-pacífico, sagüi-comum, golfinho-nariz-de-garrafa, entre outras.
Depois desses poucos exemplos, perto da imensidão de estudos que rompem com a barreira especista, o que, afinal, os "filósofos pela graça do Estado" querem passar para os alunos? Onde está o duvidar de tudo? O questionamento crítico, análise minuciosa? Questionar o que Descartes questionou não forma para a cidadania. Reproduzir o que Aristóteles e Kant falaram não é fazer filosofia. A filosofia moral tradicional deixada como herança já foi revista pela ética prática contemporânea e seus conceitos clássicos recheados de pensamentos discriminatórios já não são mais aceitos por aqueles que desejam buscar e divulgar a verdade.


CONCLUSÃO

Espero ter cumprido, pelo menos em parte, a tarefa filosófica de radicalidade na leitura da Proposta Curricular e dos Cadernos de Filosofia.
A primeira ação fundamentalmente filosófica é o questionamento, o duvidar.
Na 11ª tese marxiana sobre Feuerbach, Marx pedia para que os filósofos transformassem o mundo que a muito já vem sendo interpretado. Hoje, não consigo ver na prática docente, nem esse pensar sobre o mundo. O que infelizmente percebo é a reprodução do que é tido como clássico, como fundamental na história do pensamento filosófico ocidental. Ou seja, continuamos transmitindo a moral tradicional composta de todas as formas de discriminação possíveis. Assim, o professor de Filosofia pega o caderno da disciplina, reproduz aquelas ideias, aquelas teorias, quando muito explica o que elas querem dizer. Aceitar qualquer material didático e utiliza-lo em sala de aula sem submetê-lo a uma leitura filosófica no sentido puro do termo é não só antifilosófico, como um crime psicofísico cometido contra os adolescentes que deveriam receber um conhecimento que os liberte, que os faça ver o que está além do nosso campo de visão. Filosofia se faz no diálogo consigo e com o seu entorno.
O diálogo filosófico parte de questionamentos, questionamentos nascem das dúvidas e as dúvidas originam-se do descontentamento, da desconfiança, do desconforto frente ao estado de coisas tradicionalmente estabelecido e imutável. É desse descontentamento, das inquietações com a realidade à volta que nasce a Filosofia como um pensar crítico radical.
O que falta nas propostas curriculares e na prática docente é a radicalidade.

NOTAS
* Gostaria de agradecer a incomensurável contribuição da profª Sonia T. Felipe e de Bruno Müller na leitura e comentários do texto acima.

1 PROPOSTA CURRICULAR. 2008.p.10.
2 Ibid.p.11. (grifo meu)
3 Ibid.p.41.
4 Ibid.p.41.
5 Ibid.p.41. (grifo meu)
6 Theodor W. ADORNO. Educação e Emancipação. p.80 (grifo meu)
7 PROPOSTA CURRICULAR. 2008.p.42.
8 Ibid.p.42. Sobre optar por um único pensador para trabalhar em sala de aula, cf. "Veganismo no ensino médio é doutrinação?" In: www.pensataanimal.net
9 Ibid.p.43.
10 SÃO PAULO. SEE, 2009a p.08. (grifo meu)
11 Ibid.p.09. (grifo meu)
12 Ibid.p.27.
13 Ibid.p.29.
14 SÃO PAULO. SEE, 2009b p.09.
15 Ibid.p.08.
16 Ibid.p.08.
17 Cf. Gary L. FRANCIONE. Introduction to Animal Rights: Your Child or The Dog? Philadelphia: Temple University Press, 2000.
18 SÃO PAULO. SEE, 2009b p.08-09.
19 Hannah ARENDT. A Condição Humana. p.293.
20 SÃO PAULO. SEE, 2009b p.19.
21 Ibid.p.20.
22 Ibid.p.20.
23 Sônia T. FELIPE. Ética na Alimentação: O Fim da Inocência. In: www.pensataanimal.net
24 Adela CORTINA & Emilio MARTINEZ. Ética. p.20.
25 Adolfo S. VASQUEZ. Ética. p.12-14.
26 SÃO PAULO. SEE, 2009b p.20. (grifo meu)
27 Ibid.p.21. (grifo meu)
28 Ibid.p.27. (grifo meu)
29 Ibid.p.30.
30 Sônia T. FELIPE. Redefinindo a Comunidade Moral. p.265.
31 SÃO PAULO. SEE, 2009b p.34.
32 Ibid.p.34.
33 Sônia T. FELIPE. Redefinindo a Comunidade Moral. p.266.
34 Ibid.p.266-267.
35 Ibid.p.267.
36 SÃO PAULO. SEE, 2009b p.34.
37 SÃO PAULO. SEE, 2009c p.08 (grifo meu)
38 Ibid.p.12.
39 Antonio GRAMSCI. Concepção Dialética da História. p.27.
40 SÃO PAULO. SEE, 2009c p.23.
41 Friedrich NIETZSCHE. Sabedoria Para Depois de Amanhã. p.128.
42 SÃO PAULO. SEE, 2009c p.26.
43 Ibid.p.26. Parece que os autores do Caderno não assistiram o filme "Tempos modernos" de Charles Chaplin, onde a atividade manual não é acompanha de pensamento, de reflexão. A ação é mecânica.
44 Friedrich NIETZSCHE. III Consideração Intempestiva. Schopenhauer Educador. p.208.
45 SÃO PAULO. SEE, 2009c p.29.
46 Dermeval SAVIANI. A Filosofia na Formação do Educador. p.24.
47 Sônia T. FELIPE. Ética na Alimentação: O Fim da Inocência. In: www.pensataanimal.net
48 SÃO PAULO. SEE, 2009c p.36.
49 Sônia T. FELIPE. Diferença ou Singularidade? In: www.anda.jor.br/?p=1419
50 Cf. a trilogia "Somatofobia" de Sônia T. Felipe na revista Pensata Animal.
51 Keith Thomas apud Daniel B. LOURENÇO. Direito dos Animais.p.185.
52 Sônia T. FELIPE. Somatofobia: Violência Contra Humanos e Não-Humanos, a Modernidade e as Vozes Dissidentes Contemporâneas (parte II). In: www.pensataanimal.net
53 Ibid.
54 SÃO PAULO. SEE, 2009c p.38.
55 Ibid.p.44. (grifo meu)
56 Sônia T. FELIPE. O Estatuto dos Animais Usados em Experimentos: Da Negação Filosófica ao Reconhecimento Jurídico. p.76.
57 SÃO PAULO. SEE, 2009c p.46. (grifo meu)
58 Cf. Roger FOUTS. O Parente Mais Próximo: o que os chimpanzés me ensinaram sobre quem somos. Rio de Janeiro: objetiva. 1998.
59 Peter SINGER. Ética Prática. p.123.
60 Ibid.p.124.
61 Cf. o capitulo 5 da obra Uma Janela para a Vida de Jane Goodall, onde a primatologista conta "A ascensão de Figan".
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Leon Denis leondenisf@yahoo.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.


Professor de Filosofia da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo, co-autor do projeto Mens sana in corpore sano, pioneiro no ensino de Direito Animal e Veganismo em escolas públicas no Brasil.

Fonte: Pensata Animal

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