quarta-feira, 19 de maio de 2010

São Paulo faz escola. E nós, fazemos Filosofia? -Parte 1


Por Leon Denis*

“Ocorre de fato que em geral o Estado tem medo da filosofia, então, nesse caso, ele buscará, cada vez mais, atrair para si o maior número de filósofos que puder, o que lhe confere a ilusão de ter a filosofia do seu lado – e assim ele tem ao seu lado estes homens que se valem dela, mas não inspiram nenhum medo(…) Se alguém aceita, então, ser filósofo por concessão do Estado, é preciso também que aceite ser considerado por este como se tivesse desistido de perseguir a verdade nos seus últimos refúgios”
F. Nietzsche

INTRODUÇÃO

Desde o início de 2008, os professores do Estado de São Paulo vêm recebendo um ‘Caderno do Professor’ que contém a Proposta Curricular dos ensinos Fundamental e Médio para ser utilizado em sala de aula. Apresentarei uma leitura crítica da Proposta Curricular e dos Cadernos de Filosofia sob a ótica de um professor de filosofia veganamente assumido e que tem como referência uma filosofia radicalmente crítica e, não submissa e servilista.

Veremos a incompatibilidade do que é indicado pela Proposta Curricular com o conteúdo a ser trabalhado dos Cadernos. As contradições perpassam todos os Cadernos.

Além dos conteúdos serem o mais-do-mesmo de qualquer manual de introdução à filosofia, fica visível a ideia de que ensinar filosofia é passar pelas grandes áreas da História da Filosofia, pelo maior número de filósofos e temas possíveis, o que exige do docente da disciplina um conhecimento enciclopédico. O objetivo que se quer alcançar é impossível tanto para o aluno de 15 e 16 anos que terá de absorver o que foi produzido nos últimos 2500 anos, quanto para o professor que terá de dar duas aulas sobre um tema em Aristóteles, passando nas três aulas seguintes por Descartes, na sequência, duas aulas em outro tema em Kant, depois ele volta à Idade Média. Nenhum professor de filosofia tem a obrigação de conhecer toda a História da Filosofia. Não tem como fugir aqui da velha questão: por que o professor do ensino médio tem que dar aula sobre todos os conceitos passeando por todos os filósofos e o docente acadêmico se fecha em um ou dois pensadores durante décadas?

Filosofia: da batida definição etimológica e a defesa de sua utilidade, aos conceitos clássicos como consciência, liberdade, linguagem, autonomia, ética… todos transmitidos mantendo a visão tradicional, antropocêntrico-especista.
Uma das tarefas da filosofia é nos levar a questionar, a duvidar, a não aceitar de imediato o que é dado, transmitido como certo, correto e verdadeiro. Tentarei cumprir essa tarefa filosófica.

Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Filosofia

Segundo a apresentação da Proposta Curricular do Estado de São Paulo, depois de uma aprendizagem que insira realmente as camadas mais pobres da sociedade brasileira no mundo de modo produtivo e solidário,
“Outro fenômeno relevante”, das aprendizagens escolares, ” diz respeito à precocidade da adolescência, ao mesmo tempo em que o ingresso no trabalho se torna cada vez mais tardio. Tais fenômenos ampliam o tempo e a importância da permanência na escola, tornando-a um lugar privilegiado para o desenvolvimento do pensamento autônomo, que é condição para uma cidadania responsável. Ser estudante, nesse mundo que expõe o jovem desde cedo às práticas da vida adulta – e, ao mesmo tempo, posterga a sua inserção profissional – , é fazer da experiência escolar uma oportunidade para aprender a ser livre e ao mesmo tempo respeitar as diferenças e as regras de convivência. Hoje, mais do que nunca, aprender na escola é o ‘ofício do aluno’, a partir do qual ele vai fazer o trânsito para a autonomia da vida adulta e profissional”1

O que chama a atenção nesse trecho da ‘Proposta’, mas que está explícita em toda ela de maneira esparsa, é a suposição de que quanto mais tempo na escola maior a probabilidade de desenvolvimento do pensamento autônomo (ou aprender a ser livre) sem o qual não será um cidadão responsável. O que é ser um cidadão responsável? Respeitar as diferenças e as regras de convivência? Quais diferenças? Regras de convivência que não sabemos de onde vieram, quem as criou, quais os propósitos?

E, desde quando, ser adulto e profissional em alguma coisa nos faz autônomos (penso no conceito kantiano nesse momento)? Pois, se é o exercício do ‘ofício de aluno’ que leva o jovem à autonomia na idade adulta, fica claro, pelo menos para mim, o porquê de temos poucos adultos autônomos. Marx, Freud e a Escola de Frankfurt não me deixam mentir.

Na sequência, a Proposta Curricular nos diz:

“O desenvolvimento pessoal é um processo de aprimoramento das capacidades de agir, pensar, atuar sobre o mundo e lidar com a influência do mundo sobre cada um, bem como atribuir significados e ser percebido e significado pelos outros, aprender a diversidade e ser compreendido por ela, situar-se e pertencer. A educação precisa estar a serviço desse desenvolvimento, que coincide com a construção da identidade, da autonomia e da liberdade. Não há liberdade sem possibilidade de escolhas”.2

Novamente e, enfaticamente, a ideia de que a educação (entendo escola) deve formar um cidadão autônomo e livre. Ou seja, levar o aluno da heteronomia pueril à autonomia adulta. Que fique bem claro que não me oponho a essa função de ponte que a escola deveria assumir e exercer de fato. A questão é: como formar cidadãos autônomos e livres se seus formadores são heterônomos, alienados e servos voluntários?

Sobre aprimorar, nos alunos, as capacidades de agir, pensar e atuar sobre o mundo, a escola faz e muito bem; porém, dentro do modelo antropocêntrico-especista. Muitos professores desenvolvem um trabalho ‘socioambiental’ nos moldes: não jogar papel no chão, não pichar as paredes da escola, economizar água, não jogar lixo nos rios e lagos, etc.

Mas e a pecuária? E a carcinicultura e a aquicultura? As fazendas e granjas industriais? “Puxa, professor! Que coisa chata. Reciclar o lixo até que vai, mas não mexe na minha comida!”. Os alunos agem, pensam e atuam sobre o mundo, tendo-o como a lixeira de suas casas. Na verdade, eles apenas reproduzem o que os adultos fazem com naturalidade.

Parece que rechear textos de filosofia para o ensino médio com os conceitos de autonomia e liberdade dá um certo status. Mas nada está tão distante desses conceitos tão caros à História da Filosofia do que o nosso sistema de ensino público. Uma Proposta Curricular de filosofia que diz pomposamente que “o retorno da filosofia ao ensino médio deve ser entendido como reconhecimento da importância desta disciplina para ampliar o significado e os objetivos sociais e culturais da Educação”3, não deve ser levada a sério. Da Grécia antiga aos dias atuais, sabemos que a filosofia nunca foi vista com bons olhos por reis, imperadores, presidentes, ditadores, etc. A filosofia hoje só faz parte do currículo escolar do governo estadual porque ela se tornou, graças à maioria de seus representantes, totalmente inofensiva. Perdeu seu caráter crítico radical (crítico no sentido grego e radical no latino do termo) em 99% das escolas em que é passada; somente 1% procura manter seu espírito aguerrido, provocador, insubmisso e, não menos autocrítico.

E, continuando a ler a Proposta, tropeçamos neste parágrafo: “Quem pode discordar, por exemplo, de que já está mais do que na hora de levar os debates sobre ética para fora das aulas e seminários especializados, escondidos nas universidades e produzidos para meia dúzia de especialistas de fala incompreensível.”4
Discordo que os debates sobre Ética estão presos às “aulas e seminários especializados, escondidos nas universidades e produzidos para meia dúzia de especialistas de fala incompreensível”. Bom, deveríamos primeiro perguntar o que os autores dessa proposta entendem por Ética. Mas, eu vou partir do principio de que já sabemos: é a velha, mas hercúlea, antropocêntrico-especista.

A grande referência de pesquisa da juventude, hoje, é a internet. Na internet os jovens encontram tudo – quando querem – sobre Ética. Logo, dizer em uma Proposta Curricular para o ensino médio que os debates sobre Ética estão presos às aulas e seminários acadêmicos e restritos a poucos especialistas é negar esse instrumento quase indispensável no sistema de ensino paulistano; sem contar as revistas de filosofia e de outros campos que tratam de temas abarcados pela Ética em bancas de jornal, portanto, não em linguagem totalmente técnica e atingindo um grande público não especialista.

É um absurdo dizer que os debates sobre Ética ficam restritos às aulas acadêmicas e a um grupo de intelectuais. Para essa tese fazer sentido temos que reconhecer que os professores do ensino médio não fazem a função de ponte, ligando seus alunos a esses debates. Toda discussão e pesquisa efetuada pelos eticistas acadêmicos tiveram sua origem na observação das relações socioculturais e ambientais dos povos, dos costumes cotidianos dos mesmos. Ou seja, a ideia não vem do céu à terra, mas da terra sobe ao céu. É um costume, uma prática diária que estimulará um eticista a colocá-la sob o jugo de uma análise ética e, ao cabo dessa leitura, de estudo minucioso dessa tradicional prática costumeira, o resultado volta a sua origem; geralmente com a exigência de mudança daquela tradição, pois, com o passar dos tempos, aquela prática torna-se eticamente condenável.

Dando continuidade à crítica do parágrafo da Proposta citado acima,
“Do mesmo modo, por maior que seja a capacidade que os meios de comunicação têm de influenciar a opinião pública, exercitando positivamente seu direito de denúncia social, nenhum educador imagina transferir à mídia a responsabilidade pelo estabelecimento de valores éticos para formação de crianças e adolescentes”5
O educador não precisa imaginar essa transferência de responsabilidade, pois são as mídias – em especial a televisão – que não só estabelecem “novos” valores, mas mantêm os valores morais tradicionais. O avanço tecnológico não pára, mas o padrão moral é o mesmo há séculos. Os educadores são tão formatados pelos meios de comunicação de massa quanto seus alunos.

As crianças e adolescentes são formatados axiologicamente pelas famílias, pelas escolas e pelas mídias. E já sabemos a muito, que as mídias já superaram as famílias e as escolas, em força formadora, como aparelho ideológico. Em 1963, o pensador Theodor W. Adorno fez a seguinte afirmação que nos corrobora:
“Em primeiro lugar, compreendo ‘televisão como ideologia’ simplesmente como o que pode ser verificado, sobretudo nas representações televisivas norte-americanas, cuja influência entre nós é grande, ou seja, a tentativa de incutir nas pessoas uma falsa consciência e um ocultamento da realidade, além de, como se costuma dizer tão bem, procurar-se impor às pessoas um conjunto de valores como se fossem dogmaticamente positivos(…) Além disto, contudo, existe ainda um caráter ideológico-formal da televisão, ou seja, desenvolve-se uma espécie de vício televisivo em que por fim a televisão, como também outros veículos de comunicação de massa, converte-se pela sua simples existência no único conteúdo da consciência, desviando-a por meio da fartura de sua oferta daquilo que deveria se construir propriamente como seu objeto e sua prioridade”6

A questão da influência familiar e dos professores na formação de valores de cidadania é constante na Proposta. Percepção e assimilação de valores antropocêntricos ( e não menos sexistas, racistas, homofóbicos e principalmente especistas) que a família transmite às crianças, devem ser fortificados na escola pelos docentes, e são. Seja através do currículo oculto ou não. Ou você, leitor ou leitora, pensa que uma boa parcela de professores do ensino infantil ou médio não faz piadas sexistas, especistas, racistas… em sala de aula?

Esses valores morais tradicionais indispensáveis para o exercício da cidadania, oriundos dos lares, devem ser trabalhados (entenda-se legitimados) pelos professores, segundo a Proposta com a contribuição interdisciplinar da filosofia.
“… por exemplo, de um lado discussões sobre violência urbana ou racismo poderiam ser melhor desenvolvidas pelos professores de Sociologia ou História, a partir de um diálogo com o professor de filosofia. De outro lado, a intermediação da filosofia poderia ampliar a compreensão de questões como desmatamento a engenharia genética, trabalhados nas aulas de Geografia e Biologia, e assim por diante”7

O que se percebe no cotidiano escolar é que essa parceria do professor de Filosofia com o de outras disciplinas varia de unidade escolar para unidade escolar. Em algumas escolas temos projetos interdisciplinares bem trabalhados e em outras, cada professor se fecha na sua área de especialidade não permitindo se quer um diálogo com o outro docente.

Quando a proposta diz que a Filosofia pode ajudar a Geografia e a Biologia no desenvolvimento das temáticas desmatamento e engenharia genética, parece que os autores da proposta estão se referindo a uma contribuição crítica, minuciosa, radical da filosofia no sentido de desvelar as incoerências humanas do trato a esses temas. Porém, se a filosofia passada na escola é a tradicional antropocêntrico-especista, a única contribuição que ela pode dar é legitimando a visão geográfica e biológica da natureza (animais não-humanos e ecossistemas) como recurso, produto, bens de consumo do humano.

A questão do desmatamento não é vista pelos professores de Filosofia do Ensino Médio como problema que merece ser discutido pela filosofia. Aula de filosofia é falar dos filósofos mais conhecidos. Estão convictos de que desmatamento é assunto exclusivo de geógrafos e biólogos. E no que se refere à engenharia genética parece haver certo medo de se envolver em um tema espinhoso para a própria biologia. É visível a aceitação passiva dos docentes de Filosofia, apologistas, dessa proposta curricular, das “verdades” oriundas das “ciências da vida”.

O docente de filosofia deve assumir sua verdadeira função social e chamar para si a responsabilidade de tratar esses e outros temas abarcados pela Ética de maneira sistemática em sala de aula. É preciso parar de reproduzir frases feitas e fazer alunos decorarem vida e obra de filósofos. Os temas que tratam das formas de discriminação, das várias faces da violência, de nossas ações ambientalmente condenáveis e das implicações dos “avanços” das ciências biológicas, são prioritariamente de responsabilidade da filosofia.

No entanto, a questão fundamental que nasce ao se referir aos temas citados é: como desenvolvê-los na aula de filosofia? A Proposta Curricular parece se posicionar contrária às duas maneiras comumente utilizadas pelos docentes. A primeira ao escolher um único pensador como referência:

“…não irá muito longe o professor que encerrar um pensador numa espécie de caixa preta, tentando isolar seu pensamento, imaginando a arquitetura do texto, por si só, poderá levar a qualquer forma de compreensão ou reflexão. Não podemos considerar a hipótese de que o educando terá uma boa formação apenas por conseguir compreender as estruturas do pensamento de um filósofo, isolado em um planeta imaginário onde tempo e história não coabitem”8

Veremos adiante, ao comentar os Cadernos do Professor elaborados a partir dessa Proposta Curricular, que os problemas filosóficos neles apresentados são pensados sob a ótica de um único pensador, ou seja, enquanto a Proposta critica essa forma de trabalho, o Caderno dela oriundo indica-a como forma de trabalho.

A segunda maneira de abordar os temas nas aulas de Filosofia é a partir da História da Filosofia, método também criticado pela Proposta nos seguintes termos:
“… a História da Filosofia não deve constituir a principal orientação para o ensino da disciplina na escola pública, pois é com o olhar voltado para o mundo que se aprende a pensar filosoficamente – muitas vezes, recolhendo material nas ruas que o aluno percorre para chegar à escola.”9

É interessante notar que a citação expõe a História da Filosofia e o mundo prático como díspares, antagônicos. Logo, baseando-se nela não levamos o aluno a pensar filosoficamente. Para pensar filosoficamente temos que olhar para o mundo, ou melhor, fundamentarmos no caminho percorrido pelo aluno em direção à escola. É essa a ideia? Se for, a proposta está literalmente defendendo um ensino de filosofia sem a filosofia como referência. Acredito que sem a história da filosofia, sem alguns pensadores, sem fundamentarmos em algumas ideias já desenvolvidas, de nada valerá olhar para o mundo, seja lá o que isso queira dizer, pois não conseguiremos dele nada aprender. Não se pensa filosoficamente o caminho percorrido sem a história do pensamento filosófico que nos precede. Tanto docentes quanto discentes estão o tempo todo com os olhos voltados para o mundo a sua volta; o problema é que eles não conseguem vê-lo. Ou pelo menos vê-lo como deveriam. Para isso, precisam reaprender a vê-lo, atitude até o momento impossível sem a história do pensamento filosófico.

Com essa leitura da Proposta Curricular do Estado de São Paulo, passamos aos Cadernos do Professor.




*Leon Denis,Professor de Filosofia da rede estadual de ensino do Estado de São Paulo, co-autor do projeto Mens sana in corpore sano, pioneiro no ensino de Direito Animal e Veganismo em escolas públicas no Brasil.

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