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sábado, 22 de maio de 2010

Montaigne - A amizade

 Autor dos Ensaios, obra que exala a nostalgia de uma amizade perdida, Michel de Montaigne concluiu que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos

texto José Francisco Botelho ilustração Sean Mackaoui

Um filósofo que zombava da filosofia. Um cético que acreditava em Deus e renegava o ateísmo. Um amante da paz e da tranquilidade, que adorava o som e a fúria das batalhas. Um misantropo que valorizava a amizade acima de todas as coisas. Essas e muitas outras contradições se encontram, em fascinante desarmonia, no vertiginoso autorretrato que o pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592) traça em sua única e maciça obra: Ensaios, livro indispensável não apenas para aqueles interessados em filosofia como para todos os amantes da boa literatura. Nascido em uma época de transformações, maravilhas e catástrofes, Montaigne testemunhou e viveu grandes reviravoltas históricas: a ascensão da burguesia, a descoberta de terras exóticas no Novo Mundo e os conflitos sanguinários entre católicos e protestantes. Em meio a esse mundo caótico e muitas vezes brutal, ele escolheu a si mesmo como objeto de reflexão – e compôs o mapa deliciosamente contraditório de sua própria alma, em escritos cheios de introspecção e exuberância, humor e melancolia.

Para alguns, Montaigne foi o maior porta-voz do ceticismo na idade moderna – colocando em suspenso todas as certezas absolutas, ele preparou o caminho para o iluminismo de Voltaire e Montesquieu. A grande originalidade de Montaigne, contudo, não é a negação da Verdade maiúscula, mas a busca de verdades possíveis e transitórias (e nem por isso menos significativas) nas obscuras fronteiras da personalidade humana. A filosofia ocidental, até então, havia encarado a Razão como uma ferramenta impessoal para a compreensão absoluta do universo: com Montaigne, o pensamento deixa de ser uma busca etérea por certezas fixas e se transforma em um olhar visceral e dinâmico para o interior do próprio indivíduo. Quatro séculos antes da invenção da psicanálise, esse pensador excêntrico, amigável e solitário já havia concluído que, para compreender a humanidade, precisamos antes de tudo desnudar a nós mesmos.


Montaigne Filósofo “moderno” e criador de um gênero literário, o ensaio, Michel de Montaigne nasceu em 1533 e morreu em 1592. Onívoro, parecia interessado em pensar sobre tudo.


O grande amigo Nascido em uma família de burgueses enriquecidos no comércio, Michel de Montaigne foi educado para se tornar um perfeito cavalheiro – seu pai, como muitos novosricos na época, queria apagar da árvore genealógica todas as marcas da origem plebeia. Antes mesmo de aprender o francês, o menino foi instruído no latim. Os familiares e serviçais da casa estavam proibidos de falar qualquer outra língua – e, até os 6 anos de idade, Montaigne conversava apenas no idioma de Cícero. Até a adolescência, o rapaz viveu sem obrigações: passava muito tempo lendo e sonhando, numa doce vida embalada por preguiçosas elucubrações. O gosto pela solidão contemplativa, adquirido tão cedo, haveria de acompanhá-lo até a velhice.


Montaigne só foi arrancado daquele ocioso paraíso aos 13 anos. Enviado a Toulouse, estudou Direito e ocupou o cargo de conselheiro legal em tribunais e parlamentos. Mais tarde, tornou-se cortesão no reinado de Carlos IX. Participou de cercos e grandes batalhas e, embora lhe repugnasse o derramamento inútil de sangue, Montaigne jamais negou o fascínio que sentia pela ação e pelo perigo. No burburinho da corte, por outro lado, ele aprendeu as manhas da alta sociedade e se tornou um renomado mulherengo e beberrão – mas sua devassidão era acompanhada por uma forte dose de melancolia. Sonhador e individualista, Montaigne sempre teve dificuldade em fazer amigos íntimos. Até que, aos 24 anos, conheceu o poeta e erudito Étienne de La Boétie.


Três anos mais velho que Montaigne, La Boétie era um homem de múltiplos talentos e interesses. Versado nas línguas antigas, ele escrevia sonetos em grego, latim e francês com idêntica fluência. Ainda muito jovem, ficou célebre pela obra Discurso Sobre a Servidão Voluntária, um libelo contra a tirania, escrito com a dicção solene dos clássicos da Antiguidade. Montaigne leu o livro antes de conhecer FILOSOFIA o autor; ao encontrar La Boétie, em Toulouse, já nutria por ele uma imensa admiração intelectual. Em breve, esses dois latinistas libertinos começaram a descobrir suas infinitas afinidades. Ambos amavam com idêntico fervor o vinho, as curvas femininas e a literatura; ambos veneravam a ética cavalheiresca e a individualidade de pensamento. E mais: numa época dilacerada pelos conflitos entre católicos e protestantes, ambos defendiam a tolerância religiosa e a convivência de ideias opostas. Durante quatro anos, em meio a bebedeiras e recitações da Eneida, Montaigne e La Boétie desfrutaram de uma dessas amizades hiperbólicas que às vezes parecem beirar a paixão platônica. “Se insistirem para que eu diga por que o amava”, escreveria Montaigne anos depois, “sinto que não saberei me expressar, senão respondendo: porque ele era ele; porque eu era eu”.


Uma boa fé Aos 29 anos, contudo, Montaigne foi subitamente privado de seu companheiro de prazeres e confrade de leituras: derrotado por uma grave crise de disenteria, La Boétie morreu após uma agonia lenta e dolorosa. Ao que tudo indica, foi a dor dessa perda que levou Montaigne a se refugiar – e se reencontrar – na escrita. Desgostoso com o mundo, o hedonista se transformou em eremita: abandonou as funções públicas em 1570 e se retirou para a propriedade rural que herdara da família, mergulhando na solidão. A partir daí, passaria a maior parte do tempo encerrado na torre do castelo, cercado pelos mais de 1500 volumes de sua biblioteca. Naquele isolado éden livresco, ele encontrou o único substituto possível para o amigo morto: nós, os infinitos leitores do futuro. É a essa legião de amigos invisíveis e íntimos que ele dirige a célebre advertência na primeira página dos Ensaios: “Eis aqui, leitor, um livro de boa fé... Sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente para que não empre gues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância”. É com essa irônica mesura que Montaigne nos convida a adentrar a turbulenta morada de sua alma.


E ele nos conduz por esse labirinto sem nos prometer conclusões definitivas e reconfortantes. A palavra essai, na época, significava “tentativa”. E é assim, às apalpadelas e aos tropeções, que Montaigne escreve sobre temas tão variados quanto a guerra, a equitação, a gastronomia, a botânica, o medo, as vestimentas, a tosse, os espirros, a flatulência, as carruagens, as virtudes e as fraquezas do órgão sexual masculino, os hábitos funerários dos antigos indianos, as viagens marítimas, a amizade, a solidão, a morte, os cálculos renais (apenas a enumeração exaustiva pode traduzir o gostinho de suas maravilhosas digressões). À primeira vista, os Ensaios são uma estonteante enciclopédia sobre tudo e sobre nada. Mas o tema central dessa epopeia sem método e sem jargões é o próprio Montaigne – o qual, por meio da autoanálise, acaba encontrando em si mesmo uma janela para a investigação de toda a humanidade.


Essa investigação, por sinal, não leva a uma verdade única, mas abre as comportas do entendimento para a multidão de verdades individuais que compõem o ser humano. Com seu afável ceticismo, Montaigne considera a Razão humana incapaz de resolver as questões transcendentes do universo – por exemplo, a existência de Deus e a imortalidade da alma. Para o autor, a própria descrença é um ato de fé. Perante dilemas insolúveis – como o são a maior parte dos temas da filosofia universal –, Montaigne não sugere uma resposta, mas uma pergunta: “Que sei eu?” A única coisa que podemos conhecer realmente somos nós mesmos; e, conhecendo-nos, podemos começar a compreender os outros. Pois, como nos diz o solitário habitante da torre, em seu tom oscilante entre a gravidade e o devaneio, “todo homem traz em si a forma total da condição humana”.


A tolerância Os Ensaios nasceram da nostalgia por uma amizade perdida – e não é exagero dizer que sua leitura, mesmo cinco séculos depois, é uma experiência semelhante à do contato direto e afetuoso com outro ser humano. Ler Montaigne é conhecê-lo intimamente, inclusive em seus defeitos. É graças à sinceridade radical do autor que conhecemos sua velada misoginia, sua indiferença em relação à esposa e aos filhos e suas rabugices. Não raro, ele pinta a si mesmo como inculto, grosseiro ou mesmo bobalhão – e o faz sempre com uma piscadela de ironia para o leitor. “Tenho uma maneira de pensar que me isola dos outros e, por outro lado, sou de uma ignorância pueril sobre o que todo mundo sabe. Esses defeitos valeram-me a reputação de bobo, que assenta em cinco ou seis fatos reais”, comenta, sem cerimônia, como se nos tivesse ao seu lado, no alto da torre, bebericando um vinho.


Ao lado dessas confissões despudoradas, encontramos virtudes que fazem de Montaigne um guia sábio. De inestimável valor para nossa época é sua defesa da tolerância. Dono de uma inesgotável curiosidade sobre outros povos, Montaigne salpica em seus escritos elogios às civilizações judaica e islâmica e aos indígenas do Novo Mundo – tudo isso no mesmo período em que a Inquisição calcinava hereges e os conquistadores ibéricos massacravam os “selvagens” das Américas.


Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto, com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais; mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.


Em um dos ensaios mais célebres, “Dos canibais”, Montaigne questiona os parâmetros de civilização e barbárie que então dominavam o pensamento europeu sobre os habitantes da América. E o faz com um grau de sutileza e bom senso de dar inveja a muitos antropólogos de hoje. Analisando os relatos de antropofagia, Montaigne elabora uma reflexão ponderada sem cair no multiculturalismo condescendente. Em lugar de fechar os olhos ao que lhe parece reprovável em outras culturas, ele sugere que apliquemos o mesmo rigor de juízo a nós mesmos. Após descrever um ritual de canibalismo, ele pondera: “Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira em relação aos nossos... Acho pior destruir por meio de torturas e suplícios um ser humano, assá-lo vivo em fogo brando ou entregá-lo às mordidas dos cães e dos porcos – como temos visto, com nossos próprios olhos, ocorrer entre nossos vizinhos e concidadãos, e tudo isso, ainda por cima, sob o pretexto da fé e da religião – do que cozinhá-lo e comê-lo depois que já está morto... Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, se dermos atenção apenas a algumas regras puramente racionais; mas jamais poderemos fazê-lo se os compararmos com nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.


Comparando o canibalismo indígena com a selvageria das perseguições religiosas na Europa, Montaigne aponta para uma sabedoria árdua, mas profunda, cuja utilidade é inegável em uma época como a nossa, dilacerada por ódios novos e antigos e obcecada com supostos “choques de civilizações”: o bem e o mal, a civilização e a barbárie estão misturados em todas as culturas, de forma indistinguível, e jamais formam compartimentos estanques. O homem, afinal de contas, é um “pobre animal” preso em um mundo que não pode decifrar; mas nesse universo caótico resta-nos a possibilidade de compreender uns aos outros – ou, pelo menos, tentar. É nesse sentido que Montaigne nos lega outra herança preciosa: o sentimento de humanidade, que nos une a todos em nossas limitações e mesquinharias, mas que abre a possibilidade de uma fraternidade universal, maior que as pátrias e as línguas. “Considero todos os homens meus compatriotas e tanto abraço a um polonês como a um francês, pospondo os laços nacionais aos universais e comuns”, escreveu ele, em um de seus muitos manifestos pela amizade entre os povos. E acrescenta, citando um exemplo tirado de Heródoto: “A natureza colocou-nos livres no mundo. Nós é que nos prendemos a certos lugares – tal qual os reis da Pérsia que se comprometiam a somente beber a água do rio Choaspez, abdicando assim nesciamente do direito de usar todas as demais águas, e secando, para seus olhos, todo o resto do mundo”.

Fonte: Revista Vida simples - Edição 92 - 05/2010.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Michel de Montaigne - O investigador de si mesmo

Interiorizar-se, duvidar e entrar em contato com outros costumes e pontos de vista são as recomendações do filósofo francês para uma boa formação

Foto: AFP/ROGER VIOLLET
Foto: AFP/Roger Viollet
O período histórico da Renascença estava em sua última fase quando o escritor francês Michel de Montaigne (1533-1592) chegou à vida adulta. O otimismo e a confiança nas possibilidades humanas já não eram os mesmos e a Europa se desestabilizava em conseqüência dos conflitos entre católicos e protestantes. Esse ambiente refletiu-se na produção do filósofo, marcada pela dúvida e pelo ceticismo. Seus Ensaios são leitura de cabeceira de um grande número de intelectuais contemporâneos, entre eles Claude Lévi-Strauss, Edgar Morin e Harold Bloom.

A obra, originalmente em três volumes, é, a rigor, a única de Montaigne – mais alguns escritos pessoais foram publicados depois de sua morte – e inaugurou um gênero literário. A palavra "ensaio" passou desde então a designar textos em torno de um assunto que vai sendo explorado por meio de tentativas (esse é o significado da palavra essais em francês), mas sem rigores de método. Muitas vezes, não chegam a nenhuma conclusão definitiva, mas convidam o leitor a considerar alguns pontos de vista. No caso de Montaigne, o gênero serve à perfeição ao propósito de contestar certezas absolutas.

Biografia

Michel de Montaigne nasceu em 1533 perto de Bordeaux, no sudoeste da França. Foi educado em casa e até os 6 anos só falava e entendia latim. Formou-se em Direito na Universidade de Toulouse e imediatamente ingressou na magistratura. Aos 24 anos, conheceu o escritor Étienne de la Boétie (1530-1563), com quem desenvolveu fortes laços de amizade. A morte de La Boétie causou um abalo emocional que o levou a começar a escrever. Em 1570, ele vendeu sua vaga no Parlamento (que na verdade tinha funções de tribunal) de Bordeaux, como era costume na época, e retirou-se da vida pública. Passou então a dedicar-se a escrever os Ensaios, que ele reelaborou e ampliou continuamente. Durante esse período, Montaigne alternou o recolhimento a seu castelo com idas a Paris para dar conselhos aos funcionários do reino sobre os conflitos religiosos. Em 1580, começou uma viagem de 15 meses por vários países da Europa. No ano seguinte, soube que havia sido escolhido prefeito de Bordeaux. Assumiu o cargo e manteve-o durante quatro anos. Morreu em 1592, em seu castelo, de uma inflamação nas amígdalas.
Dois dos Ensaios tratam especificamente de educação: Do Pedantismo e Da Educação das Crianças. Neles está claro que o autor pertencia a uma classe emergente, a burguesia, e que se rebelava contra certos padrões de erudição e exibicionismo intelectual ligados à aristocracia. Montaigne assumia também o papel de crítico tanto dos excessos de abstração da filosofia escolástica da Idade Média – que ainda sobrevivia nas universidades – quanto da cultura livresca do humanismo renascentista.

Essas circunstâncias históricas não necessariamente limitam os argumentos do autor, que foi o primeiro a falar numa "cabeça bem-feita" (expressão que Morin escolheu para título de um de seus livros) como objetivo do ensino, em detrimento de uma "cabeça cheia". "Trabalhamos apenas para encher a memória, deixando o entendimento e a consciência vazias", escreveu. Saber articular conhecimentos, tirar conclusões, acostumar-se à aquisição e ao uso da informação – todas essas questões tão problematizadas pelos teóricos da educação de hoje em dia estão no cerne das preocupações de Montaigne. "Para ele, a verdadeira formação residia em saber procurar, duvidar, investigar e exercitar o que é inteiramente próprio de cada pessoa", diz Maria Cristina Theobaldo, professora da Universidade Federal de Mato Grosso.

Longe dos pais e perto da vida
O castelo onde Montaigne se isolou para escrever: introspecção pedagógica. Foto: AFP/Roger Viollet
O castelo onde Montaigne se isolou para
escrever: introspecção pedagógica.
Foto: AFP/Roger Viollet

Para Montaigne, as crianças não devem ser educadas perto dos pais, porque sua afeição torna os filhos "demasiadamente relaxados" e isso não os prepara "para a aventura da vida". O objetivo principal da educação seria permitir à criança a formulação de julgamentos próprios sem ter que aceitar acriticamente as leituras que a escola recomenda. "No trabalho de transformar o que está nos livros em letra viva, o preceptor tem papel fundamental", diz Maria Cristina Theobaldo. A receita ideal para treinar a capacidade de análise é acostumar-se a considerar opiniões diferentes e acima de tudo conhecer culturas e experiências diversas daquelas a que o aluno se familiarizou. É o que Montaigne descreve como "atritar e polir nosso cérebro contra o de outros". O filósofo se rebelava contra a cobrança de memorização mecânica dos conteúdos ensinados aos alunos. "É prova de crueza e de indigestão regurgitar o alimento como foi engolido", escreveu. Segundo ele, as crianças devem aprender o quanto antes a filosofia, porque assim entram em contato com a necessidade de conhecer a prudência e a moderação. E também conhecer a si mesmos por meio da introspecção. O pensador relegava a segundo plano o ensino das Ciências, recomendando-o apenas aos que tivessem habilidade natural para ocupar-se dela profissionalmente. Já a História e a Literatura teriam função formadora mais ampla, inclusive do caráter.

"Que sei eu?" 


O projeto intelectual do filósofo teve a finalidade de testar maneiras de pensar que escapassem do caminho da erudição e da aplicação de idéias alheias. Quando se recolheu para escrever os Ensaios, sua decisão era voltar-se para si mesmo e reconstruir a própria história por intermédio de temas escolhidos ao acaso. "Em Montaigne, o processo formativo coincide com o conhecimento de si, lançar-se nas experiências e tomar posição perante os acontecimentos da vida", informa Maria Cristina.

Ao mergulhar em assuntos tão díspares quanto a perseverança e os odores, o autor realizou investigações que misturam experiências de vida a conhecimentos adquiridos por todos os meios, dos formais (tratados e clássicos literários) aos informais (conversas, leituras ligeiras, lendas populares). A primeira pergunta é "que sei eu?", para começar com uma grande dúvida e não com uma grande certeza – nem mesmo a certeza de não saber nada. Como cronista, Montaigne invariavelmente se declara ignorante e inculto, embora seus ensaios estejam recheados de citações gregas e latinas – uma das muitas contradições propositais que os tornam tão ricos.
A sabedoria dos canibais
Tupinambás em ritual de antropofagia retratado por Théodore de Bry: Montaigne desafia o senso comum. Foto: Corbis /Stock Photos
Tupinambás em ritual de antropofagia
retratado por Théodore de Bry: Montaigne
desafia o senso comum.
Foto: Corbis /Stock Photos

Em 1582, Nicolas Durand de Villegagnon, o líder da expedição naval que tentou fundar no Brasil a França Antártica, levou três caciques tupinambás à corte do rei Carlos IX. Montaigne estava presente e a visita originou o ensaio Dos Canibais. Em vez de manifestar horror aos costumes dos indígenas, como seria esperado de um intelectual católico, o pensador comparou-os aos europeus e concluiu que os supostos selvagens lhes eram superiores, graças à coerência com a própria cultura, à dignidade e ao senso de beleza. Os verdadeiros selvagens, segundo eles, eram os europeus, que estavam promovendo banhos de sangue não só em suas conquistas na América como nas guerras religiosas. Sobre o encontro com os tupinambás, Montaigne narra duas observações feitas pelos índios, uma sobre a estranheza que lhes causava o fato de tantos homens adultos, barbudos e armados se submeterem à autoridade de uma criança (o monarca tinha 12 anos) e outra a respeito de ter-lhes chamado a atenção que algumas pessoas na França eram visivelmente bem-alimentadas, enquanto outras mendigavam. Diz o escritor que os visitantes indagavam como os miseráveis "podiam suportar tal injustiça sem agarrar os outros pelo pescoço ou atear fogo em suas casas".
Leitor devoto da tradição filosófica cética, Montaigne foi partidário da idéia de que a razão por si mesma não garante a existência de nada nem sustenta argumento algum. O homem, para ele, não era o centro do universo, como queriam os renascentistas, mas um elemento ínfimo e ignorante de um todo misterioso e muito mais próximo dos animais e das plantas do que de Deus. A escrita amena e ponderada dos Ensaios muitas vezes impede que, numa primeira leitura, se perceba seu potencial demolidor – tanto que a obra só foi proibida pela Igreja mais de 80 anos após a morte do autor. Não que ele fosse ateu. Considerava-se cristão, mas não aceitava dogmas nem, sobretudo, a lógica que a religião costuma imputar aos desígnios divinos. Daí que só resta ao ser humano voltar-se para si, porque as únicas certezas que tem de antemão se referem aos limites do corpo e à inevitabilidade da morte. Sobre o mundo exterior, a melhor atitude é comportar-se sempre como um estrangeiro em seu primeiro dia numa terra estranha – pelo menos evitam-se as idéias preconcebidas e legitimadas apenas pela tradição.

Coerentemente com tais idéias, Montaigne chegou a uma concepção de ética que também difere muito das idéias estabelecidas em sua época sob a influência do platonismo e do cristianismo. Para o filósofo, os valores morais não podem ser objetivos e universais, mas dependem do sujeito e da situação em que ele se encontra.

Para pensar

A escola costuma dar, com razão, muita ênfase à sociabilidade. Afinal, essa é a essência da instituição ao reunir pessoas em torno de objetivos comuns. Mas a vida humana se faz também de reflexão e introspecção. Você já pensou que é importante deixar esse caminho aberto a seus alunos mesmo num ambiente movimentado como a sala de aula?
Quer saber mais?
A Educação das Crianças, Michel de Montaigne, 144 págs., Ed. Martins Fontes, tel. (11) 3241-3677, 19,40 reais
Ensaios, Michel de Montaigne, vols. 1 e 2, coleção Os Pensadores, 512 págs. e 400 págs., Ed. Nova Cultural, tel. (11) 3039-0933, 19,90 reais, cada volume
Montaigne, Marcelo Coelho, 96 págs., Ed. Publifolha, tel. (11) 3224-2186, 17,90 reais
Montaigne em Movimento, Jean Starobinski, 328 págs., Ed. Companhia das Letras, tel. (11) 3707-3500, 35 reais
Fonte:
Prática pedagógica História geral
Edição 022 | 10/2008- Revista Nova Escola

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