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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Olho Grego, por Renato Janine Ribeiro*

O pior regime, depois de todos os outros...




Nosso período eleitoral terminou: entre mortos e feridos, numa campanha que tinha tudo para ser uma discussão exemplar de ideias e projetos, mas que se degradou num festival de acusações, sobrevivemos. Sobreviveu a democracia brasileira.
Churchill tem uma expressão famosa sobre a democracia, que cito na íntegra: "Muitas formas de governo foram experimentadas e ainda o serão neste pecador e desafortunado mundo. Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou saiba tudo. Na verdade, já se disse que a democracia é a pior forma de governo, isso depois de todas as outras que foram testadas ao longo dos tempos". Ele a proferiu na Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947, dois anos depois de vencer a Segunda Guerra Mundial. Traduzindo a frase sobre a democracia, tentei preservar um pouco a sua ironia. Vamos lá.
Muitos já mencionaram essa frase como se ela significasse que a democracia é a melhor forma de governo possível. Mas não é isso! Porque Churchill começa dizendo que ela não é uma forma de bom governo. Churchill não apenas nega à democracia a qualidade de ser um bom governo, como nega a própria possibilidade de existir um bom governo. Ora, o que isso significa?

O buon governo. Num painel em Siena, pintado entre 1337 e 1340, estão expostos o bom e o mau governo e seus respectivos resultados. Se o rei é bom e justo, tudo em seu reino floresce. Se ele é mau e tirânico, tudo fenece. Nesse afresco de Ambrogio Lorenzetti (que usamos em parte para ilustrar esse artigo), estudado com primor por E. H. Kantorowicz em seu Os dois corpos do rei, se mostra com a maior clareza como o buon governo do rei é a chave para a sociedade viver bem.
Não é exagero dizer que Churchill, em sua célebre frase, está afirmando que esse ideal medieval, fortemente embebido da religião cristã (mas poderia ser de qualquer religião), é impossível. Não há como realizá-lo, na prática, ainda mais quando a sociedade se torna complexa e deixa de ser a caixa de ressonância de uma única fé, um único poder, uma única hierarquia.

O governo dos bons. Existe, porém, uma ideia adicional de governo bom, que não é a da boa monarquia, mas a do poder exercido pelos melhores. A palavra grega aristoi significa, como a latina optimata, "os que são melhores", "os superiores em qualidade". Portanto, a aristocracia seria o poder dos ótimos. Então, por que não ser governado pelos mais virtuosos e mais capazes? Por que não eleger os honestos e competentes?
Se o leitor reconhecer aqui temas que aparecem em todas as campanhas políticas brasileiras, terá razão. Hoje, temos três grandes famílias de valores políticos: o liberalismo, o socialismo (ou a preocupação social) e, ainda despontando, o crescimento sustentável. Mas muito pouco se discutiu sobre eles na recente campanha eleitoral. O que vimos foram acusações - que, não por acaso, eram de corrupção ou de incompetência. Ou seja: o que a maior parte dos candidatos e de seus marqueteiros valorizou foram, justamente, os temas do governo dos aristoi, da aristocracia.
Mas o problema, com a aristocracia, é que ela acaba beneficiando seus próprios membros. Quando se torna hereditária, aliás, depressa desaparecem a excelência moral e a competência que ela podia expressar originalmente, para se tornar mera transmissão de privilégios, de pai para filho.

Transparência. O que é, então, a democracia? Qual a sua vantagem? A vantagem é a transparência. Vários já disseram que o melhor detergente para a corrupção é tornar transparentes os atos do governo. Quando vieram a público os gastos indevidos com cartões corporativos, vários detentores de cargos tiveram de se demitir. Mas, essencialmente, a democracia é o poder do povo. O povo somos todos nós, virtuosos ou não, competentes ou não. Parodiando o título do romance de Robert Musil, na democracia cada eleitor é um "homem sem qualidades" - negativas ou positivas. Eu não preciso passar por nenhuma prova para votar. Posso, claro, ser privado do voto se cometer crimes, como sucede em muitos países - mas, para adquirir o direito de votar, nada se exige, além da nacionalidade e da idade.
Todos somos iguais, portanto, na urna. Isso não é fácil de aceitar. Muitos se indignam de ver que seu sufrágio vale o mesmo que o de uma pessoa simples. Pois é... Não é porque sou professor, fiz teses ou sou rico, poderoso, que meu voto deve valer mais que o do pobre ou inculto. Na verdade, quando voto, defendo meus interesses - assim como ele. Por muito tempo, a classe média brasileira vibrava com viadutos e avenidas expressas, que foram um desastre para as cidades, mas davam vazão mais rápida a seus carros. Essa classe, embora mais abonada e estudada que a dos pobres, foi mais esclarecida?
Obviamente que não. Mas de todo modo, se era legítimo ela votar nas suas convicções ou interesses, mesmo que de curto prazo, também é lícito os pobres votarem em suas preferências ou vantagens.

Igualdade. Essa é a dificuldade da democracia. Temos de aceitar uma igualdade que, no fundo, muitos de nós repudiamos.
Temos de aceitar que não há um governo ideal, a cargo dos melhores - e que sempre que isso se tenta, resulta em coisa pior. Acredito piamente que (quase) todos os ditadores do século XX estavam convictos de que governariam melhor do que as democracias. Poriam fim à corrupção, desenvolveriam seus países, etc.
Mas não houve ditadura que, ao acabar, tivesse deixado um legado melhor que o democrático. Em suma: ruim com a democracia, muito pior sem ela.

* Renato Janine Ribeiro é 
professor titular de Ética e Filosofia Política 
na Universidade de São Paulo (USP) www.renatojanine.pro.br


 Fonte: Revista Filosofia

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O advento do homem-massa - Matéria de capa da Revista Filosofia, por Renato Nunes Bittencourt

Na decadente conjuntura da degradação cultural promovida pelo nivelamento vulgar das qualidades humanas, vivemos sob o jugo da "ditadura da massificação", na qual se dilui todo destaque pessoal, todo brilho singular.



imagem: shutterstock
Renato Nunes Bittencourt é doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e professor do curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA
As inúmeras transformações sociais e valorativas ocorridas na modernidade oitocentista a partir da queda do ideário aristocrático e sua substituição pela visão de mundo burguesa trouxeram consigo um projeto cultural de instauração da noção de "igualdade" na esfera política, econômica ou social. Todavia, o projeto moderno de estabelecimento da "igualdade" humana se revelou uma farsa, pois nenhum ser humano manifesta qualquer tipo de característica semelhante a outrem, e se falamos de "igualdade", estamos certamente estabelecendo uma redução simbólica da condição individual.
Ortega y Gasset foi um dos principais filósofos a problematizar a questão da massificação da cultura na modernidade ocidental, e suas diversas implicações na esfera simbólica e social da vida humana.
Ao criar o conceito de "homem-massa", o filósofo forneceu um importante aparato intelectual para compreendermos de que maneira vivemos sob a égide moralista do nivelamento humano, e de que forma nossa criação cultural se submeteu a tais parâmetros normativos motivando, assim, nada mais do que o empobrecimento existencial e a legitimação do grotesco. Para Ortega y Gasset, "de repente a multidão tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida. Ocupava o fundo do cenário social; agora, antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonistas, só coro" (A Rebelião das Massas, p. 43).
É importante destacar que a configuração valorativa do "homem-massa" não segue parâmetros sociais ou econômicos específicos, mas a análise da existência ou não de uma nobreza de espírito interior. Assim, uma pessoa detentora de posses materiais, caso avalie sua existência pelos parâmetros quantitativos da ganância, da falta de finesse e da degradação do gosto cultural, associa-se ao grupo dos "homens-massa"; por sua vez, uma pessoa desprovida de instrução formal e de bens materiais, mas que é dotada de espírito avaliativo e sensibilidade cultural para apreciar aquilo que é belo ou sublime, se encontra longe da esfera vulgar da tipologia da massa, caracterizada justamente pela ausência de critérios seletivos em suas avaliações. Para Ortega y Gasset, "massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor - bom ou mau - por razões especiais, mas que se sente como todo "mundo" e, certamente, não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais" (A Rebelião das Massas, p. 45)
Filisteu da cultura
Encontramos no "filisteu da cultura" um dos principais avatares do "homem-massa" tal como delineado por Ortega y Gasset em A Rebelião das Massas. O "filisteu da cultura", conceito criado pela intelligentsia alemã do período oitocentista e analisado filosoficamente por Nietzsche na sua Primeira Consideração Intempestiva, se satisfaz plenamente com o cotidiano da vida privada pacata e confortável, não sendo capaz de estabelecer para si próprio a realização de quaisquer tipos de projetos superiores, mas apenas propostas práticas passíveis de ser contabilizadas em melhorias para a sua vida privada imediata. Ao "filisteu da cultura" nada mais interessa do que cumprir as determinações burocráticas que lhe são impostas pelo meio social e, realizando tal intento, poder dormir placidamente sobre os louros da vitória.
imagem: shutterstock


A confonfonfiguração valorativa do "homem-massa"
não segue parâmetros sociais ou econ ômicos específicos


                                                                                                                   

O desenvolvimento da indústria promoveu a inserção cada vez mais vertiginosa dos bens culturais no sistema de mercado, promovendo assim a vulgarização da arte e das realizações culturais. Podemos afirmar que o maior malefício cultural promovido pela obtusidade intelectual e existencial do tipo "filisteu" ocorre quando ele detém o poder sobre as instituições artísticas e educacionais, pois essas organizações passam a ser gerenciadas pela óptica do lucro imediato e da comercialização das realizações culturais, que se tornam assim meros objetos consumíveis e, por conseguinte, descartáveis. Esse dispositivo comerciário, incompatível com o florescimento autêntico da vida cultural, se manifesta até mesmo na mercantilização do ensino pela especulação empresarial.
A burocracia nos diversos setores sociais também é fruto da ação deletéria do "homem-massa", pois impede que as ações humanas se desenvolvam com a agilidade necessária para que elas motivem a transformação para melhor da sociedade. A burocracia institucionalizada faz que as forças criativas dos indivíduos se cristalizem e, por conseguinte, fiquem estagnadas. Quando o espírito burocrático atua no âmbito do sistema educacional, por exemplo (veja box abaixo), os malefícios intelectuais são evidentes: ausência de estímulo para a constante superação das competências profissionais, submissão aos valores normativos estabelecidos, supressão dos ideais progressistas e desmotivação intelectual. Um dos maiores responsáveis para essa degradação da experiência de ensino ocorre pela interferência de questões alheias ao desenvolvimento do saber e da troca de conhecimentos na realidade pedagógica, ao se criar parâmetros avaliativos para a classe de estudantes, homogeneizada em sua raiz, e para o próprio professor, obrigado a se submeter a um sistema castrador de seu próprio potencial didático.
Favorecer o comum

Na contramão, Ortega y Gasset ressaltou a multidão ao discutir o advento do homem-massa
Ora, uma vez que a estrutura escolar não pretende favorecer o desenvolvimento da exceção, mas o comum, não é estranho vermos a instituição de ensino como um instrumento promotor da estagnação das forças criativas dos indivíduos. Projetos educacionais e planejamentos econômicos são instâncias diametralmente opostas, mas na realidade da sociedade de massas tal intercessão é a regra. Quando uma instituição de ensino promove a facilitação dos conteúdos didáticos como forma de promover a progressão dos estudantes, ela gera a supressão da disciplina intelectual necessária para que o aluno possa continuamente se esforçar em prol da aquisição de novos patamares cognitivos. Tal como afirma Ortega y Gasset, "o 'homem--massa' jamais teria apelado para qualquer coisa fora dele se a circunstância não o tivesse forçado violentamente a isso. Como as circunstâncias atuais não o obrigam, o eterno 'homem-massa', de acordo com sua índole, deixa de apelar e se sente senhor de sua vida" (A Rebelião das Massas, p. 95).
A sociedade tecnicista faz triunfar os valores da massificação da cultura e o nivelamento por baixo entre os indivíduos, pois o ato de despertar da singularidade é considerado prejudicial para a manutenção da ordem pública, que se sustenta pela homogeneização dos comportamentos e qualidades humanas. Por conseguinte, vive-se sob o império moralista da "igualdade absoluta", pois nesse sistema de padronização extrínseco da vida humana é considerado como algo moralmente indecente a singularização individual. Conforme destaca Ortega y Gasset: "a massa faz sucumbir tudo o que é diferente, egrégio, individual, qualificado e especial. Quem não for como todo mundo, quem não pensar como todo mundo, correrá o risco de ser eliminado" (A Rebelião das Massas, p. 48).

Filisteu da Cultura
é o tipo humano que avalia as criações superiores do espírito humano a partir de critérios puramente materiais, mensurando sob o mesmo padrão avaliativo a Arte, a Cultura e as necessidades corriqueiras da existência
Ensino de massa
Não é de se estranhar quando um "filisteu da cultura" que, porventura, venha a conquistar o cargo de diretor de uma escola diz que o "estudante é um cliente", discurso muito próximo ao da ideologia comerciária que dá ao freguês a razão incondicional sobre todas as coisas, impedindo que o indivíduo saia do estado de menoridade intelectual e vivencie com responsabilidade as suas escolhas e decisões existenciais. Tanto pior, o "filisteu da cultura" infiltrado no sistema educacional interferirá continuamente no planejamento pedagógico da instituição ao vislumbrar obter o lucro incondicional, pois a sua relação com a cultura superior é absolutamente artificial, movida apenas pelo aproveitamento usurário dos bens educacionais. Explorando as capacidades profissionais dos professores, o diretor-burocrata, alheio ao autêntico espírito educacional, exigirá de cada docente a máxima dedicação aos seus afazeres, sem que, todavia, lhes forneça condições adequadas para o exercício das suas funções pedagógicas.
A s escolas, em geral, promovem a legitimação da massificação da cultura, pois os estudantes se encontram na obrigação imediata de se adequarem intelectualmente aos parâmetros pedagógicos estabelecidos pelo sistema de ensino, regido por uma lógica burocrática estranha ao plano imanente da sala de aula; mais ainda, torna-se praticamente impossível que um estudante seja avaliado singularmente em suas competências específicas, circunstância que o torna mero número diante da lógica fria dos fluxogramas acadêmicos.
No sistema de ensino massificado, o estudante é despojado de tudo aquilo que lhe é singular para que possa se tornar "igual" aos demais, e tal objetivo se realiza não apenas pelo uso do uniforme escolar, mas acima de tudo pela uniformização do pensamento. Por conseguinte, a escola regida pelo sistema burocrático e massificador de valores, em vez de promover a afirmação da criatividade humana e da cultura, motiva em verdade a barbárie. Por tal motivo a escola pode ser considerada como uma esfera normativa da sociedade de massa, pois ela sutilmente "educa" o indivíduo a ser, desde a sua infância, uma pessoa desprovida de senso crítico para que assim viva sempre ao serviço da realização plena da ordem estabelecida. Para isso, tal pessoa deve se adequar à autoridade pedagógica, mantenedora do projeto burocrático da "sociedade de iguais". A moral de rebanho não se manifesta, portanto, apenas na esfera religiosa de caráter repressor da ousadia da singularidade, mas também no âmbito educacional, catequizando os indivíduos na cartilha da "igualdade".
A globalização também traz tendências "culturais" da massificação do gosto e a degradação da experiência estética das cidades e de toda a sociedade

     Estamos sob a constante ameaça de, na decadente conjuntura da degradação cultural promovida pelo nivelamento vulgar das qualidades humanas, vivermos sob o jugo da "ditadura da massificação", na qual é diluído todo destaque pessoal, todo brilho singular. Esse sistema normativo impede o florescimento de disposições agonísticas entre os indivíduos, processos rigorosamente interativos que, mediante o embate de qualidades, faz vencer aquele que no momento da oposição é o mais apto. Entretanto, o espírito massificado não quer "viver perigosamente" e, desprovido de sentimentos que instigam ações transformadoras, vive confortavelmente na sua medíocre banalidade existencial. Dessa maneira, ocorre a vitória social do "homem-massa" que, incapaz de se realizar como ser humano no decorrer da sua existência e se destacar por seus méritos intelectuais, culturais e valorativos, não mede esforços para impedir que outros o façam. O "homem-massa", nessas condições, atua sob a influência do espírito de ressentimento, caracterizado pelo ódio figadal contra o indivíduo que consegue dar vazão aos seus impulsos criativos e, assim, realizar ações extraordinárias para maior benefício da cultura social. Afinal, nada mais desagrada ao homem sem qualidades superiores do que ver o triunfo dos indivíduos ousados, capazes de se destacarem socialmente por seus méritos pessoais. O talento é o maior fantasma para a mediocridade. Tal como enunciado por Ortega y Gasset, "a característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte" (A Rebelião das Massas, p. 48).
A moda tenta pregar nos consumidores uma ideia de destaque, mas insere o indivíduo na massificação orgânica ao fazer seguir os preceitos de uma tendência ditada e homogênea

A indústria da propaganda e do slogan cria na população a vinculação entre a mercadoria e a felicidade
Slogans e publicidade
A massificação do gosto vem atender também ao estado de degradação da experiência estética da sociedade moderna, na qual se elaboram tendências "culturais" padronizadas para determinados grupos sociais, exigindo simultaneamente pouca reflexão e grande capacidade de assimilação das tendências projetadas a cada estação. Como o "homem-massa" segue afoitamente as palavras de ordem de slogans e os mandamentos seculares dos ícones sociais explorados pela publicidade (instrumento por excelência do processo massificador da sociedade), sua mente se torna um grotesco depositário de ideias heteróclitas, perdendo assim qualquer autonomia nas suas escolhas. Vive-se, por conseguinte, conforme a "moralidade do impessoal", pois agir de forma destacada da coletividade anônima é algo ofensivo para o falso pudor da moderna civilização das massas; esta, em vez de promover o refinamento intelectual e cultural do indivíduo, se esforça acima de tudo por anular as próprias noções de singularidade e originalidade, criando blocos humanos desprovidos de personalidade, para que se possa assim melhor controlá-los.
Segundo Ortega y Gasset, "viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive, quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir" (A Rebelião das Massas, p. 73). Podemos dizer que nobreza é sinônimo de vida dedicada, sempre disposta a superar a si mesma, a transcender do que já é para o que se propõe como dever e exigência. A vida nobre se contrapõe à vida vulgar e inerte que, estaticamente, se restringe a si mesma, condenada à imanência perpétua, a não ser que algum fator externo a obrigue a reagir. Por isso, chamamos massa a esse modo de ser homem - não tanto por ser multitudinário, mas por ser inerte.

O ato de despertar da singularidade é considerado
prejudicial para a manutenção da ordem pública






A Educação também tem a sua forma de massificação ao tirar do aluno a possibilidade de expor o que lhe é singular e promover a uniformização do pensamento
A moda é uma grande promotora da massificação orgânica da sociedade regida pelo sistema de burocratização da existência, pois ao prometer de forma falaciosa ao consumidor a oportunidade deste se destacar gloriosamente dos demais ao adquirir determinado gênero, faz na verdade que tal sujeito siga o sistema aglutinador de massificação. Se, na Antiguidade grega, um indivíduo obtinha o reconhecimento social pela realização de feitos extraordinários que superavam o padrão ordinário, em nossa moderna ordem burocrática da existência conquistamos o reconhecimento público consumindo os produtos previamente estabelecidos pelos "sacerdotes" da massificação cultural.
Como ninguém quer ficar fora de moda e assim ser estigmatizado como "extravagante", todo um grupo social segue passivamente as palavras encantadas dos publicitários, que promovem uma relação fetichista entre a mercadoria e a felicidade que supostamente pode vir a ser alcançada mediante o consumo do produto alardeado. Acreditando se destacar do seio da massa ao usar determinada coisa, o indivíduo, ludibriado pela propaganda, chafurda ainda mais na essência da própria massa da qual pretensamente queria se emancipar.
A obra de Ortega y Gasset se revela, conforme vimos no decorrer deste texto, como um libelo contra a ameaça da supressão da singularidade do homem ocidental, oprimido continuamente por um ideário valorativo sectário da redenção da mediocridade diante da demonização da singularidade.
 
Povo marcado, povo feliz
O advento do homem massa cresce a cada vitória do capitalismo, que se mostra vertiginosamente eficiente, uma poderosa máquina de esvaziar reflexões e ideias próprias ao estimular o "ter" em detrimento do "ser", e fazendo com que pessoas busquem satisfação apenas no material. Esse processo favorece o mercado da propaganda, já que irreflexivos são mais maleáveis aos estímulos dos slogans. A necessidade do ter, entretanto, afunda ainda mais na massa os que seguem uma tendência específica ditada, caso que acontece na moda ou na necessidade de aquisição de bens do efeito da modernização e que movimentam o capitalismo. Exposições dessa nova realidade trazida com a globalização pelo mundo moderno é frequentemente encontrada nas expressões da Arte. Na Literatura, o escritor inglês Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, descreve uma sociedade em que pessoas vivem uma harmonia seguindo uma série de regras para qual foram condicionadas biológica e psicologicamente. Drogas e sexo são estimulados e o amor reprimido para extirpar qualquer forma de revolução e estabelecem uma ordem por meio do conformismo. O cantor Zé Ramalho, numa clara referência ao romance de Huxley, compôs, no final dos anos 70, em um período de ditadura no Brasil, a música de denúncia social chamada Admirável Gado Novo, exaltando os mecanismos de alienação tão presentes na época e que vemos crescer nos dias de hoje.


Referências
NIETZSCHE, Friedrich. Consideraciones Intempestivas, 1 - David Strauss, el confesor y el escritor. Trad. Esp. de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2000. ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Trad. de Marylene Pinto Michael. São Paulo: Martins Fontes, 2002.



domingo, 10 de outubro de 2010

Sentido ético do eterno retorno em Nietzsche, por Suze Piza e Daniel Pansarelli*


O conceito que não tinha um compromisso com o que se convencionou chamar de coerência racional e que pregava a honestidade instintiva.


Por Suze Piza e Daniel Pansarelli*

A inconstância, talvez, possa ser tomada como o mais constante elemento que atravessa a obra filosófica de Friedrich Nietzsche. Desde seus primeiros escritos, a presença da figura dionisíaca – ainda que ao lado da outra, apolínea – marca o descompromisso de Nietzsche com a coerência racional, ou, dito de outra forma, seu compromisso com a honestidade humana, esta que ora se manifesta correta e logicamente (Apolo), ora é puro instinto, contradição, desejo (Dionísio). Lamentavelmente, o desenrolar-se da história do Ocidente teria favorecido a característica racional dos seres humanos, levando-os à constante repressão de seus instintos e desejos. Racionalizado historicamente além do que lhe é natural, estamos hoje, segundo Nietzsche, diante desse homem distorcido, amputado de sua plenitude de ser.
do autor já demonstram sua preocupação com a inconsciente abdicação, pelos homens, de seus desejos instintivos. Se Apolo e Dionísio, como metáforas representativas da constituição do ser, são figuras presentes em O Nascimento da Tragédia, de 1871, as consequências da deformação ocidental deste humano, por meio da valorização do racional em detrimento do instintivo, parecem ser o motivador da busca procedida por Nietzsche em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral, de 1873. Nesse breve texto, o autor acusa: a humanidade habituou-se a “mentir em rebanho”, a aceitar como verdadeiras as construções falsas, improváveis ou impossíveis de se comprovar, apenas por serem estas as construções aceitas pelo conjunto da sociedade.
A distorção de valores ocasionada pelo necessidade de aceitação social, o que leva os tantos e fracos a mentirem em rebanho, tem como desdobramentos dois complicadores à construção de uma ética que possa, efetivamente, ser compreendida como tal. A primeira, e talvez mais superficial dessas complicações, envolve a impossibilidade de se determinar o que poderia, de fato, ser considerado como um agir ético. Em sua argumentação, Nietzsche explica: nada sabemos sobre a “honestidade”, mas tão-somente sobre ações isoladas, cada distinta da outra, as quais nós, arbitrariamente e descartando sua individualidade, atribuímos um sentido comum, dando-lhe o nome “honestidade”. Só assim, pela arbitrária imposição de características comuns a ações distintas, chegamos a um conceito, fictício, o qual defendemos infundadamente como ético. Um sujeito encontra uma carteira e devolve esta a seu dono com todo o conteúdo; outro ajuda uma pessoa idosa a atravessar a rua, sem tirar proveito dessa pessoa; dessas duas ações, não participa nenhum elemento que carregue o nome “honestidade”, mas, ainda assim e sem explicações adicionais, chamamos ambas de ações honestas; mais que isso, identificamos a honestidade com a postura ética. Ora, nada há de “honestidade” em nenhuma dessas ações: na primeira, há uma carteira, um dono e a devolução; na segunda, duas pessoas e uma rua a ser atravessada. Nada mais. Qualquer tentativa de aproximar duas ações tão distintas só pode fundar-se na ficção inventada por alguém e irrefletidamente acompanhada pelo conjunto da sociedade, pelo “rebanho humano.”
Mas o problema de uma verdadeira ética humana tem suas raízes mais profundamente estabelecidas, chegando à própria constituição deste homem que habita o mundo presente. Após tantos séculos sofrendo e, depois, aceitando as distorções impostas ao seu próprio ethos, ao seu modo de ser no mundo, passadas tantas e tantas gerações em que a racionalidade apolínea imperou, restringiu, coibiu, castrou o desejo e o instinto dionisíacos, o próprio homem parece ter-se perdido. Aceitar acriticamente modelos éticos impostos, viver como gado humano, é consequência, não causa. A origem desta aceitação parece estar, segundo Nietzsche, na própria distorção da humanidade do humano. Este ser mais racional que instintivo não representa o pleno desenvolvimento da potencialidade humana ou, para dizer de maneira aristotélica – e, portanto, recriminada por Nietzsche –, este ser tal como descrito representa a atualidade do homem, não sua potência. Mas há, ainda, em alguns, a vontade de potência. O desejo – dionisíaco – de deixar de ser assim, tão humano.

O último homem e o além-do-homem

A reflexão acerca da condição humana, a partir de Nietzsche, leva à pergunta: que homem é esse que vemos pela nossa janela? Que homem é esse que vemos ao olhar no espelho? Segundo o autor, um homem que vive entre a felicidade, por um lado, e segurança, comodidade, ausência de dor, por outro. Essa vida não parece problemática à primeira vista. Mas só à primeira vista, pois se olharmos mais de perto: onde está o homem?
O homem foi apequenado, amesquinhado, o tipo-homem moderno é uma possibilidade histórica infeliz, a menor das possibilidades, de tantas que poderia ser. O último homem, tal como Nietzsche caricaturiza-o, é o animal de rebanho, esse animal que almejou o advento da felicidade, o desaparecimento da desigualdade, da injustiça e do sofrimento e que, conseguindo realizar parte desses projetos, está numa vida amorfa e é fisiologicamente decadente, pois é impotente para sofrer e impotente para suportar o sofrimento, é fraco, humilde, subserviente, é um sujeito (aquele que se sujeita a).
Que conceito de felicidade é esse, almejado e conquistado? É uma felicidade pequena, domesticada, dominada por freios sociais: segurança, bem-estar, estabilidade? Que felicidade poderia haver nisso? Isso é antivida. É vida não intensa, não experimentada, não trágica. A intensidade é condição necessária de toda grandeza, é a possibilidade de elevação do tipo-homem que está num estado de mediocrização (Mittelmässigkeit), redução da vida a relações de mercadorias, prazeres pequenos, rotinas entediantes, uma vida envolta por maquinaria, como vai dizer Heidegger mais a frente; corpos adestrados, como dirá Foucault. O homem foi sucateado, enquanto a Terra é racionalizada e administrada.
Nietzsche vê no modo de vida moderno uma anulação da subjetividade humana, em que a individualidade se perde, e em que impera a massa de rebanho, o espírito gregário e o consequente embotamento do indivíduo. Ele é, sem dúvida, o grande teórico e crítico da modernidade, que faz, para usar os termos do primeiro, uma “análise implacável de tudo que existe”. As poderosas teses levantadas por Nietzsche contra a religião, a moralidade e a Filosofia misturam a análise mais crua, inspirada no Iluminismo, com uma vitalidade romântica, para atacar os aspectos da cultura moderna que contrariam a vida. Essa é uma Filosofia da vida, vitalista. Nietzsche é um autor bombástico que não tem receios de produzir uma Filosofia a golpe de martelo. Sua crítica ferrenha à modernidade passa pela despersonalização dos indivíduos e pela formação social que cria um homem, segundo ele, fraco, humano, demasiadamente humano.
Defendendo que o homem é a somatória de impulsos, desejos e vontades, acredita que a visão de animal racional aceita pelo Ocidente como definidora do ser humano é equivocada, pois a razão é um produto cultural, social. A razão seria fruto de uma vida gregária que só surge em decorrência das circunstâncias as quais os indivíduos foram expostos.
Vivendo no mundo da razão e, portanto, valorizando a consciência como seu espaço privilegiado, o ser humano cria uma série de regras morais de convivência que o limitarão como ser humano. Dentre essas morais, o cristianismo é a que Nietzsche dedica mais tempo e espaço de reflexão. O cristianismo representa para Nietzsche uma moral dos fracos, pois valoriza o servilismo, a humildade, a aceitação, o conformismo com um tipo de sofrimento que só retrai, submete.
O cristianismo seria o legítimo formador de uma massa de rebanho, sem força, individualidade ou autonomia. Seria uma moral massificadora e de escravos. A modernidade, vitimada pelo capitalismo e herdeira da moral cristã, será fatal para as possibilidades da vida humana.

A antropologia nietzschiana passa pela defesa de uma superação desse humano que aí está. Na defesa de um super-homem que teria em si resguardada a força, os instintos e os desejos, rejeita-se o homem que surgiu do tipo de sociabilidade que criamos. O homem seria o meio entre o animal e o super-homem. A defesa do super- homem, em última instância, representaria um ultrapassamento da modernidade. O retorno do homem a si mesmo, resgate daquilo que perdeu quando se tornou consciência.
Numa perspectiva vitalista, Nietzsche se apega na antiga concepção do mundo grego – entre os princípios apolíneos e dionisíacos, quando estes estavam em vigência, e advoga em favor da vontade humana.
E é em meio a esse contexto de domesticação do homem que se gesta o seu contrário, é aí que Nietzsche desenvolve seu conceito de “além-do-homem” (Übermensch) como contramovimento, visando fazer face à mediocrização em andamento na modernidade, que infelizmente toma consciência de si na figura histórica do niilismo europeu1 . Quem é o alémdo- homem? É a representação da vontade de potência, da força e do desejo, da experiência que perfura e fortalece. O além-do-homem é da arte, da vida, do corpo, amoral. Indivíduo soberano, autêntico, é uma espécie de homem mais desenvolvida. Essa seria, portanto, uma existência sobre-humana, radicalmente singular, corporal, singular, livre.
Essa vida é vida de 1fato! E essa vida vale a pena ser vivida. Uma vida de experiências intensas, de contato com a terra, de realizações de desejo, de exercício da vontade. Uma vida que ao morrer seria mais que morte, seria consumação, combustão. O avesso da morte em vida do último homem, o além-do-homem acaba, esgota-se de tanta vida, a morte é apenas o acabamento de uma existência vivida em sua intensidade. Essa vida valeria ser vivida tantas vezes quanto fosse possível. O eterno retorno de Nietzsche pode ser interpretado como um recurso hipotético de validação da vida: eu viveria tantas vezes quanto fosse possível a mesma vida, pois ela foi, de fato, vivida. O conceito funciona também como um princípio ético, um imperativo que sai em defesa da vida e do corpo: “Age de tal maneira que tua vida possa ser vivida tantas e tantas vezes exatamente da mesma maneira”.


O eterno retorno, regra de ouro

A proposição do eterno retorno, tal como formulada por Nietzsche nos textos de 1881, é uma regra de ouro para o julgamento da eticidade da vida. Se o ser humano não tem em si mesmo o referencial para julgar a qualidade de sua vida – para julgar se vive ou não uma “boa vida” –, visto que se deformou historicamente, e sabendo que não pode confiar na razão (vilã da deformação humana) como critério para fazer este mesmo julgamento, o eterno retorno apresenta-se como possível parâmetro à valoração ética da vida.
Viver a mesma vida já vivida desde o nascimento até hoje, sem a possibilidade de transformar nada, sem alterar nenhuma escolha, sem suprir sequer uma omissão. Mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de viver eternamente esta vida até então transcorrida. Essa é a condição. Para aqueles poucos que vivem a boa vida, autenticamente, essa condição será desejosa: valerá a pena viver eternamente repetindo os mesmos atos, vendo a ampulheta de sua vida virar-se outra e outra vez. Para a grande massa, aquele “rebanho”, a situação seria odiosa, desesperadora. Aqueles que se resignam no presente, buscando relegar a um futuro – que, a bem da
verdade, não esperam concretizar – o que verdadeiramente desejam, esses abominam a vida eterna e circular. Por isso, o eterno retorno é uma regra de ouro da ética. A única que permite a cada um, em sua mais honesta individualidade, projetar e, principalmente, realizar a vida ética, a vida que vale ser vivida. Uma vez. E outra. Mais outra...

1 A reflexão trazida por este texto encontra respaldo no texto de Oswaldo Giacóia Jr., Críti ca da moral como políti ca em Nietzsche.

*SUZE PIZA é mestre em Filosofia pela UNICAMP. Atualmente, é doutoranda em Filosofia pela UNICAMP e professora assistente da Universidade Metodista de São Paulo ministrando aulas em diversos cursos da universidade na área de Filosofia. 

*DANIEL PANSARELLI é doutor em Educação (Filosofia e Educação) pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Educação e graduado em Filosofia pela Universidade Metodista de São Paulo. Atualmente, é professor na Metodista, onde coordena o curso de pós-graduação em Filosofia Contemporânea e História.

 

Apolo
 
Filho de Zeus e Leto e irmão gêmeo de Artemis, foi um dos principais deuses da mitologia greco-romana. É o deus da beleza, da juventude, da luz, do sol e da música. É o fundador do oráculo de Delfos, que tinha o objetivo de dar conselhos aos gregos por meio da sacerdotisa Pitonisa. Porém, diz a lenda que suas flechas podiam causar doenças aos homens.


 

Foucault

Importante filósofo francês nascido em 1926 e falecido em 1984. Publicou seu primeiro livro Doença Mental e Personalidade, em 1954. Encontrou em Nietzsche sua fonte de inspiração. Usava uma linha de pensamento mais “contextualista”, ou seja, analisava somente as interpretações feitas ao longo da História.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Epicurismo: o prazer como missão


A doutrina da antiguidade clássica pregava a satisfação (moderada) e zombava do destino.


por Liliane Prata*

Os gregos antigos estavam habituados a fazer uma série de especulações místicas e filosóficas a respeito da morte. No campo supersticioso, a vontade dos deuses e os caprichos do destino permeavam explicações para o fim da vida. Na filosofia, discutia-se a ligação da alma com o corpo e ensinavam-se maneiras de se lidar com o medo da morte. Sócrates (470-399 a.C.), diante da preocupação acerca do tema, ensinava que “filosofar é aprender a morrer”. Mas, no fim do século IV a.C., eis que uma escola inovadora abria suas portas ou, melhor dizendo, seus jardins, em Atenas. O mestre, Epicuro (341-270 a.C.), não só considerava sem sentido as angústias em relação à morte, como ria do destino e pregava que o sentido da vida era o prazer. Nascia o epicurismo.
O papel da filosofia, para Epicuro, é bem claro: cuidar da saúde da alma. Assim como a medicina precisa se ocupar dos males do corpo, a filosofia só tem valor se cuidar dos da alma, longe de consistir num discurso vazio e abstrato. O discípulo Diógenes de Oenoanda resumiu a sabedoria do mestre em quatro “remédios” de cunho bem prático: 1) Os deuses não devem ser temidos; 2) A morte não deve amedrontar; 3) O bem é fácil de ser obtido; 4) E o mal, fácil de suportar.
Comecemos pelo não temor aos deuses. Epicuro não era ateu, como foi acusado por alguns. Ele acreditava na existência dos deuses, mas sustentava que estes eram indiferentes aos humanos. Serenos, as deidades habitariam um plano perfeito, não nutrindo nenhum interesse pelas coisas que acontecem aqui embaixo. Assim, é inútil temê-los ou se preocupar com castigos. Ter medo do destino é igualmente desnecessário:ele não é tecido por forças divinas, mas escrito pelos humanos.
Voltemos, agora, ao tema da morte. Para os epicuristas, simplesmente não faz sentido se preocupar com ela. Acompanhe, leitor, o raciocínio: quando um ser humano existe, a morte não existe para ele. Quando ela existe, ele é que não existe mais. Assim, nós nunca nos encontramos com nossa morte – nossa existência nunca se dá ao mesmo tempo da existência dela. Logo, ocupemos nossas mentes com a vida e desfrutemos dela. E qual é o maior bem que podemos usufruir? O prazer. Ah, o prazer!
Mas, calma lá. A noção de prazer, no epicurismo, é extremamente refinada. Não se trata de uma busca desenfreada pela fruição do momento presente, como era para outro grego, Aristipo de Cirene (435-366 a.C.), conhecido por pregar o hedonismo. O prazer do epicurismo é calmo e sereno. O sábio deve evitar a dor e as perturbações, levando uma vida isolada da multidão, dos luxos e excessos. Colocando-se em harmonia com a natureza, ele desfruta da paz. Epicuro condena a renovação a qualquer preço e a ânsia pela mudança, pregando uma espécie de prazer tranquilo.
Para vivenciar esse prazer, é fundamental evitar a dor, como ensina o quarto remédio de Diógenes. A tarefa não é difícil para Epicuro. Diferentemente da postura desapegada em relação ao passado e ao futuro, característica dos seguidores do estoicismo – corrente filosófica contemporânea e rival à de Epicuro –, os epicuristas afirmavam que, para amenizar momentos dolorosos, nada como se lembrar de alegrias passadas ou criar expectativas felizes em relação ao futuro. E não pense que o mestre ensinava sem conhecimento de causa: ele mesmo sofria dores constantes, em virtude de uma grave doença que o acompanhou em grande parte da vida.

Amizade nas escolas
Um dos valores defendidos pelos epicuristas é a amizade. O sábio, compreendido somente por outro sábio, vive melhor longe da multidão e da confusão da cidade, mas nem por isso deve seguir solitário: Epicuro considerava a amizade uma grande felicidade e repreendia os que pretendiam passar a vida sem ela. Aliás, a própria escola, fundada em 306 a.C., era um espaço de convivência entre amigos. “Na Grécia Antiga, as escolas eram bem diferentes das de hoje”, explica Marco Zingano, professor do departamento de Filosofia da USP. “Lá, as pessoas viviam, dormiam, conversavam. Era um verdadeiro espaço de convivência.” Diferentemente de outras escolas, como o Pórtico, dos estóicos, a de Epicuro ficava em um lugar afastado na cidade, funcionando como um calmo retiro, como convinha aos ensinamentos da doutrina. Como a escola situava-se em um grande jardim, os discípulos, na época, ficaram conhecidos como “Filósofos do Jardim”.


*Liliane Prata é jornalista e graduanda em Filosofia pela Universidade de São Paulo.


Fonte: Revista Filosofia
Imagens: Arquivo pessoal.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Entrevista - Lápis, papel e muito debate

Desde o momento que o ensino da filosofia passou a fazer parte da vida dos jovens estudantes brasileiros, o panorama atual das salas de aula espalhadas pelo País mudou e abriu novas possibilidades para professores

por Karina Alméri e Edgar Melo

É comum encontrarmos professores, pedagogos e especialistas das diversas áreas do ensino criticarem a falta de percepção e senso crítico dos alunos que têm no ensino público sua única fonte para contextualizar a realidade de seu cotidiano. Retiradas do currículo obrigatório do ensino médio durante o regime militar (1964-1985) e substituídas por educação moral e cívica e OSPB, a sociologia e a filosofia voltaram com força total. Agora, Platão, Nietzsche e Bobbio dividem espaço com as matérias e temas convencionais e com as novas mídias sociais e aparelhos eletrônicos que fazem a cabeça dos jovens.

Para falar dessa evolução e, principalmente, do impacto da filosofia na vida dos alunos de ensino médio escalamos o doutor em Filosofia Antiga pela USP, professor e orientador do programa de mestrado da Universidade São Judas Tadeu e da Escola Nacional Florestan Fernandes, ex-professor do ensino Fundamental e Médio da Escola Carandá, Paulo Henrique Fernandes Silveira.

Nesta entrevista, o professor é enfático em lembrar Epicuro: “nunca é cedo demais, nem nunca é tarde demais para filosofar”.

LEIA A SEGUIR OS PRINCIPAIS TRECHOS DA ENTREVISTA:

CONHECIMENTO PRÁTICO FILOSOFIA - Do ponto de vista filosófico, o que é educação?

Paulo Henrique Fernandes Silveira - Não há “um único” ponto de vista filosófico. Felizmente, como analisa Olgária Matos no livro “Filosofia – a polifonia da razão, filosofia e educação”, a diversidade de discursos e de vozes é uma característica da filosofia ocidental. Mesmo entre os antigos, havia muitas maneiras de se pensar a educação ou a formação das pessoas, o que os gregos chamam de paideia. No clássico: Paideia – a formação do homem grego, Werner Jaeger mostra como, nas diversas concepções do termo, a paideia expressa um ininterrupto processo de transformação do homem. Para os gregos, a educação estava ligada às ideias de liberdade e de felicidade. A alegoria da caverna, livro VII da República de Platão, ilustra esse movimento de libertação dos hábitos e dos preconceitos arraigados na sociedade.

CP FILOSOFIA - Em que a filosofia pode contribuir para formação dos alunos?

Paulo Henrique Fernandes Silveira - Na obra “Fedro”, Platão sugere a necessidade de uma certa ousadia do aluno. Afinal, se a filosofia nos ensina a pensar por conta própria, até o mestre deve ser “traído” em algum momento. Não me lembro se aprendi isso com Olgária Matos ou com Marilena Chauí, mas a paideia relaciona-se com o brincar, em grego: paizo. A brincadeira é uma forma de aprendermos a trocar de papel com aqueles que admiramos, até passarmos a pensar sozinhos. Ao comentar o livro de Jaeger, o filósofo Martin Heidegger acrescenta que a paideia é um exercício de amor à humanidade, como se de tanto atravessarmos os caminhos pensados pelos outros, aprendêssemos a entender aqueles que escolhemos e os que não escolhemos seguir.

CP FILOSOFIA - Qual o objetivo do ensino de filosofia para crianças?

Paulo Henrique Fernandes Silveira - Nunca é cedo demais, nem nunca é tarde demais para filosofar, diz Epicuro, como nunca é cedo ou tarde para procurarmos a felicidade. Alguns textos de filosofia não são leituras indicadas para um garoto ou uma garota de colégio, bastam os clássicos da literatura que o vestibular os obrigam a ler. Preocupado com essa questão, o americano Matthew Lipman idealizou um interessante método pedagógico, em muitos pontos, como defende o professor da Unicamp René Silveira, semelhante ao de Paulo Freire. Segundo Lipman, o objetivo do ensino de filosofia para crianças é instigar a reflexão e o diálogo entre os alunos. Para tanto, não é preciso ler a “Crítica da Razão Pura” de Kant ou as “Meditações Metafísicas” de Descartes.

CP FILOSOFIA - Até onde podemos caminhar com a filosofia e as crianças em uma escola?

Paulo Henrique Fernandes Silveira - Pode-se discutir com os alunos uma notícia de jornal que instigue o diálogo sobre os limites da razão ou a abrangência da dúvida. A sala de aula se transformaria em uma “comunidade de investigação”, onde o mestre não é o porta-voz do conhecimento, mas o articulador do debate. A ideia original de Lipman é que a capacidade de dialogar, ou seja, de saber ouvir e de expressar as ideias, é uma ferramenta fundamental para a filosofia. Por outro lado, se bem me lembro das aulas do professor Celso Favareto, na Faculdade de Educação da USP, há um grande risco de que o método de Lipman possa criar uma imagem simplista da filoso fia, e que convide todos a serem filósofos, sem passar pela árdua tarefa de ler e de compreender as complexas teorias filosófi- cas. Mais ou menos como os jovens alunos que adoram rabiscar versos poéticos, mas não se interessam muito por Drummond ou Bandeira. De todo modo, retomando a tese de Olgária Matos, que Celso Favareto coloca em prática em suas aulas, a proposta de Lipman insere-se na polifonia filosófica e indica uma alternativa para um problema sério: a dificuldade cada vez maior que as pessoas têm em ser tolerantes umas com as outras e de reconhecerem a importância e o prazer do diálogo.

CP FILOSOFIA - Como você vê um aluno que não aprendeu a refletir?

Paulo Henrique Fernandes Silveira - A pessoa que não enfrenta a paideia, diria Platão, fica presa ao cárcere da mediocridade. Numa versão dos gibis de Maurício de Souza, o homem da caverna passa o tempo vendo TV e comentando sobre a vida alheia. Além de ter uma vida besta, aquele que não sabe brincar de mudar de papel se coloca como senhor absoluto de todos os julgamentos, um tirano dos outros e de si mesmo. Estimulando o diálogo e a reflexão, a escola contribui para uma formação mais humanista.

CP FILOSOFIA - Quais danos intelectuais isso pode gerar para um estudante?

Paulo Henrique Fernandes Silveira - Talvez esse aluno não se transforme em um bem sucedido homem de negócios. Mas certamente ele tem grandes chances de se fazer um adulto criativo e inquieto, sempre buscando desafios, como Lipman, que abdicou de uma posição importante na Universidade de Columbia para ensinar crianças da periferia do Bronx a pensar e a dialogar.

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República de Platão O mais reconhecido e famigerado dos trabalhos que Platão escreveu lançou as bases da cultura ocidental. A República é uma das obras obrigatórias e lembrada como determinante para a formação dos novos filósofos. Por mais de dois mil anos, tem sido a pedra angular da reflexão política e filosófica do homem.

Bronx Bairro de Nova York conhecido por ter sido o lugar onde nasceu o hip hop e a salsa. Nos primeiros anos do século 20, abrigou os mais diversos imigrantes como irlandeses, alemães, italianos e judeus do Leste Europeu. Todos procuravam aluguel barato e oportunidade. Durante os anos de 1970 foi marcado pela violência e conflitos étnicos e raciais.

Fonte: http://conhecimentopratico.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/19/artigo147860-1.asp

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