sábado, 25 de setembro de 2010

Descartes - A Razão, por José Francisco Botelho




Com sua fé racional e metódica, o filósofo francês inaugurou a modernidade varrendo o entulho no terreno da mente.


Considerado por muitos o fundador da filosofia moderna, o francês René Descartes foi um dos mais charmosos heróis e um dos mais atacados vilões na história do pensamento. Matemático brilhante e cientista profundamente inspirado, ele legou à reflexão filosófica certo viés mecanicista que ainda não a abandonou de todo – por isso foi acusado de plantar uma semente de frieza no coração do pensamento ocidental. Contudo, foi esse amante dos números e das combinações geométricas quem produziu o sopro de vida mais revolucionário a enfunar as velas da filosofia desde os tempos de Aristóteles – e não é de espantar que sua jornada intelectual tenha dado frutos mistos. Paladino da razão, ele impôs a si mesmo uma missão demasiado formidável: encontrar um método unificado para a decifração dos múltiplos enigmas do universo, desde as profundezas da física até as alturas da teologia, passando pelos dramas da vida humana. Em sua busca impetuosa por conhecimento, Descartes estudou a trajetória dos astros, dissecou cadáveres, embrenhou-se em selvas algébricas, especulou sobre a natureza divina e tentou solucionar as misteriosas imbricações do corpo e da alma – aplicando a tudo a mesma fé racional e metódica.

Pensador de interesses infinitos, Descartes foi também um dos estilistas mais rematados e menos pedantes na literatura filosófica. Suas obras contêm voos narrativos de dar inveja a muitos ficcionistas – em vez de nos empurrar conclusões prontas, o autor dos clássicos Discurso do Método e Meditações Metafísicas preferiu narrar, passo a passo e com translúcida franqueza, os caminhos e descaminhos de suas reflexões. Ler Descartes é pensar junto com ele – e, mesmo quando discordamos de suas conclusões, é impossível não admirar a sinceridade e o esmero de seu relato. Nisso, ele simboliza o inverso daquela figura tão comum nos dias de hoje: a do especialista hermético, que jamais abandona a proteção e o conforto dos jargões. Espécie de romancista do pensamento abstrato, René Descartes quis dirigir-se de forma franca e compreensível a todos os seres dotados de razão e bom senso – e nisso ele triunfou com maestria poucas vezes igualada. Foi, acima de tudo, o filósofo da clareza.

Descartes - Filósofo, físico e matemático, René Descartes, o pensador que introduziu a dúvida na filosofia, nasceu na França em 1596 e morreu na gélida Estocolmo (Suécia) em 1650.

Cheio de opiniões Descartes nasceu na região francesa de La Touraine em 1596, no seio de uma família abastada. Sua mãe morreu de tuberculose antes que o filho completasse 1 ano; o pai era um ocupadíssimo magistrado que passava a maior parte do ano longe de casa. Pálido, frágil, sempre assolado por tosses e febres, René teve uma infância solitária e hipocondríaca. Aos 8 anos, foi estudar como interno no célebre colégio jesuíta de La Flèche – lá, a agudeza de sua mente logo se tornou tão proverbial quanto sua delicadeza física. Os professores permitiam que ele ficasse na cama até o meiodia, e o pequeno Descartes aproveitava as manhãs para devorar livros atrás de livros, bem acomodado entre travesseiros e lençóis (sem dúvida, um método dos mais eficazes para aquisição de conhecimento). As tardes eram dedicadas ao esporte típico de um cavalheiro: a esgrima. Apesar das tribulações respiratórias, René tornou-se um espadachim de respeito e chegou mesmo a escrever um tratado sobre armas brancas. O gosto pela solidão, a indolência matinal e a dupla habilidade com palavras e com floretes foram traços que o acompanhariam pelo resto da vida.

Entre os doutos jesuítas, Descartes desfrutou os rigorosos benefícios de uma educação clássica: leu os gregos e os latinos, encantou-se bem cedo pela poesia e encontrou na matemática a paixão de sua vida. Ainda muito jovem, contudo, seu entusiasmo erudito deu lugar a um crescente escândalo intelectual. Transitando pelas obras dos grandes filósofos de diversas épocas, Descartes não encontrou soluções definitivas para os enigmas da alma e do universo, mas uma infindável e encarniçada batalha de opiniões: Aristóteles quase sempre discordava de Platão; ambos eram desprezados pelos céticos, que por sua vez caíam na zombaria dos cínicos; e os batalhões de escolásticos medievais – todos igualmente sábios e pios – sequer concordavam em qual seria a melhor forma de provar a existência de Deus... Anos mais tarde ele escreveria em um de seus trechos autobiográficos: “Considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens excelsos, havia sobre uma única e mesma matéria, eu reputava quase como falso tudo quanto era apenas verossímil... Pois nada se poderia imaginar de tão estranho e de tão pouco crível que algum dos filósofos já não houvesse dito”.

Exasperado com tamanha algazarra, Descartes decidiu abandonar as querelas eruditas e buscar iluminação no “grande livro do mundo”. Em 1618, viajou aos Países Baixos e alistou-se no exército do príncipe de Orange, que combatia uma invasão espanhola (Descartes, que era católico sincero, combateu ao lado dos protestantes – mais uma interessante esquisitice na vida desse andarilho excêntrico). Mais tarde, serviu nas tropas do duque Maximiliano da Bavária, participando nos primeiros embates da Guerra dos Trinta Anos. Nessa época, a filosofia ainda era para ele mais uma inquietação que um ofício. Até que um dia, aos 23 anos, em meio a andanças militares, Descartes teve a revelação que mudou os rumos de sua vida.

No inverno de 1619, as tropas do duque Maximiliano da Baviera estavam estacionadas na aldeia de Ulm, no sul da Alemanha. A neve tombava com abundância e ventos gélidos varriam o lugarejo. O exército inimigo estava bem longe e os soldados não tinham muito que fazer. Para escapar ao frio, Descartes passava a maior parte do tempo enfurnado em um quarto aquecido, aproveitando o ócio para meditar. Como sempre, atormentava- o a velha questão: por que haveria tanta discórdia entre os sábios? Qual seria o método correto para decifrar o universo? No dia 10 de novembro, a resposta subitamente surgiu, na forma de uma metáfora arquitetônica. Descartes imaginou, primeiramente, uma cidade construída ao sabor das gerações humanas, com prédios acumulando-se ao léu. Em seguida, pensou em uma cidade perfeitamente planejada por um único arquiteto, com ruas alinhadas em traçado impecável. Por fim, concluiu: “Não há tanta perfeição nas obras compostas pela mão de diversos mestres, como naquelas em que um só trabalhou. Assim, os edifícios construídos por um só arquiteto são mais belos que aqueles que muitos tentaram reformar... E parece-me que as ideias que avolumaram pouco a pouco, compostas pelas opiniões de muitas pessoas, não se acham tão próximas da verdade quanto o simples raciocínio de um homem de bom senso”.
Autonomia mentalOu seja: na busca pela verdade, as ponderações de um único indivíduo podem valer mais que todo o peso das tradições acumuladas. O que Descartes descobriu no aconchego da estufa, enquanto a neve caía lá fora, foi o valor absoluto da autonomia intelectual. Para pensar corretamente, é preciso antes abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres; é preciso colocar em cheque todos os pressupostos, todas as filiações, todos os medos, e valerse apenas daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão.

O dom de distinguir o falso do verdadeiro existe em todos os homens, argumenta Descartes – o problema é que a maioria deles utiliza esse instrumento de forma rasteira, contentando-se com verdades parciais ou incompletas, que foram herdadas e não conquistadas. Antes de construir seu próprio edifício filosófico, Descartes decidiu varrer o entulho no terreno da mente – e só poderia fazer isso atacando impiedosamente os alicerces de tudo aquilo em que acreditava. Para chegar à mínima das certezas, era preciso mergulhar de cabeça no oceano da dúvida. E eis aí um dos aparentes paradoxos que fazem de Descartes um dos personagens inesquecíveis na saga do pensamento mundial. Racionalista fervoroso, sedento de verdades absolutas, o eclético espadachim de La Touraine duelou a vida inteira contra a incerteza – mas acabou concluindo que só se derrota esse portentoso adversário com as armas que ele próprio nos fornece. Duvidar metodicamente de tudo, até que a mente depare com algum princípio inquestionável – essa é a essência da “dúvida cartesiana”, cerne do método racional, que o filósofo-matemático tratou de aplicar a todas as equações do universo.

Descartes descobriu que, para pensar corretamente, é preciso abolir todos os privilégios e toda a autoridade dos mestres e valer-se daquilo que é comum à humanidade inteira: a razão

O primeiro alvo da dúvida cartesiana são nossas certezas mais imediatas – aquelas fornecidas pelos sentidos. Imerso em reflexão no calor da estufa bávara, Descartes se pergunta: será mesmo verdade que estou aqui, num quarto aquecido, com a neve a tombar copiosamente lá fora? Certamente, é isso que os sentidos afirmam – contudo, quando sonhamos, também acreditamos na realidade do sonho, e só ao acordar descobrimos que tudo foi ilusão... Para ilustrar o escopo radical de sua dúvida, Descartes elabora uma hipótese com delicioso sabor fantástico: imaginemos que o mundo seja governado por um espírito maligno; imaginemos que essa divindade embusteira tenha criado nossa mente com o único intuito de nos enganar; nesse caso, como poderíamos ter certeza quanto ao testemunho de nossos sentidos, ou mesmo quanto às verdades aparentemente óbvias da matemática? “Ora, quem me poderá assegurar que esse deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas coisas?”, escreve o pensador nas Meditações Metafísicas. “E pode ocorrer mesmo que esse deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado”. Ou seja: tudo o que vemos, ouvimos, pensamos e calculamos pode não passar de uma fraude cósmica, e o conhecimento humano talvez seja apenas uma magnífica tirada de humor diabólico.

E é precisamente nesse ponto, quando a consistência do conhecimento está prestes a se dissolver em sonho ou em pesadelo, que Descartes efetua sua estocada magistral: nem mesmo o mais poderoso dos demônios, nem mesmo o mais astuto dos deuses poderia me enganar e me iludir se eu não existisse. Ainda que eu duvide de tudo, não posso duvidar de minha própria dúvida e, por conseguinte, de meu próprio pensamento. Da dúvida extrema, Descartes faz emergir sua primeira certeza, cunhada na frase mais famosa da filosofia: “Penso, logo existo”. O pensamento, e não a matéria, é a evidência de que existimos – sobre essa verdade dura como pedra, arduamente resgatada no naufrágio das falsas certezas, Descartes ergue o monumento reformado de sua filosofia.

Após o período passado no exército, Descartes dedicou o resto da vida à reflexão. Exilou-se na Holanda, onde viveu totalmente sozinho, lendo, pensando, fazendo experimentos dos mais variados e relatando por escrito suas aventuras mentais. Por mais que buscasse a solidão, seus livros correram a Europa atraindo tanto discípulos quanto detratores – e o grande misantropo acabou vitimado por sua própria fama. Em 1649, a rainha Cristina da Dinamarca – que tinha suas veleidades intelectuais, como tantos monarcas da época – resolveu contratar Descartes como instrutor pessoal em assuntos filosóficos. Em uma carta, o pensador recusou educadamente o convite. Cristina insistiu, levemente ofendida. Com medo de incorrer na ira de uma soberana, Descartes acabou cedendo. Cristina exigiu três aulas por semana – todas às 5 da manhã. Por alguns meses, Descartes foi obrigado a acordar de madrugada, no inclemente inverno escandinavo – verdadeiro suplício para um dorminhoco hipocondríaco. Por causa dos caprichos de sua real pupila, o autor das Meditações Metafísicas foi fatalmente derrubado por uma pneumonia em 11 de fevereiro de 1650.

Mais que um método, mais que uma doutrina, ele nos deixou um símbolo. Seu intelecto ao mesmo tempo sereno e atribulado, oscilante entre o sonho e a realidade, sempre em busca de um inatingível graal filosófico, serviria nos séculos seguintes como um farol hipnótico para as mentes inquietas – e como eterno convite ou eterno desafio à coragem de pensar.

LIVROS
- Dicionário Descartes, John Cottingham, Jorge Zahar Discurso do Método, Descartes, L&PM P

Texto de  José Francisco Botelho | ilustração Estudio Area


Fonte: Revista Vida Simples

sábado, 18 de setembro de 2010

A lógica de Aristóteles, por José Francisco Botelho



“Amigo da verdade”, o pensador grego deixou uma obra incompleta que é uma das grandes maravilhas da humanidade



Seguidor e adversário de Platão e neto intelectual de Sócrates, Aristóteles (384-322 a.C.) foi o derradeiro luminar na era de ouro da filosofia grega: com ele, completou-se a tríade de pensadores antigos que mais infl uenciaram a história das ideias. Último rebento do período clássico, ele foi não apenas o pai da escolástica medieval, como também o grande pioneiro e o grande vilão da ciência moderna. Homem enciclopédico, ele tratou de quase todos os assuntos imagináveis entre a terra e o céu – e, por isso mesmo, legou fabulosos absurdos científicos (como a ideia de que a Terra é o centro do universo). Contudo, ele cometeu seus tropeços em uma época em que não havia telescópios, microscópios ou termômetros: é fácil (e cômodo) acusar os sábios do passado de ingenuidade ou estupidez, agora que temos em mãos os recursos acumulados por séculos de tentativas e erros. Por sinal, os cientistas modernos só desbastaram as arestas aristotélicas usando as armas que o próprio Aristóteles laboriosamente afiou: junto às falhas inevitáveis, ele nos legou raciocínios fulgurantes e métodos primorosos, que até hoje integram o mais fino arsenal do pensamento no Ocidente. E isso sem falar na filosofia islâmica, fortemente infl uenciada pela “espada de Aristóteles” – honroso apelido dado pelos antigos persas, rivais políticos dos gregos, ao legado de seu mais admirável inimigo.

Aristóteles Professor de Alexandre, o Grande, e considerado o “pai” da lógica, o filósofo grego atravessou os séculos graças a trabalhos rigorosos e inspiradores. De saber enciclopédico, Aristóteles especulou sobre praticamente todos os campos do conhecimento humano.

Modelo do erudito que une paixão e rigor, moderação e ímpeto, capaz de dedicar energias titânicas à serena análise do mundo, Aristóteles deixou uma obra incompleta e imperfeita que é uma das grandes maravilhas da inteligência humana. Considerado pela cristandade medieval como o pagão mais genial da Antiguidade, ele ganhou séculos após sua morte um cognome de sucinta reverência: Ille Philosophus, ou, simplesmente, “O” Filósofo. Para o bem ou para o mal, é nas pegadas desse gigante que andamos e meditamos há mais de dois milênios.

Discípulo e mestre

Embora tenha ganhado fama em Atenas, Ille Philosophus nasceu na cidade de Estagira, na região da Calcídica, dominada pela vizinha Macedônia. Desde criança, teve sede de conhecimento: praticamente todos os assuntos o interessavam, da biologia à literatura. Aos 18 anos, ele realizou o sonho da maioria dos jovens intelectualmente ambiciosos na época: foi estudar em Atenas, metrópole cultural da Grécia. Ingressou na Academia, escola fundada e chefi ada por Platão. Ao longo de 20 anos, Aristóteles foi o discípulo brilhante de um mestre incomparável. Mas havia meio século de diferença entre eles – além disso, ambos eram gênios, e isso signifi ca que mais cedo ou mais tarde acabariam brigando. Certa vez, Aristóteles alfi netou cortesmente o mestre em uma blague registrada pelos cronistas: “Platão é meu amigo, mas sou mais amigo da verdade”. O velho Platão replicou em espécie àquela petulância juvenil: “Aristóteles é como um potro selvagem, que escoiceia a própria mãe depois de lhe ter bebido todo o leite”.

Após a morte de seu tutor e rival, em 347 a.C., Aristóteles deixou Atenas e passou alguns anos vivendo como pensador itinerante pela costa do Mediterrâneo. Foi à Macedônia, a convite do então monarca Felipe II, que o encarregou de uma missão formidável: educar o rebelde e fogoso príncipe Alexandre. Assim, o discípulo do maior fi - lósofo da época tornou-se mestre do futuro conquistador do mundo conhecido. Aos 13 anos, Alexandre já era dado a bebedeiras homéricas e olímpicos devaneios de grandeza marcial. Nem mesmo os dotes professorais de Aristóteles puderam amansar aquele espírito nascido para o som e a fúria das batalhas. Aos 15 anos, Alexandre subiu ao trono, deixou de lado seus superfi ciais estudos de fi losofi a e saiu pelo mundo a cometer as proezas e barbaridades que lhe renderam o apelido de “O Grande”. Ao que tudo indica, no entanto, manteve uma afeição vagamente fi lial pelo antigo e frustrado professor: durante suas campanhas intermináveis, costumava enviar-lhe, das terras conquistadas, os mais fabulosos espécimes de fl ora e de fauna – e, com essa ajuda do ex-aluno, Aristóteles montaria o primeiro jardim zoológico do mundo.

Pensador universal 

O filósofo retornou a Atenas em 334 a.C. e fundou uma nova escola, o Liceu, para rivalizar com a Academia platônica. Sua reputação de brilhantismo atraiu multidões de alunos de todas as partes da Grécia. As aulas eram dadas ao ar livre, em meio a passeios por alamedas de árvores – por isso, os seguidores de Aristóteles ganharam o nome de “peripatéticos” (aqueles que andam, em grego). Nesse período, Aristóteles produziu uma obra de proporções mitológicas. Historiadores modernos lhe atribuem algumas centenas de livros, embora anedotas antigas falem em mais de mil volumes; o certo é que, de seu trabalho hercúleo, apenas uma pequena parcela sobreviveu. Minúsculo resquício dessa biblioteca lendária, a coleção conhecida como Corpus Aristotelicum é assim mesmo uma vasta enciclopédia universal: são 47 livros que tratam de assuntos tão variados quanto a meteorologia, a mecânica dos astros, a fisiologia animal, os meandros da política e da ética, as glórias e os enigmas da poesia. Mas esse inestimável compêndio do saber compõe-se apenas de anotações sumárias e sem retoques, que Aristóteles fazia às pressas para suas lições – e que mais tarde foram compiladas pelos discípulos peri-patéticos. Os livros que o filósofo publicou em vida – escritos com esmerada retórica – perderam-se após a queda do Império Romano, no século 5. Os extraviados trabalhos de Aristóteles são um dos grandes tesouros invisíveis da literatura mundial – por injustiça poética, tudo o que conhecemos são os rabiscos de sua genialidade.

Aristóteles levou a cabo sua epopeia do conhecimento em meio a torvelinhos políticos. Atenas fora conquistada pelos macedônios em 333 a.C. – e, embora adorado por seus alunos, o antigo professor de Alexandre era detestado pelos patriotas atenienses, que o viam como o apaniguado de um déspota. Após a súbita morte do conquistador, em 323 a.C., o império macedônico ruiu e seus aliados passaram a ser perseguidos na Grécia. Como ocorrera com Sócrates décadas antes, Aristóteles foi ameaçado com a prisão e a pena de morte. “Não darei aos atenienses outra chance de pecar contra a filosofia”, disse, antes de fugir para a ilha de Cálcis – onde morreu um ano depois, doente, solitário e exilado.

A ferramenta lógica

Aristóteles talvez tenha sido o mais eclético dos pensadores, mas há um denominador comum que cimenta suas refl exões: antes de tudo, ele foi o pai da lógica, a arte ou a técnica do pensamento metódico e disciplinado. Isso não signifi ca que os fi lósofos anteriores fossem ilógicos; mas Aristóteles foi o primeiro autor a elaborar um sistema rigoroso de critérios para o raciocínio. A função da lógica é domar a louca energia do pensamento – sem diminuí-la. Não é um fim, mas um meio: um instrumento preliminar para a refl exão sobre a realidade. Por isso, as anotações que Aristóteles compôs sobre o assunto foram reunidas com o nome de Organon – em grego, “a Ferramenta”.

Parte árdua e essencial do Corpus Aristotelicum, o Organon é uma leitura de grandes desafi os e de imensuráveis recompensas – com sua luz difícil e surpreendente, a Ferramenta aristotélica ainda hoje tem a capacidade de aclarar e azeitar as engrenagens da mente humana. Mais que um manual de etiquetas do pensamento, é um ensaio sobre os possíveis acertos e eternos enganos na construção do conhecimento. Para Aristóteles, o ato de conhecer começa pelos sentidos – e nisso ele diferia de Platão, que via na inconstância das percepções uma dança de enganosos fantasmas. “Para cada sentido que perdêssemos”, escreveu Aristóteles, “haveria também uma ciência irremediavelmente extraviada.” Vendo, ouvindo, sentindo, gravamos uma série de impressões sobre a infi nidade de coisas e seres que formam o universo – é o arquivo da experiência, formado pela memória e avivado pela imaginação. Mentalmente, computamos o que os indivíduos têm em comum e no que diferem, formando sobre eles conceitos gerais. Essa acrobacia do múltiplo ao inteligível, do particular ao universal, é o que Aristóteles chama de indução. Um exemplo de conhecimento indutivo: nossa experiência sugere que todas as pessoas que conhecemos (ou das quais ouvimos falar) nascem, envelhecem e um dia morrem; disso induzimos o princípio de que “todos os humanos são mortais”.

É claro que, em qualquer indução, há uma parcela de risco: ninguém pode conhecer diretamente o destino de todos os homens e mulheres, do passado remoto ao vertiginoso futuro. A indução, portanto, não gera certezas, mas axiomas – princípios aceitos pelo senso comum, embora indemonstráveis na prática.

Limites do conhecimento
 
Os axiomas são o ponto de partida para o segundo tipo de raciocínio na lógica aristotélica: a dedução ou silogismo, que faz o caminho inverso à indução, estabelecendo fatos particulares a partir de verdades supostamente universais. O silogismo clássico é formado por duas afi rmativas iniciais – as premissas – e uma conclusão. Premissas verdadeiras necessariamente produzem uma conclusão válida. O exemplo dado por Aristóteles e repetido nos manuais de lógica ao longo de séculos é o seguinte: “Todos os homens são mortais; Sócrates é um homem; logo, Sócrates é mortal”. O silogismo é como uma máquina de raciocínios coerentes – mas, se partir de premissas falsas, produzirá conclusões coerentemente mentirosas. Considere a seguinte dedução: “Todos os homens são anfíbios; Sócrates é um homem; logo, quando menino, Sócrates tinha brânquias e vivia debaixo d’água”. A conclusão é absurda porque uma das premissas também o é: o mecanismo lógico, no entanto, permanece intacto. Daí o alerta lançado por Aristóteles contra o perigo dos sofismas – argumentos que distorcem a lógica para criar um verniz de razão.

Ao destrinchar essas engrenagens, Aristóteles plantou a semente do pensamento científi co – mas também deixou (talvez sem perceber) um implícito grão de insegurança no coração de todo conhecimento humano. Como podemos ter certeza absoluta de que nossos axiomas estão corretos, de que nosso bom senso não é mera especulação e de que nossos sentidos nos revelam o real? Visão, audição, tato, paladar e olfato formam uma redoma deliciosa ou terrível da qual não podemos escapar: e aqui dentro nosso intelecto tem de se haver como puder. Essa ponta solta seria puxada no século 17 pelo filósofo irlandês George Berkeley – para quem os sentidos são ilusões, e a realidade, uma fantasia da mente. A saga da lógica aristotélica alimentou não apenas a fé racional da ciência, mas também os extremos lúdicos do ceticismo – para o qual tudo o que sabemos e pensamos talvez não passe de um fascinante sofisma.

Além desse insolúvel duelo entre o conhecimento e a incerteza, Aristóteles deixou um legado moral ao afi rmar a dignidade da vida contemplativa. Para ele, o intelecto e o gosto estético são os maiores dons humanos – e nossa felicidade possível está na fruição desinteressada dessas faculdades: “o funcionamento da inteligência é um fi m em si mesmo, e em si mesmo encontra o prazer que o faz funcionar mais”. Em meio ao caos do mundo, o sábio aristotélico sempre encontrará refúgio no cálido império da refl exão. Alexandre, caçador de glórias e homem de ação por excelência, ignorou magnifi camente os preceitos de seu professor, que assim defi ne o ideal de conduta humana na obra Ética a Nicômaco: “O sábio tem modos serenos; sua voz é grave; sua ação é comedida. Suporta os acidentes da vida com dignidade e graça, tirando o máximo proveito das circunstâncias. Ele é o melhor amigo de si mesmo e se delicia com a privacidade, ao passo que o homem sem virtudes é inimigo de si próprio e teme, acima de tudo, a solidão”.



Fonte: Revista Vida Simples  

texto: José Francisco Botelho -ilustração Catarina Bessel I - design Adriana Wo

 

sábado, 4 de setembro de 2010

A filosofia e o consolo do tempo, por Débora Morato Pinto

O pensamento de Bergson indica um sentido para nos libertarmos da ditadura do tempo

Débora Morato Pinto

O filósofo francês Henri Bergson dedicou-se, ao longo de sua vida, a tentar compreender o tempo real. Sua principal descoberta, princípio de todas as suas análises e de suas maiores contribuições para a filosofia e para a ciência, foi precisamente o erro estrutural que o saber comete ao definir o tempo como um fenômeno linear e quantificável. Em poucas palavras, sua intuição primeira foi a de que o tempo do relógio e da cronologia, tão caro à nossa vida em sua dimensão prática, não corresponde à verdadeira manifestação da temporalidade, nem à sua verdadeira essência – o tempo da práxis é duração em refração no espaço. Trata-se da ilusão que impulsiona a vida e a técnica, a imagem de um tempo que avança por saltos, intervalos, que se desdobra em linha e se divide em um antes, um agora e um depois.

Mas Bergson não se limitou a essa descoberta. A contrapartida da denúncia da imagem ilusória de um tempo que, ao fim e ao cabo, é tempo-espaço, é a intuição de que a essência da temporalidade se manifesta no mais profundo de nós mesmos. Eis a sua famosa tese da duração real, descoberta na interioridade do eu e ampliada para todos os fenômenos após um minucioso trabalho de desconstrução de conceitos e acesso à experiência, aos dados da sensibilidade e aos fenômenos da memória e da vida. Interessa-nos aqui que a duração real, verdade do tempo e do ser, nos é acessível no contato que podemos ter conosco, ao mergulharmos, num processo de interiorização, na profundidade de nossa pessoa. Ali, a temporalidade manifesta-se como fusão de momentos em progressão, pura heterogeneidade qualitativa marcada por um tom, transformação contínua de momentos interiores uns aos outros. A verdadeira manifestação do tempo dá-se por imagens, entre as quais a da melodia ocupa lugar de honra. Em lugar da espacialidade e do horizonte aberto próprio às imagens visuais, a música representa melhor a verdade do tempo.

“Cronos ensandecido”

Se levarmos em consideração que o tempo da cronologia e do relógio é, com efeito, o tempo elaborado e seguido pela vida contemporânea em sua dimensão social e, sobretudo, em sua dimensão técnica – não sabemos mais dizer onde termina o humano e onde começa o inumano, seja como ramificações tecnológicas, seja como atuações num mundo que é publicização e imagem –, a filosofia de Bergson, uma vez compreendida e incorporada, seria um consolo para os males do tempo por si só. Imaginemos o alívio trazido pela descoberta de que o tempo que não para de passar, corroer, aumentar, o time is money ao qual estamos submetidos inexoravelmente, o tempo atrás do qual estamos sempre correndo, que nos angustia, que nos devora, o cronos ensandecido (título do livro de Sérgio Pripas) que nos aflige e nos falta, enfim, que esse tempo do século 21 é uma imagem ilusória! Imagine sabermos, de repente, que o tempo não passa como pensamos, que o antes não condiciona o agora, que o agora não determina o depois, que não podemos saber o antes partindo do depois…

Mas esse consolo aqui sugerido tem um preço: conhecer e aderir a uma única proposta filosófica, o que exigiria, além do enorme esforço para estudá-la, a difícil decisão de abrir mão das outras filosofias, de autores distintos, extremamente instigantes. Além disso, a duração verdadeira, uma vez acessível a nós, nos impõe, de si mesma, a tarefa de agirmos para expressá-la no mundo – a definição mesma de liberdade, segundo Bergson. Assim, a questão que queremos colocar à luz dessas considerações é de outra ordem: a filosofia, como atividade, ou aquilo que podemos, mesmo sob o risco de cometer alguma impropriedade, reunir sob o nome de “atividade filosófica” nos traz algum consolo diante das dificuldades ou das intempéries do tempo?

A resposta mais óbvia seria, talvez, pensar na imagem do filósofo que sai fora do mundo, que se afasta do real, que cai no buraco porque anda examinando as estrelas – esse filósofo não viveria, no sentido mais comum do tempo, e por isso não sofreria… Ele estaria eternamente consolado. Mas Bergson mesmo nos indica outro sentido para nos libertarmos da ditadura do tempo, e que não exige o abandono da vida, o refúgio na ilha da abstração, no mundo dos conceitos. Esse sentido está no ritmo da atividade filosófica, assim como no da arte: ler um belo parágrafo de um clássico, que nos impele a dar voltas em torno dele, nos conduz a outros pensamentos, a novas imagens daquilo mesmo que determinávamos como pedaços do real; enfim, ler e escrever efetiva e ativamente sobre filosofia nos obriga a forçar nosso pensamento e nossa capacidade de criar soluções conceituais (criar conceitos, como diria Gilles Deleuze), significa já, em ato, libertar-se de um tempo dirigido, determinado por um fim, medido por um intervalo. Criar uma obra sem finalidade imediata, imprimir às coisas uma emoção, um sentimento, usar enfim a matéria do mundo para expressar nossa pessoa, sua profundidade que revela algo de universal, significa trazer ao tempo da práxis outro ritmo, outra tensão: imprimir na espacialização da vida social e tecnológica um ritmo que não é o seu. Significa, mais que tudo isso, ampliar o escopo de nossa experiência, que passa a incorporar os efeitos de uma interiorização criativa. Em que essa experiência nos consola? Ela acaba por ser, talvez, mais nossa, nos pertencer de forma mais autêntica e, por isso mesmo, ser mais humana. Se tudo isso ainda parecer excessivamente teórico, termina-ríamos dando um exemplo mais concreto: a filosofia é uma atividade praticada por estudantes e estudiosos, professores e mestres, diletantes, até crianças, mas o fato é que, ao poder ser significativamente exercida pelos ditos “velhos” (grandes filósofos da história produziram obras das mais relevantes em idade “avançada”), ela nos liberta de uma das mais difíceis imposições do tempo – a da busca de uma juventude eterna, do tempo perdido. Na filosofia, assim como na arte, o tempo nunca se perde, ele só se cria ou se transforma.



Fonte: Publicado em 01 de abril de 2010 na Revista Cult - Edição 143.
Imagem: Google

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A passagem do tempo, por Eugenio Mussak




O tempo passa e ficamos com a sensação de que nunca o aproveitamos como deveríamos. Existe uma maneira de conciliar a vida com o tempo, que a consome?

Os gregos, que encontravam explicação para tudo pelas forças emanadas pelo monte Olimpo, não se contentavam em ter um deus do tempo, tinham logo dois: Cronos e Kairós. Um só deus grego não seria sufi- ciente para explicar a relação do homem com o tempo, tamanha a tensão que existe entre ambos.

A única proeza em que o homem teve sucesso, a respeito do tempo, foi conseguir medi-lo. Para isso, analisou ciclos, como os movimentos da Lua e do Sol, observou seu efeito sobre a natureza e, então, padronizou os tempos do ano, das estações e dos dias, posteriormente divididos em frações, chamadas horas, minutos, segundos. Em sua arrogância, o humano acreditou que, ao medir o tempo, o controlaria. Doce ilusão. As medidas só serviram para aumentar a sensação da passagem veloz do tempo, que escorre pelas mãos, como a água.
Mas nem tudo está perdido. Nós, humanos, podemos ser apenas pobres mortais, mas temos uma ferramenta que nos permite controlar, se não o tempo, nossa própria existência. Essa ferramenta se chama consciência. E ela nos permite conviver com o tempo com base em três visões: da física, da metafísica e da ética. Do ponto de vista físico, o tempo pode ser medido. No âmbito da metafísica, o tempo pode ser sentido. E, de acordo com a ética, o tempo deve ser vivido.

A física é a relação mais óbvia, e é com um instrumento físico que nós passamos a medir o tempo: o relógio. Contudo, ele apenas nos avisa que o tempo passa – o que faremos com essa informação é problema nosso. Do ponto de vista do que está além da física, o tempo é um sentimento, portanto ele tem duração variável, contrariando os relógios. Veja só: dois minutos de broca do dentista são mais longos do que 16 minutos escutando o Bolero de Ravel ao lado da pessoa amada.


E, quanto à ética, ela nos alerta para um fato óbvio só para os mais conscientes: o tempo é um recurso escasso que não pode ser reposto, e sua qualidade dependerá do que fi- zermos com ele. Como disse Marcel Proust: “O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração”. E ele entendia do assunto, pois dedicou mais de uma década para escrever cerca de 4 mil páginas, que foram publicadas em sete volumes dedicados à relação humana com seus valores, entre eles o tempo. A essa obra completa, o escritor francês chamou Em Busca do Tempo Perdido. No último volume, O Tempo Reencontrado, o autor faz várias voltas ao passado e descobre que só a memória poderá se defrontar com o tempo e nossa paz interior será proporcional ao que a memória encontrar na volta ao passado, ou seja, a qualidade que demos ao tempo que nos foi dado viver.

Podemos sentir o tempo e medi-lo. Então ele está à nossa disposição?
 
O tempo está à nossa disposição, mas é ele que dispõe de nós, por isso, estabelecer com ele uma relação de paz é um ato de sabedoria. Sentir e medir o tempo são aparentados, pois ambos nos permitem perceber seu andar ininterrupto. Como? Bem, sentir e medir o passar das horas são iniciativas úteis, pois nos ajudam a decidir o que faremos com o tempo de que dispomos. Assim, nossa paz com o tempo será diretamente proporcional à paz que estabelecemos com nossas escolhas e nossas decisões. E essas são pessoais, relativas aos valores de cada um.

O cientista inglês Stephen Hawking, que ocupa na Universidade de Cambridge a mesma cadeira que já foi de Newton, escreveu um livro chamado Uma Breve História do Tempo. Em dado momento, em meio a intrincados conceitos científicos, ele pondera que o tempo tem que ser analisado com base em três setas: a seta cosmológica, que explica a expansão do Universo, a seta termodinâmica, que explica a modificação constante das coisas, e a seta psicológica.
 
Sim, o físico mais importante da atualidade não consegue analisar os fatos do tempo sem recorrer à psicologia. Os enigmas intrincados da matéria se relacionam com os mistérios do tempo desde sempre, mas, quando o homem passou a protagonizar essa peça no palco do Universo, seus pensamentos e sentimentos acrescentaram novos ingredientes ao roteiro, às vezes de comédia, às vezes de tragédia.
 
A maior contribuição da física, nesse assunto, é a ideia da relatividade. As sofisticadas descobertas de Einstein sobre a velocidade da luz nos levaram a abandonar a ideia de tempo único e absoluto. Então: “O tempo se tornou um conceito mais pessoal, relativo ao observador que o está medindo”, diz Hawking. Nossa relação com o tempo se faz baseada em nossos valores, opções, decisões e culpas. É o tempo psicológico. Eu dedico mais tempo àquilo que tem mais valor para mim. O problema é conhecer seus valores.
Voltando aos gregos, Cronos é o deus do tempo medido, por isso usamos expressões como cronograma, cronologia, cronômetro. Nos livros de mitologia, ele é representado como um deus malvado, que come seus próprios filhos, simbolizando o que o tempo faz conosco atualmente – parece que ele nos devora. Já Kairós é o deus do tempo vivido, das escolhas que fazemos, da maneira como nós aproveitamos a vida. Cronos é quantitativo, e Kairós é qualitativo.

A primeira sensação é a de que Cronos é inimigo e Kairós amigo. O primeiro quer subjugar, e o segundo libertar. Mera sensação, pois, na prática, nós precisamos de ambos, uma vez que não podemos escolher a felicidade sem nos organizarmos para alcançá-la. Kairós nos estende a mão, Cronos nos empurra. Mas é necessário que saibamos o que queremos e que consigamos nos organizar.

A sabedoria consiste em estabelecer uma conexão entre os valores pessoais e a gestão do tempo disponível?

A mitologia ilustra bem essa angústia humana. Zeus, o mais poderoso deus do Olimpo grego, era filho de Cronos, mas nenhum dos dois conhecia esse parentesco, mantido em segredo por Réa, mãe dos filhos de Cronos. Mas Zeus só assume a posição de poder quando enfrenta Cronos e o vence em uma batalha. Ele havia sido sabiamente aconselhado a não matar seu oponente, pois assim ele estaria matando o próprio tempo e ficaria, então, aprisionado no instante, sem futuro nem memória.

A estratégia de Zeus foi vencer Cronos, cortando seus tendões e amarrando sua cabeça aos pés, criando um círculo com seu corpo. A partir de então, o deus do tempo passou a ser também o deus das ações repetitivas, como o dia e a noite e as estações do ano, eventos cíclicos.

Na prática, Zeus conquistou Cronos e o dominou, administrou. Nossa vida moderna não difere disso. Todos temos 24 horas por dia à nossa disposição, mas estou certo de que você conhece pessoas que aproveitam bem essas horas, produzem, trabalham, estudam, se cuidam, se divertem, cultivam as relações. E também conhece outros, que se queixam da falta de tempo, da velocidade dos acontecimentos, da sensação de impermanência e da falta de controle. Na prática, o que acontece mesmo é exatamente a falta de controle, de ação da lógica na organização de suas prioridades. A agenda não escraviza – ao contrário, liberta, confere autonomia, possibilidades, alcances.
 
Mas gestão é a segunda palavra -chave. A primeira é escolha. Fazemos nossas escolhas com base em nossos valores e criamos uma estratégia para atingir nossos propósitos. Estratégias dependem de recursos, entre eles, o mais caro e raro: o tempo.

O ideal seria estabelecer uma relação lógica entre presente, passado e futuro?

Muito se fala que a única coisa real é o presente, pois o passado não existe mais e o futuro ainda está por vir. Há uma lógica nessa observação, mas é uma lógica primitiva, pois esses tempos são totalmente interligados e interdependentes.
 
É verdade que o presente é a única realidade prática, mas também é verdade que é nesse instante que se inserem o passado e o futuro. Na dimensão temporal atual, o passado recebe o nome de memória e o futuro tem vários pseudônimos, como sonho, desejo, medo e esperança.
 
O futuro não é algo que vai existir. O futuro existe agora. Aliás, o futuro só existe no presente, pois, quando no futuro, o futuro virar presente, ele deixará de ser futuro. Parece óbvio, mas escapa da percepção cotidiana da maioria das pessoas. E escapa também o fato de que o futuro virará presente e, quando isso acontecer, ele será melhor ou pior, a depender das providências tomadas no presente, neste exato momento.
 
Em outras palavras, só vivemos no presente, mas estamos fortemente conectados ao passado, que nos ensina, e ao futuro, que nos motiva. Viver é estar atado a essa tríade temporal, doce ou amarga, dependendo da consciência de cada um. Fazer as pazes com o tempo é a verdadeira sabedoria. Só que “a sabedoria não se transmite, é preciso que nós a descubramos fazendo uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as coisas”, também disse Proust.
Sim, a sabedoria é uma maneira de ver as coisas, mas isso exige intenção, disposição e coragem. O problema é que desenvolvemos essas três qualidades em épocas diferentes de nossa vida, por isso a maturidade às vezes tarda, depende do tempo.
 
O mesmo tempo que exige maturidade para ser bem escolhido e controlado, em outras palavras, para ser muito bem vivido.


Fonte: Revista Vida Simples

Imagem:ideiaseantiteses.blogspot.com

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