sexta-feira, 23 de abril de 2010

Conversa com André Comte-Sponville

Entre o luxo e a justiça

Essa é a escolha que a nossa geração deverá fazer para salvar o planeta, afirma o pensador francês

por Carol Bensimon | design Márcio Fujii

Nascido em Paris, em 1952, André Comte-Sponville é autor de uma obra filosófica descomplicada e bastante popular na França e fora dela, na qual ele transita por temas clássicos, como o amor e a felicidade, e as urgências da vida contemporânea. Em um de seus livros mais célebres, O Capitalismo É Moral?, o filósofo discute a relação, ou melhor, a falta de relação entre ética e economia. Montaigne, Espinoza e Epicuro estão entre as maiores influências do filósofo. Ateu declarado, Comte-Sponville não renega, no entanto, a educação católica recebida durante a infância e a adolescência, e suas obras estão carregadas de referências ao budismo e a outras religiões orientais, das quais ele diz ser grande admirador. O que parece contraditório à primeira vista pode ser resumido assim: o pensador francês é partidário de uma espiritualidade que pretende ir além das religiões e da crença em Deus, pensamento que ele expõe na obra O Espírito do Ateísmo. André Comte-Sponville já foi professor da Sorbonne, mas hoje dedica-se exclusivamente a seus livros e às palestras que ministra.

Para ter a consciência tranquila, há muita gente disposta a pagar mais caro por produtos menos agressivos ao ambiente. A moral se tornou um argumento de venda?

Um pouco mais complexo que isso. O que eu digo é que a economia não é moral. Isso não quer dizer que a moral não tenha qualquer relação com a economia, mas que essa relação passa exclusivamente pela consciência dos indivíduos. A prostituição, por exemplo, é uma troca de ordem comercial. Isso não quer dizer que ela seja moralmente inocente. Por outro lado, se você compra produtos com o selo “Comércio Justo”, sua moral intervém na economia. Mas então não é o mercado que é moral, é você. A mesma coisa acontece com a dita onda ecológica. Há aí um fenômeno de moda, é claro, mas há também um problema de verdade, que é moral: que planeta queremos deixar para nossos filhos? Que a ecologia tenha virado um argumento de venda para as empresas, isso não impede que ela seja também uma exigência moral para os indivíduos!

Se todos pudessem ter os hábitos de consumo de um europeu médio, o resultado seria desastroso para o meio ambiente. A desigualdade é necessária para a manutenção do planeta?

Não é a desigualdade que é necessária. Se todos os seres humanos tivessem, por exemplo, o mesmo nível de vida de um africano médio, o planeta estaria muito melhor. O que é incompatível com a sustentabilidade do planeta não é simplesmente a igualdade, mas a igualdade na abundância e no luxo. Então será preciso escolher, em algum momento, entre o luxo e a justiça, entre a abundância e a sobrevivência. Esse é o problema do desenvolvimento sustentável, sem dúvida a questão política mais importante da atualidade.

A felicidade é um tema recorrente em sua obra. No que a filosofia pode ajudar na busca por ela?

Em primeiro lugar, ajudando a compreender o que ela é. E o que é a felicidade? É o contrário da tristeza. É preciso partir daí. Ora, e o que é a tristeza? Todo período, para um indivíduo, no qual parece impossível sentir-se alegre. Levantamos de manhã e sabemos que não nos sentiremos felizes nem uma vez durante o dia, às vezes acreditamos até mesmo que não nos sentiremos felizes nunca mais… Aqueles que passaram por isso conhecem o peso do horror, do desgosto, do sofrimento. E eles sabem também, por oposição, que a felicidade existe. O que é a felicidade? Certamente não é uma alegria contínua e estável. Isso não existe, é somente um sonho que nos afasta da felicidade. A felicidade é o contrário da tristeza: sou feliz quando tenho a sensação de que a alegria é imediatamente possível, que pode aparecer de um momento a outro, que ela talvez já esteja aqui, claro que não de maneira permanente, mas com essa facilidade, essa espontaneidade, essa leveza que torna a vida agradável. A felicidade não é algo absoluto, mas como é bom!

E o que pode fazer as pessoas se sentirem felizes?

Nenhum aspecto externo é suficiente: nem o dinheiro, nem o sucesso, nem o poder, nem a família, nem mesmo o fato de ser amado por fulano ou beltrano. A miséria, por exemplo, pode ser suficiente para a tristeza, mas todos sabem que ser rico nunca foi suficiente para ser feliz. A felicidade depende de uma disposição interior. Qual? A que os antigos chamavam de “sabedoria”, e que nós poderíamos chamar, de forma mais simplificada, amor à vida. E eu estou dizendo “amor à vida”, feliz ou infeliz, e não à felicidade. Qualquer um é capaz de amar a felicidade. Mas, se é a felicidade que você ama, você só estará contente com a vida quando estiver feliz, e quanto mais você for feliz, maior será seu medo de não o ser mais. Por outro lado, se você ama a vida, você tem uma excelente razão para viver e para lutar, mesmo quando a felicidade não está lá.

Na sua opinião, quais são hoje as grandes questões contemporâneas que devem aparecer na filosofia?

A maioria das grandes questões filosóficas são mais eternas que contemporâneas: a questão do ser, a de Deus ou de sua inexistência, a vida, a morte, a liberdade, o amor, a moral, o conhecimento, o tempo, a justiça, o poder, o trabalho, a felicidade, a sabedoria… o suficiente para ocupar uma vida! O que não impede o interesse pelas questões atuais. Em primeiro lugar, porque essas questões eternas devem chegar, hoje, a respostas que convenham à nossa época. E também porque há novas questões que surgem e que é preciso enfrentar. As principais me parecem ser a do desenvolvimento sustentável, da bioética e da globalização (sobretudo no aspecto cultural). Além disso, é preciso repensar a questão política: levar em conta o fracasso do marxismo, sem desistir, no entanto, de transformar a sociedade.

Para saber mais

Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes O Capitalismo É Moral?, Martins Fontes

domingo, 18 de abril de 2010

A humildade , por José Francisco Botelho

Uma lição de sabedoria com o pensador que tinha consciência de sua própria ignorância

O filósofo grego Sócrates foi um dos poucos personagens históricos que mudaram os rumos do pensamento humano sem ter deixado uma única linha por escrito. Outros membros desse seleto clube são Buda e Jesus Cristo; ao contrário deles, Sócrates não fundou religião alguma, mas sua vida e personalidade estão até hoje cercadas por uma aura de mistério muito próxima à dos místicos e dos santos (no Islã medieval, aliás, ele era conhecido como o “profeta da Grécia antiga”). Considerado por alguns historiadores como o fundador da filosofia ocidental, ele é até hoje uma das figuras mais controversas e obscuras na história das ideias: tudo o que sabemos sobre ele é um punhado de fatos esparsos, relatados nas obras nada imparciais de seus fervorosos discípulos e seus igualmente entusiasmados detratores. O amor e o ódio a Sócrates, por sinal, são dois vetores constantes na história da filosofia: um jogo de veneração e repulsa que já rendeu muito arranca-rabo metafísico.

Grande parte do que sabemos sobre Sócrates está contido na obra de seu discípulo mais famoso, Platão – nos textos conhecidos como Diálogos, ele retratou as incansáveis discussões filosóficas entabuladas pelo mestre. Uma das questões mais espinhosas na história da filosofia é, precisamente, fazer a distinção entre o pensamento de Sócrates e o de seu discípulo-biógrafo. Contudo, por mais difícil que seja determinar o teor exato das ideias socráticas, o que ninguém nega é a importância descomunal do método de filosofar empregado por ele: a dialética ou, tirando em miúdos, a arte do diálogo. Para compreendê- la, é preciso dar uma olhadela no fascinante mundo em que Sócrates viveu e filosofou – a Grécia do século 5 a.C.

Quando Sócrates nasceu, por volta de 469 a.C., os gregos haviam acabado de derrotar a Pérsia – a superpotência expansionista da época – nas chamadas Guerras Médicas. O triunfo militar abriu as portas para um dos períodos mais férteis da civilização ocidental. Atenas se tornou senhora de um vasto império marítimo e centro de uma cultura efervescente. Por meio de uma série de reformas políticas, os atenienses aperfeiçoaram o sistema de governo que haviam adotado no século 6 a.C.: a democracia. A cada mês, os cidadãos com mais de 30 anos se reuniam em uma grande Assembleia para debater leis e escolher magistrados. Cada um tinha o direito de defender suas ideias em discursos públicos. Por isso, a arte de falar bem – para convencer, para dissuadir ou mesmo para engambelar – se tornou uma das ocupações favoritas entre os atenienses de todas as classes.

A arte do diálogo É nesse contexto que surgem os sofistas – trupe de intelectuais itinerantes que, em troca de remunerações graúdas, ensinavam as manhas da retórica aos jovens atenienses com ambições políticas. Até então, a filosofia grega se ocupava principalmente de assuntos cosmológicos, como a natureza dos astros e a origem do universo. Os sofistas mudaram essa equação: para eles, o objeto da reflexão filosófica era o próprio homem. Foi um sofista chamado Protágoras quem cunhou uma das frases hoje utilizadas para descrever o espírito daquela época: “O homem é a medida de todas as coisas”. Outra grande inovação introduzida por eles foi o uso do diálogo como método de reflexão e persuasão. Até então, pensadores e políticos costumavam deslindar suas ideias em longos monólogos, emitidos do alto de tribunas, para audiências que podiam interferir apenas com aplausos ou apupos. Já os sofistas preferiam exibir suas habilidades lógicas e seus floreios argumentativos em debates cara a cara, em que dois ou mais interlocutores se digladiavam na defesa de ideias opostas. Esse método dinâmico e vivaz fez grande sucesso em meio à juventude ateniense, que acorria em pencas para assistir aos animados duelos de eloquência protagonizados por Protágoras e sua turma.

Em meio às entusiasmadas audiências dos diálogos sofistas, havia um sujeito pobretão, excêntrico e dono de uma feiura proverbial. Antes de ganhar celebridade como filósofo, Sócrates já era famoso como o maior esquisitão de Atenas. Filho de um escultor e de uma parteira, ele se dedicou por alguns anos ao ofício do pai. Mas, ao que tudo indica, o patrono da filosofia ocidental não era, digamos, um sujeito muito trabalhador. Sua principal ocupação era sondar a alma humana, e pouco tempo lhe restava para questões rotineiras, como ganhar a vida. Costumava andar pelas ruas de Atenas metido em roupas puídas, com as grandes barbas descabeladas e sempre perdido em reflexões. Às vezes, tinha acessos de abstração que pareciam loucura: em determinada ocasião, passou mais de 24 horas parado ao relento, entregue a alguma complexa ponderação metafísica. Também afirmava ouvir uma voz misteriosa que lhe ditava regras de conduta – entre outras coisas, esse estranho anjo da guarda teria proibido Sócrates de se envolver em política (para o filósofo, nenhum homem justo pode enveredar por esse escuro pantanal da atividade humana sem perder a alma ou a vida).

Sócrates aprendeu a filosofar assistindo às preleções dos sofistas, mas logo acabou se afastando dos antigos mestres. Com o tempo, o desgrenhado pensador compreendeu que o excesso de truques retóricos de seus concidadãos servia muitas vezes para ornamentar mentes vazias (qualquer semelhança com o universo acadêmico de hoje não é mera coincidência). Cheia de intelectuais falastrões e de políticos oportunistas, Atenas havia se tornado uma cidade excessivamente satisfeita consigo mesma – e Sócrates decidiu que caberia a ele fustigar a soberba de seus contemporâneos. Mas, para abraçar plenamente sua vocação à insolência, ele precisou de um empurrãozinho divino.

Quando confrontados pelos aspectos mais obscuros ou espinhosos da existência, os antigos gregos costumavam consultar os deuses (naquela época, não havia psicanalistas). Para isso, existiam os oráculos – locais sagrados onde os seres imortais se manifestavam, devidamente encarnados em suas sacerdotisas. Certa vez, talvez por brincadeira, um ateniense perguntou ao conceituado oráculo de Delfos se haveria na Grécia alguém mais sábio que o esquisitão Sócrates. A resposta foi sumária: “Não”.

Saber e não saber O inesperado elogio divino chegou aos ouvidos de Sócrates, causando-lhe uma profunda sensação de estranheza. Afinal de contas, ele jamais havia se considerado um grande sábio. Pelo contrário: considerava-se tão ignorante quanto o resto da humanidade. Após muito meditar sobre as palavras do oráculo, Sócrates chegou à conclusão de que mudaria sua vida (e a história do pensamento). Se ele era o homem mais sábio da Grécia, então o verdadeiro sábio é aquele que tem consciência da própria ignorância. Para colocar à prova sua descoberta, ele foi ter com um dos figurões intelectuais da época. Após algumas horas de conversa, percebeu que a autoproclamada sabedoria do sujeito era uma casca vazia. E concluiu: “Mais sábio que esse homem eu sou. É provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um tantinho mais sábio que ele exatamente por não supor saber o que não sei”. A partir daí, Sócrates começou uma cruzada pessoal contra a falsa sabedoria humana – e não havia melhor palco para essa empreitada que a vaidosíssima Atenas. Em suas próprias palavras, ele se tornou um “vagabundo loquaz” – uma usina ambulante de insolência iluminadora, movida pelo célebre bordão que Sócrates legou à posteridade: “Só sei que nada sei”.

Para sua tarefa audaz, Sócrates empregou o método aprendido com os professores sofistas. Mas havia grandes diferenças entre a dialética de Sócrates e a de seus antigos mestres. Em primeiro lugar, Sócrates não cobrava dinheiro por suas “lições” – aceitava conversar com qualquer pessoa, desde escravos até políticos poderosos, sem ganhar um tostão. Além disso, os diálogos de Sócrates não serviam para defender essa ou aquela posição ideológica, mas para questionar a tudo e a todos sem distinção. Ele geralmente começava seus debates com perguntas diretas sobre temas elementares: “O que é o Amor?” “O que é a Virtude?” “O que é a Mentira?” Em seguida, destrinchava as respostas que lhe eram dadas, questionando o significado de cada palavra. E continuava fazendo perguntas em cima de perguntas, até levar os exaustos interlocutores a conclusões opostas às que haviam dado inicialmente – e tudo isso num tom perfeitamente amigável. Assim, o pensador demonstrava uma verdade que até hoje continua universal: na maior parte do tempo, a grande maioria das pessoas (especialmente as que se consideram mais sabichonas) não sabe do que está falando.

Para muitos ouvintes, o efeito do diálogo socrático era a catarse – uma experiência de purificação espiritual em que as portas do autoconhecimento se escancaram.

Deixando de lado a casca das ideias preconcebidas e os clichês, o discípulo estava pronto para a perigosa aventura de pensar por si mesmo. Às vezes, os argumentos desse conversador incansável eram tão azucrinantes que alguns ouvintes o atacavam no meio da rua, com chutes e pontapés. Perante tais indignidades, ele se limitava a responder com invulnerável ironia: “Não se costuma revidar contra os jumentos que nos escoiceiam”.

Tamanha independência de espírito pode ser algo bem arriscado – tanto na Antiguidade quanto hoje em dia. As patotas políticas não sabiam como lidar com aquele homem que questionava e irritava a todos com o mesmo sorriso de implacável gentileza, sem se deixar aliciar por ninguém. Em 399 a.C., seus desafetos conseguiram levá-lo a julgamento. O filósofo foi acusado de desrespeitar os deuses oficiais da cidade e de “corromper a juventude”: na prática, o que estava sob ataque era sua mania de fustigar a tudo e a todos sem pruridos. Ameaçado com a pena de morte, ele retrucou: “Ninguém sabe o que é a morte. Talvez seja, para o homem, o maior dos bens. Mas todos fogem dela como se fosse o maior dos males. Haverá ignorância maior do que essa – a de pensar saber-se o que não se sabe?” Com sua recusa a retratar-se perante a assembleia, o filósofo foi condenado a morrer por envenenamento. No dia de sua execução, reuniu- se com os amigos, trocou pilhérias e, naturalmente, entregou-se a discussões filosóficas. O carcereiro, ao lhe trazer a taça com cicuta, estava chorando. Mas Sócrates tinha os olhos secos. Bebeu o veneno como quem toma um remédio, despediu-se dos amigos com cavalheiresca tranquilidade e se esticou no catre, como se fosse dormir. E só então seu gênio insolente se calou.

O “vagabundo loquaz” de Atenas foi a primeira figura célebre na história do pensamento a morrer por suas ideias – e sua execução é um dos mitos fundadores da filosofia ocidental. A relevância de Sócrates, contudo, transcende o universo dos filósofos especializados ele se tornou, em grande medida, um modelo de conduta humana. Sua modéstia, numa época de vaidade intelectual, é um aviso aos navegantes de todos os séculos: por mais poder e desenvolvimento que uma civilização tenha atingido, o fato é que, no fundo, continuamos todos humanamente estúpidos. E a negação de nossa própria estupidez pode nos transformar em monstros. Escapar à ignorância congênita da espécie é possível, sim – mas essa é uma tarefa que não se realiza sozinho. A verdade (se é que ela existe) só pode surgir pelo confronto direto e implacável (mas sempre amigável) entre duas ou mais criaturas racionais. Pensar por si mesmo e a si mesmo, olhando no espelho do outro: eis a lição aparentemente simples, mas hoje tão esquecida, legada por uma das figuras mais intrigantes na história da humanidade.

Sócrates

Um dos fundadores da filosofia ocidental, o pensador morreu em 399 a.C. Como Buda e Cristo, que não deixaram escritos, Sócrates é conhecido hoje pelos textos de seus discípulos. A trajetória de Sócrates é uma cruzada contra a falsa sabedoria. Sempre amigável, o filósofo demonstrava o quanto ainda sabemos tão pouco dos mistérios da vida.

PARA SABER MAIS

O Julgamento de Sócrates, I.F. Stone, Companhia de Bolso Apologia de Sócrates, Platão, L&PM Pocket

Fonte: Revista Vida Simples

domingo, 11 de abril de 2010

HABERMAS e a ética dialogal para o consenso

José Fernandes P. Júnior[1]

“Quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidade e perplexidade”.

Jürgen Habermas

Jürgen Habermas é um dos pensadores mais influentes do pós-Guerra. Seu pensamento abarca diversos temas – direito, política, história, ética – que se entrecruzam chegando ao final num único ponto: o homem na sociedade. Sua vida é conhecedora dos abusos e desvios do poder, desde a crueldade dos campos de concentração em Auschwitz até o terror do 11 de setembro de 2001. Nascido em Dusseldorf, no ano em que o mundo passava por uma grande crise econômica; 1929 fora, também, o ano da fundação da Universidade de Frankfurt, que mais tarde daria ao mundo uma plêiade de intelectuais que marcariam o pensamento filosófico para sempre. Daquele centro de excelência do conhecimento, surgiria a Escola de Frankfurt, da qual Habermas faria parte. Por pouco tempo teve seu nome ligado aos frankfurtianos da Segunda Geração, pois preferiu, independentemente, trilhar caminhos próprios ao postular a sua teoria da ação comunicativa.

O pensamento habermaseano faz coro com a crítica desferida à metafísica tradicional e tenta “desconstruir o paradigma da modernidade iniciado por Descartes e Locke, configurado na oposição racionalismo versus empirismo”. Noutras palavras, o proposto por Habermas é o de dar a razão um limite, pois o endeusamento da mesma pode chegar a extremos irracionais. Veja-se o caso dos totalitarismos, que ao se apegarem a solipsismos inconseqüentes, geram projetos de poder contaminados de desvios. Este tipo de racionalidade é rechaçada por Habermas, por ser subjetivista e por que a própria razão não fez a crítica a si própria. Nesses termos, o modelo de racionalidade expedido na modernidade por Descartes, deve ser posto à análise e à crítica. Desse modo entendem Martins e Aranha que “o paradigma da racionalidade moderna precisa ser contestado, mas não por meio do irracionalismo e, sim, pela atividade crítica da razão mais completa e mais rica, que dialoga e se exerce na intersubjetividade”. Assim, o modelo que Habermas nos oferece é o do uso da razão comunicativa; não subjetivista, mas dialogal.

DIÁLOGO: Ponte para uma sociedade mais solidária

Nessa perspectiva, o viés que nos é apresentado é o da construção dialogal entre as pessoas, que por sustentabilidade dos argumentos expostos chegam ao consenso. Assim, a linguagem, a palavra, o discurso têm importância decisiva na tarefa de se chegar ao consenso e, por conseguinte, à ética. Esta construção dar-se-á através da “pluralidade de vozes” que argumentam em busca do consensual. Notemos, aqui, a importância que a palavra tem no mundo da vida das pessoas e na sociedade. Não era assim que os gregos – povo da palavra – tentavam sanar os problemas da polis? Certamente. Entretanto, há que se ter cuidado frente às artimanhas sofísticas e falaciosas de que alguns se valem para persuadir. Nenhum interesse particular deve sobrepor aos da comunidade; pois sendo o consenso construído por uma pseudo-discurso, este revelará sua inautenticidade frente aos interesses da maioria. A ética do indivíduo, não deverá estar acima do “todo” coletivo. Nesse sentido, o Professor Olinto Pegoraro nos diz que “Habermas, partindo de um ponto de vista universal, de um lugar de observação e de julgamento pelo qual as contendas podem ser arbitradas imparcialmente e por consenso, não quer construir um ética da obrigação como Kant, mas uma teoria ou instância de validação da norma existente feita por ‘nós’ e não por uma consciência solitária, solitária e intimista.”

Esse modelo do qual Habermas – juntamente com Karl-Otto Apel (1922) – se vale é pautado, sobretudo, no diálogo. Este seria o aspecto de maior relevância na construção de uma sociedade mais equânime e tolerante. Registre-se que, como mencionamos acima, a ojeriza que nosso filósofo tem a qualquer ato de terror e intolerância à humanidade. Talvez por isso, tenha encontrado na linguagem, no diálogo o meio possibilatador da construção de uma sociedade mais solidária. Desse modo, como nos afirma C. Helferich, “a forma básica de seu pensamento é, portanto, reflexiva, ou seja, auto-referente [...]. Assim o ponto de partida da reflexão não é – como em Kant – o pensamento solitário do indivíduo, mas o discurso, a argumentação em comum, sempre mediatizada pela linguagem”. No entanto, argumentar exige compromisso. E o discurso não pode ser vazio de sentido, pois se assim for, não se sustentará e, conseqüentemente, será descartado pelos outros. Assim, não temos como fugir da argumentação. Todos nós precisamos de argumentos como condição vital. O jornalista se utilizará dos mesmos para evidenciar a notícia, o advogado para defender seu cliente, o publicitário para vender seu produto, o professor para fazer com que o aluno compreenda, o político para convencer que é o melhor candidato, o operário para mostrar que merece aumento salarial etc. Os exemplos são inumeráveis. O certo é que a todo instante estamos a fazer discursos e buscando o consenso. Quando isso não ocorre, está ai a Justiça para resolver os conflitos; e mesmo que isso ocorra, as situações litigiosas não escapará à esfera dos argumentos. “A situação da argumentação é, portanto, inescapável. Argumentar significa fazer valer pretensões por meio de argumentos; em outras palavras significa que aquele que argumenta, sempre se comprometa”, diz-nos Helferich.

A PARTE E O TODO NA ÉTICA DO DISCURSO

Como se vê, a teoria da ação comunicativa de Habermas desdobra-se em sua ética do discurso, que por sua vez tem como finalidade o consenso. Posto desse modo, o entendimento será sempre alvo da ética do discurso. Assim, em meio a um arrazoado de argumentos, quando alcançado o consenso, chega-se à verdade; não a verdade objetiva, “mas as proposições validadas no processo argumentativo em que se alcança o consenso”. Como se percebe, a ética habermaseana pressupõe a autenticidade do discurso e a prioridade do coletivo sobre o indivíduo. Tal ética não tem pretensões de prometer uma vida feliz para o sujeito social, ao contrário; o objeto da ética discursiva é a validade da norma, construída pelo “todo coletivo” através do consenso que as partes individuais decidiram construir. A respeito disso, vejamos o que o Olinto Pegoraro diz: “na ética discursiva, não existe uma preocupação de ordem existencial de cada pessoa e de cada situação concreta, visando orientar o sujeito para uma vida boa e feliz; pelo contrário, a ética deontológica discute as condições nas quais uma norma pode ser aceita como válida; então o problema ético se desloca da questão do bem para a questão do justo, da felicidade pessoal para a validade prescritiva da norma”. Percebe-se que a ética discursiva tem por objeto a construção de uma sociedade mais democrática, tendo em vista que aquilo que foi aprovado com a aquiescência da maioria consensual deve ser validado como escolha mais justa e pragmática. Como peculiaridade, nota-se que a ética discursiva é procedimental, isto é, quando todos que estão envolvidos no debate se prestam a cumprir o que foi acordado por meio de uma norma, tem-se aí a universalização concreta e pragmática do processo instalado para se chegar ao consenso.

A ética do discurso enseja sempre que a autenticidade discursiva tenha apenas uma finalidade, qual seja, a busca pela verdade. Por isso, no projeto ético habermaseano, não há espaço para mentiras políticas e nem coisas afins. Para Habermas, todo discurso deve ter a pretensão de se dizer sempre a verdade: “ falar é ipso facto levantar uma pretensão de validade; qualquer pessoa que realiza um ato de fala é obrigada a exprimir pretensões universais à validade e de se supor que é possível honrá-las” – diz Habermas, citado por O. Pegoraro. Portanto, reitere-se isso: no projeto ético habermaseano não há espaço para interesses escusos, aqueles que tanto seduzem os políticos.

Mas como deve ser os critérios do discurso apregoado por Habermas? E o que é esse tipo de discurso? – o leitor deve estar indagando agora. Vejamos como Helferich ajuda-nos a compreender isso: “o discurso é uma espécie de negociação, na qual em primeiro lugar, não é permitido excluir ou diminuir ninguém, em segundo, só contam argumentos e jamais artimanhas retóricas e, em terceiro, na qual a sentença não é pronunciada por um único indivíduo, mas consiste na concordância sem coerção, no consenso de todos implicados”. Assim, o discurso deve ser democrático, ninguém deve ser excluído. Em resposta a primeira indagação, Helferich afirma: “as obrigações, válidas em todo discurso, são de natureza moral [...] Elas nos comprometem, de modo geral, com a racionalidade que não podemos contestar, no sentido de uma ética da comunicação sincera, e nos oferecem uma um critério para discutir e julgar, fundamentalmente normas morais: são moralmente obrigatórias todas as normas que podem ser legitimadas por meio do consenso, ou seja, do acordo sem a coerção dos argumentadores”. Observa-se, aqui, que as obrigações impostas pela ética do discurso são a comunicação sincera, a moral e a ausência de qualquer tipo de coerção.

Portanto, a teoria comunicativa de Habermas tem um viés plenamente democrático. Todos devem participar. Ninguém deve ser excluído do projeto de construção de uma sociedade melhor. Nesse plano, a razão comunicativa deve prevalecer sobre a razão subjetiva. A respeito disso, Martins e Aranha afirmam que “a ação comunicativa supõe o entendimento entre os indivíduos que procuram, pelo uso de argumentos racionais, convencer o outro (ou se deixar convencer) a respeito da validade da norma: instaura-se aí o mundo da sociabilidade, da espontaneidade, da solidariedade, da cooperação”.

BIBLIOGRAFIA:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando – introdução à filosofia. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2003.

HELFERICH, Christoph. História da filosofia. Trad. Luiz S. Repa; Maria E. H. Cavalheiro; Rodnei do Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PEGORARO, Olinto. Ética dos maiores mestres através da história. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.


[1] Graduado em Filosofia; Bacharelando em Direito; Professor de Filosofia na rede pública de ensino do DF e autor de vários artigos nas áreas do Direito e da Filosofia

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Mais uma vez, agradeço a oportunidade de publicar mais um excelente artigo do Professor José fernandes P. Junior .

Parabéns pelo seu trabalho.

Marise.

sábado, 10 de abril de 2010

No afã de exisitir, por Anna Veronica Mautner

Uma reflexão sobre a premência pela superexposição:A dinâmica do ver e ser visto para poder sobreviver.
Será que os reality shows são mesmo shows e a realidade é real mesmo? A ideia dos idealizadores do gênero é fazer com que ocorra uma vivência de integração social diante de um imenso público, em geral de telespectadores. Um grande número de câmeras observa, grava, filma os que participam da experiência: pessoas escolhidas pelos organizadores. O cenário é desconhecido de todos. As regras e os limites da experiência são comuns a todos. Até entrarem na “casa”, não se conhecem, isto é, não levam sua história, mas apenas sua forma de se comportar. Um dos cuidados que os organizadores costumam ter é o de tornar o grupo representativo no que diz respeito à diversidade dos papéis sociais. Afinal, é da interação das diversidades que se constroem as sociedades. Uma vez ligadas as câmeras, tem início a vivência do espetáculo. De um lado, estão os que vão viver em público; do outro, os igualmente voluntários espectadores. A atração ocorre em tempo real. A gravação não tem nada de policialesco e nem vai para a delegacia de costumes. Se bem que os espectadores podem vivenciar algo parecido com espiar a vida alheia. Não é xeretice porque é propositadamente exposto. Tanto os participantes sabem que estão sendo observados quanto quem os observa sabe que não está fazendo nada de proibido, porque conhece as regras. Não é como espiar por baixo da saia de alguém ou por um buraco de fechadura.
Afinal, o que as mil câmeras apresentam para nós, olheiros? Parece-me que nos é oferecida a intimidade deles, por meio do acesso à sua privacidade. Tudo de comum acordo. Quando penso nessa estranha forma de intimidade que ocorre entre público e grupo observado, penso em outro fenômeno – o Twitter, no qual as pessoas oferecem a quem quiser, sem seleção, a descrição do que fazem e até do que sentem em seu dia a dia.
Essa necessidade de se expor está sem dúvida exacerbada neste século 21. Parece que só existo se estiver sendo vista. Mas por que essa pós-modernidade, na qual estamos mergulhados, exacerbou tanto a necessidade do olhar do outro? Será que é o olhar do outro que diz como estou me saindo no meu afã de existir? Será que, nos séculos passados, as pessoas recebiam feedback mais intenso e denso na relação interpessoal? Será que o fazer está tão dissociado do que sou que não mais me constitui? Existem atividades nas quais a resposta à ação feita é imediata. Por exemplo, a de bombeiro, a de médico, a de motorista de ônibus. Talvez as profissões em que o ato tem efeito imediato leve os que as exercem a se sentir vistos no fazer e, por isso, se sintam como pessoas mais facilmente. O grupo que se mostra no reality show não produz, pois não está suposto produzir, mas apenas vive para gerir sua sobrevivência no espaço considerado. Eles existem e quem os observa – nós, telespectadores – fica numa pacífica inveja desses seres que atingem milhões, e por eles são vistos, apenas por viver e sobreviver. Acompanhamos o encontro de todos no primeiro dia, o mútuo conhecimento e reconhecimento, e até como vão se despindo das armaduras sociais com que vieram e atingem uma intimidade que só pequenos grupos têm. Todo o processo de dinâmica de grupo acontece sob os olhos de mil câmeras. Podemos rever nosso primeiro dia na escola, o começo de nossos empregos, a chegada a uma colônia de férias e outras tantas circunstâncias nas quais, de repente, começamos uma nova vivência em um novo espaço, para exercício de um novo conviver. Nesse sentido, observar os reality shows pode ter caráter até terapêutico. Vejo meus acertos e erros, sabendo que estou vendo realidade, e não ficção. Um romance, uma novela se aproxima disso, mas sempre podemos racionalizar, dizendo que é da cabeça do autor. Nas novelas, assim como na literatura universal, encontramos representações simbólicas de figuras, personagens. No reality show, não: aí é de verdade. Alguns grupos são mais erotizados, outros, mais agressivos, mas sempre se forma uma intimidade. Acompanhamos todas as fases: desde o mútuo conhecimento até a despedida, cada medo, cada traição, cada saudade. Nos reality shows, vemos não uma história, mas vidas sendo vividas, o que é muito menos do que vidas sendo reproduzidas por um artista. Nos reality shows a que assistimos, não encontramos a arte, criação máxima da mente humana. Fonte: Revista Cultura

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