segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A verdade é histórica

A verdade, como a razão, está na História e é histórica.

Também as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da verdade. A teoria da verdade como correspondência entre coisa e idéia, ou fato e idéia, liga-se à concepção realista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do objeto do conhecimento, ou realidade, sobre o sujeito do conhecimento. Ao contrário, a concepção da verdade como coerência interna e lógica das idéias ou dos conceitos liga-se à concepção idealista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objeto a ser conhecido.

As concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem casuais ou acidentais, mas possuem causas e motivos que as explicam, e que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa realizar-se.

As verdades (os conteúdos conhecidos) mudam, a idéia da verdade (a forma de conhecer) muda, mas não muda a busca do verdadeiro, isto é, permanece a exigência de vencer o senso-comum, o dogmatismo, a atitude natural e seus preconceitos. É a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro que permanecem. A verdade se conserva, portanto, como o valor mais alto a que aspira o pensamento.

Se examinarmos as diferentes concepções da verdade, notaremos que algumas exigências fundamentais são conservadas em todas elas e constituem o campo da busca do verdadeiro:

1. compreender as causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros;

2. compreender as causas da existência e das formas de existência dos seres;

3. compreender os princípios necessários e universais do conhecimento racional;

4. compreender as causas e os princípios da transformação dos próprios conhecimentos;

5. separar preconceitos e hábitos do senso comum e a atitude crítica do conhecimento;

6. explicitar com todos os detalhes os procedimentos empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização;

7. liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte;

8. comunicabilidade, isto é, os critérios, os princípios, os procedimentos, os percursos realizados, os resultados obtidos devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais. Como escreve o filósofo Espinosa, o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicar-se a todos e ser compartilhado por todos;

9. transmissibilidade, isto é, os critérios, princípios, procedimentos, percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público. Como diz Kant, temos o direito ao uso público da razão;

10. veracidade, isto é, o conhecimento não pode ser ideologia, ou, em outras palavras, não pode ser máscara e véu para dissimular e ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação entre os homens. Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o conhecimento, também exige que seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos;

11. a verdade deve ser objetiva, isto é, deve ser compreendida e aceite universal e necessariamente, sem que isso signifique que ela seja “neutra” ou “imparcial”, pois o sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que afetem a realidade natural, social e cultural.

Como disseram os filósofos Sartre e Merleau-Ponty, somos “seres em situação” e a verdade está sempre situada nas condições objetavas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações. Não escolhemos o país, a data, a família e a classe social em que nascemos – isso é a nossa situação -, mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo a nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida.

A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana. Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa fragilidade-força do desejo do verdadeiro:

O homem é apenas um caniço, o mais fraco da Natureza: mas é um caniço pensante. Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele; mas disso o Universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não saberíamos ocupar.

Martinho Carlos Rost

http://www.armazem.literario.nom.br/autoresarmazemliterario/eles/martinhocarloshost/filosofia/23_modulo23.htm

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