terça-feira, 31 de março de 2009

A Filosofia e seu objetivo - fragmentos de Epicuro

  • Todo desejo incômodo e inquieto se dissolve no amor da verdadeira filosofia.
  • Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.
  • Deves servir à filosofia para que possas alcançar a verdadeira liberdade.
  • Assim como realmente a medicina em nada beneficia, se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma.
  • Não pode afastar o temor que importa para aquilo a que damos maior importância quem não saiba qual é a natureza do universo e tenha a preocupação das fábulas míticas. Por isso não se podem gozar prazeres puros sem a ciência da natureza.
  • Antes de tudo, considerando a divindade incorruptível e bem-aventurada, não se lhe deve atribuir nada de incompatível com a imortalidade ou contrário à bem-aventurança.
  • Realmente não concordam com a bem-aventurança preocupações, cuidados, iras e benevolências.
  • O ser bem-aventurado e imortal não tem incômodos nem os produz aos outros, nem é possuído de iras ou de benevolências, pois é no fraco que se encontra qualquer coisa de natureza semelhante.
  • Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo o mal e todo o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade.
  • É insensato aquele que diz temer a morte, não porque ela o aflija quando sobrevier, mas porque o aflige o prevê-la: o que não nos perturba quando está presente inutilmente nos perturba também enquanto o esperamos.
  • O limite da magnitude dos prazeres é o afastamento de toda a dor. E onde há prazer, enquanto existe, não há dor de corpo ou de espírito, ou de ambos.
  • A dor do corpo não é de duração contínua, mas a dor aguda dura pouco tempo, e aquilo que apenassupera o prazer da carne não permanece nela muitos dias. E as grandes enfermidades têm, para o corpo, mais abundante o prazer do que a dor.
  • O essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima: e desta somos nós os amos.

segunda-feira, 30 de março de 2009

A verdade é histórica

A verdade, como a razão, está na História e é histórica.

Também as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da verdade. A teoria da verdade como correspondência entre coisa e ideia, ou facto e ideia, liga-se à concepção realista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do objecto do conhecimento, ou realidade, sobre o sujeito do conhecimento. Ao contrário, a concepção da verdade como coerência interna e lógica das ideias ou dos conceitos liga-se à concepção idealista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objecto a ser conhecido.

As concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem casuais ou acidentais, mas possuem causas e motivos que as explicam, e que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa realizar-se.

As verdades (os conteúdos conhecidos) mudam, a ideia da verdade (a forma de conhecer) muda, mas não muda a busca do verdadeiro, isto é, permanece a exigência de vencer o senso-comum, o dogmatismo, a atitude natural e seus preconceitos. É a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro que permanecem. A verdade se conserva, portanto, como o valor mais alto a que aspira o pensamento.

Se examinarmos as diferentes concepções da verdade, notaremos que algumas exigências fundamentais são conservadas em todas elas e constituem o campo da busca do verdadeiro:

1. compreender as causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros;

2. compreender as causas da existência e das formas de existência dos seres;

3. compreender os princípios necessários e universais do conhecimento racional;

4. compreender as causas e os princípios da transformação dos próprios conhecimentos;

5. separar preconceitos e hábitos do senso comum e a atitude crítica do conhecimento;

6. explicitar com todos os detalhes os procedimentos empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização;

7. liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte;

8. comunicabilidade, isto é, os critérios, os princípios, os procedimentos, os percursos realizados, os resultados obtidos devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais. Como escreve o filósofo Espinosa, o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicar-se a todos e ser compartilhado por todos;

9. transmissibilidade, isto é, os critérios, princípios, procedimentos, percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público. Como diz Kant, temos o direito ao uso público da razão;

10. veracidade, isto é, o conhecimento não pode ser ideologia, ou, em outras palavras, não pode ser máscara e véu para dissimular e ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação entre os homens. Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o conhecimento, também exige que seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos;

11. a verdade deve ser objetiva, isto é, deve ser compreendida e aceite universal e necessariamente, sem que isso signifique que ela seja “neutra” ou “imparcial”, pois o sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na actividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que afectem a realidade natural, social e cultural.

Como disseram os filósofos Sartre e Merleau-Ponty, somos “seres em situação” e a verdade está sempre situada nas condições objectivas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações. Não escolhemos o país, a data, a família e a classe social em que nascemos – isso é a nossa situação -, mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo a nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida.

A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana. Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa fragilidade-força do desejo do verdadeiro:

O homem é apenas um caniço, o mais fraco da Natureza: mas é um caniço pensante. Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele; mas disso o Universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não saberíamos ocupar.

Martinho Carlos Rost

http://www.armazem.literario.nom.br/autoresarmazemliterario/eles/martinhocarloshost/filosofia/23_modulo23.htm

sábado, 28 de março de 2009

Conhecimento Virtual

Por Neri de Paula Carneiro[1]

Que é aquilo que conhecemos? Que é aquilo que vemos? O que podemos conhecer? Aquilo que conhecemos e o que vemos é, realmente, aquilo que aprece aos nossos sentidos ou pode ser outra coisa? Esse tipo de indagação não vem a propósito de uma brincadeira filosófica, mas de uma real e séria constatação que vem sendo feita ao longo de toda a história da filosofia: trata-se do centro da própria filosofia, ou seja, o problema do conhecimento. Essa questão se arrasta desde os pré-socráticos, passando por Sócrates, Platão e Aristóteles. Ganhou novas roupas no período helenístico. Atormentou os pensadores cristãos da Patrística e da Escolástica. Incendiou as fogueiras da inquisição. Ressurgiu com o renascimento. Foi revolucionada no século das luzes. Mobilizou idealistas, racionalistas e empiristas. E, no século XX, com o auxílio das ciências, ganhou estofo acadêmico e se instalou também na pesquisa científica. Em todos esses momentos históricos o problema se manifestou como a incansável busca da verdade. A verdade que possibilita o conhecimento e manipulação da realidade. Fazendo coro a essas indagações, na primeira metade do século XX o padre Pierre Teilhard de Chardin, recoloca a questão, da filosofia para a ciência: “De uns cinqüenta anos para cá, a Crítica das Ciências o tem sobejamente demonstrado: não existe fato puro; antes toda experiência, por mais objetiva que pareça, envolve-se inevitavelmente num sistema de hipóteses, desde que o sábio procura formulá-las.” (CHARDIN, p. 19, 1986). Ou seja, permanece a questão: o que é aquilo que conhecemos? O que podemos conhecer? O que é a realidade? Como ela se manifesta aos nossos sentidos ou como nossos sentidos a percebem? A questão que se coloca, neste momento é: se até agora, depois de séculos de desenvolvimento dos processos de conhecimento, ainda não somos capazes de responder a essa questão primordial, como prosseguir agora que mais uma face do problema se manifesta? Nos últimos tempos, com a revolução tecnológica manifesta-se mais uma face do problema do conhecimento: trata-se do mundo virtual ou da informática. A indagação se justifica pelo fato de que ao lado da sabedoria popular (senso comum), do saber religioso, do saber mítico, da filosofia, e da ciência, passamos a conviver, atualmente, com o saber do universo virtual ou informacional. E se já eram multiplas as discussões agora elas se ampliam muito mais, pois todos os aspectos anteriores podem ser abordados também do ponto de vista virtual. Na atualidade, com o avanço do universo virtual, informatizado, a indagação se amplia: além da busca pela verdade do ponto de vista filosófico e científico, nos deparamos com o problema da verdade virtual. As questões que se colocam permanecem as mesmas, acrescidas da indagação sobre o que vem a ser esse universo virtual? O que é o mundo da informática? Isso, só para nos determos sobre duas questões metafísicas, deste novo universo. Mas as indagações não se esgotam nisso: nascem questões éticas e sociais, atinentes a este universo; as questões políticas relacionadas à informalidade e virtualidade. Além, é claro, das questões relativas à própria teoria do conhecimento. Realidade virtual Jornal virtual, revista virtual, garota virtual, notícia virtual, namoro virtual, sexo virtual... Mundo virtual. Vivemos num mundo em que a palavra virtual adjetiva quase todas as realidades e situações: do cotidiano das famílias às decisões políticas; do mundo dos negócios ao mundo dos brinquedos estamos nos deparando, o tempo todo, com algo que é virtual. É como se a cada realidade material pudéssemos acrescentar seu correspondente virtual. Portanto já está na hora de sabermos o que é isso que chamamos de virtual? Se fizermos um passeio pela internet encontraremos inúmeras páginas e definições para virtual. Renato R. Souza afirma que somente numa busca podem aparecer milhões de referências. Diz ele que virtual “é um dos termos mais usados, para a descrição de construções e organizações da alta modernidade. Para exemplificar, uma consulta no mecanismo de busca AltaVista por virtual ou virtualidade nos traz mais de trinta e seis milhões de ocorrências” (SOUZA, 2008). O autor, no mesmo artigo, após fazer várias considerações propõe que, entre outras acepções, pode-se entender o virtual como sendo aquilo que é “Mediado ou potencializado pela tecnologia; produto da externalização de construções mentais em espaços de interação cibernéticos”. Quer dizer, estamos no mundo da informática. Do ponto de vista filosófico, isso ainda não é suficiente. Um passo a mais pode ser dado quando analisamos a palavra a partir de sua etimologia: essa é uma palavra de origina latina: virtus: força, poder... Força relaciona-se com uma capacidade mobilizadora ou realizadora; a realidade que tem força não depende de outro, mas age por si; realiza o que lhe convém. Uma semente, por exemplo, possui uma força interna que, conjugada a outras forças, produz a árvore. O poder relaciona-se com a capacidade de interferência. Podemos dizer que aquele (aquilo) que tem poder tem capacidade de interferir ou agir sobre outro (coisa ou pessoa). Um pai tem poderes sobre um filho, podendo, pois, interferir em seu processo educacional. Virtus também se relaciona com virtude o que nos leva para as proximidades da moral: a virtude pode ser entendida como aquela força interior que mobiliza as pessoas na prática de ação socialmente aceita. A virtude se contrapõe à ausência de uma qualidade específica que aproxima o virtuoso do justo e aquele sem virtude do fraco ou mau caráter. Com Aristóteles foram criadas as categorias de Ato e Potência onde o que é pode vir a ser algo diferente. Daí provém uma outra concepção de Virtual. Assim como a potência aristotélica, o virtual é aquilo que pode vir a ser, contrapondo-se à realidade em ato; àquilo que é algo naquele momento. Notemos que nesta concepção estão presentes outras categorias: o tempo e o movimento. O tempo joga com o agora, com o atual em oposição ao depois potencial, que se volta para o futuro, virtual. Mas também está presente a idéia de força, pois o que é, podendo transformar-se em algo diferente, para o quê tem potência, depende, para realizar esse movimento de transformação, da força que lhe confere capacidade para vir a ser. Assim o que é, é virtualmente algo diferente daquilo que pode vir a ser. Essa forma de concepção da realidade virtual se aproxima daquilo que diz Lévy: "o virtual não se opõe ao real, mas sim ao actual. Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objecto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a actualização." (LÉVY, 1996, p.16). E o autor continua, dizendo que a "A virtualização pode ser definida como o movimento inverso da actualização. Consiste em uma passagem do actual ao virtual, em uma 'elevação à potência' da entidade considerada.” (LÉVY, 1996, p.17). Ou seja, permanecemos na discussão entre o que é e o que pode vir a ser. Essa concepção, entretanto não esgota e nem dirime a duvida sobre a virtualidade de uma realidade virtual. Assim sendo, podemos colocar a realidade virtual ao lado de outras realidades, como a realidade concreta, sobre a qual temos contato e conhecimento imediato. Mantemos um primeiro contato, e iniciamos o conhecimento, de uma realidade concreta quando a olharmos ou a tocarmos. Nesse momento adquirimos uma primeira noção sobre essa realidade. Uma cadeira, um computador, uma luminária, são realidades concretas. Realidade abstrata pode ser vista como aquelas sobre as quais nos acostumamos a dizer que “sabemos o que é, mas não podemos tocar”. Podem até nos tocar, mas nós não as tocamos. Um sentimento de amizade ou o amor podem ser mencionados como exemplo de realidade abstrata. Realidade imaginária é aquela que só existe na imaginação. Não tem existência nem física, concreta, nem abstrata, em nível de sentimento. A realidade imaginária pode ser exemplificada pela literatura, pelo cinema. Cada um dos personagens de um filme são entidades imaginárias. Com a realidade imaginária não há possibilidade de interação. Posso assistir a um filme, ler um romance, imaginar os personagens recriando-os em minha consciência, mas não posso alterá-los, pois deixariam de ser aquele personagem ou aquela cena. O fato é que a realidade imaginária se assemelha à realidade virtual. Com a diferença de que a imaginária depende apenas da mente humana ao passo que a realidade virtual pode ser mediatizada por instrumentos ou equipamentos. A imagem que vejo na tela do meu computador é um exemplo de realidade virtual, pois a estou vendo, ela se me apresenta, mas somente existe na mediação do equipamento; não tem existência própria ou em si mesma. Caso possua os conhecimentos ou equipamentos necessários posso, se assim achar conveniente, interagir com a realidade ou com o mundo virtual. A realidade virtual existe para permitir a interação; essa possibilidade não existe em relação à realidade imaginária, pois havendo interação, ocorre alteração e já não se trataria mais da mesma realidade. Sendo assim, à pergunta sobre o que é a realidade virtual podemos responder que ela se manifesta por meio de algo. Ela pode vir a ser concreta, se eu imprimir a imagem de minha tela de computador, por exemplo. Mas, nesse momento a realidade virtual passa a ser concreta. O virtual se concretiza, mas permanece virtual, pois continua à minha disposição, em minha tela... Informática, o que é isso? Esta é outra palavra que circula no “universo virtual”. Ela é usada tanto como substantivo como na adjetivação de outras: “a informática como solução”, “aulas de informática”, “empresa informatizada”, “educação para a era da informática”, são algumas das variantes em que a palavra é utilizada. Também aqui a compreensão da palavra gera indagações: o que é isso que se chama de informática? Assim como na utilização da palavra “digital” o senso comum diz (sem se dar conta de que digitus, em latim, significa dedo) que se trata de algo que “tem a ver com computação”, a palavra “informática”, para o senso comum também se trata de algo relacionado com computadores. Se para “digital” a explicação do senso comum é a afirmação de uma realidade que se manifesta por meio do computador, a informática, para o senso comum, se refere à utilização do computador. Dessa forma é que se entendem expressões como: “loja informatizada”, dizendo ser aquela que utiliza computadores em suas operações. Mas só isso explica tudo? Parece que não. Sendo assim, aqui também, podemos nos socorrer da etimologia da palavra. Informática: “in”; “forma”. O prefixo “in” refere-se a algo que está sendo direcionado para dentro. A palavra “forma” já é bem mais conhecida. Qualquer dona de casa tem pelo menos uma forma de assar bolo, em sua cozinha. E é neste ponto que se manifesta o problema da informática. Vamos observar uma dona de casa. O que ela faz com sua forma de bolo? Bolo, evidentemente. Mas a resposta não é só isso. Antes do bolo, ela prepara a massa. E a massa se amolda a qualquer recipiente. A massa é livre para assumir qualquer modelo. Ela não tem modelo pré-definido, mas amolda-se. A massa é tão maleável que se adequa às mais diversas circunstâncias, ou às diferentes formas. Entretanto, uma vez enformada e levada ao forno a massa deixa de ser massa e se trans-forma em bolo. Deixa de ser livre para receber a fixidez da forma em que foi assada. Perde seu formato “informe” para a forma em que foi assada. A partir dessa comparação podemos dizer que a forma mata a liberdade da massa. A informática, consequentemente, pode ser vista como uma organização que estabelece padrões fixos; introduz modelos prontos a serem copiados e seguidos. A informática, portanto, não é abertura de possibilidades, mas adequação àquilo que está estabelecido pela forma em que se está introduzindo algo. Na chamada “enciclopédia livre” a Wikipédia (2008), lemos que:

“O termo informática, sendo dicionarizado com o mesmo significado amplo nos dois lados do Atlântico, assume em Portugal o sentido sinónimo de ciência da computação enquanto que no Brasil é habitualmente usado para referir especificamente o processo de tratamento da informação por meio de máquinas eletrônicas definidas como computadores”.

Por sua vez Willrich (2000) afirma que o computador é apenas um instrumento, e que o processo de manipulação das informações, por meio do computador, é o que se pode entender como informática. Diz o autor que: “A Informática engloba toda atividade relacionada ao desenvolvimento e uso dos computadores que permitam aprimorar e automatizar tarefas em qualquer área de atuação da sociedade. Podemos definir a informática como a ‘ciência do tratamento automático das informações’. Muito mais que visar simplesmente a programação de computadores para executar tarefas específicas, a informática estuda a estrutura e o tratamento das informações sob suas mais variadas formas: números, textos, gráficos, imagens, sons, etc.” (Willrich, 2000) Isso confirma o que havíamos falado: a informática está associada à idéia de instrumentos que facilitam o manuseio de informações. Não se trata de canal de libertação, mas de estabelecimento de padrões determinados. Podemos dizer que, se por um lado a idéia da virtualidade nos lança para a amplidão das possibilidades, a informática, por outro, nos vincula aos meios pré-estabelecidos. Podemos dizer mais. Na atualidade e na forma como se entendem essas duas concepções de informação – virtual e informacional – verificamos que o universo virtual depende da informática. Sendo que a informática se desenvolve a partir de elementos pré-fixados, o que na linguagem do senso comum foi batizado de “programa de computador” ou o “software”, concluímos que o universo virtual, que pode ser desenvolvido no mundo da informática, é aquele universo estabelecido dentro dos limites de um programa específico. Abre possibilidades, sim; e enormes. Mas essas possibilidades não ultrapassam os limites do programa que se está usando. O que podemos dizer, portanto é que as informações estão à disposição de quantos dela queiram se apropriar: Digitalizadas, virtuais, informatizadas, acessíveis mediante os computadores e na grande rede... Estão por aí. Foram produzidas e disponibilizadas. E, como tal, as informações são virtuais, pois não têm uma existência concreta e palpável à nossa frente. Mas podem ser “acessadas”. De que necessitamos, para nos apropriarmos delas? De inúmeras ferramentas, entre elas as ferramentas da informática. E se bem nos utilizarmos das informações, podemos não só usufruir delas como fazermos uso de recursos de que dispusermos para produzir novos conhecimentos. Referências CHARDIN, P. Teilhard. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1986 LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996. SOUZA, Renato Rocha O que é, realmente, o virtual. Disponível em acessado em 26/06/2008. WIKIPÉDIA. Informática, disponível em acessado em 22/06/2008 WILLRICH, Roberto INE5602 Introdução à Informática. Florianópolis: UFSC, Depto. de Informática e de Estatística, Curso de Graduação em Sistemas de Informação. 2000. Disponível em > acessado em 26/06/2008 -------------------------------------------------------------------------------- * artigo elaborado como material complementar às aulas de Filosofia, para o primeiro e terceiro períodos do curso de Sistema de Informação da FAP – Pimenta Bueno, durante o primeiro semestre de 2008. Publicado nos sites www.webartigos.com e www.artigonal.com [1] Mestre em Educação pela UFMS. Especialista em Educação; Especialista em Didática do Ensino Superior; Especialista em Teologia; Professor de História e Filosofia na rede estadual, em Rolim de Moura – RO. Filósofo; Teólogo; Historiador; Professor de Filosofia e Ética na Faculdade de Pimenta Bueno (FAP). Jornalista e produtor e apresentador de programa radiofônico.

quinta-feira, 26 de março de 2009

O que são valores?

1. Quando decidimos fazer algo, estamos realizando uma escolha. Manifestamos certas preferências por umas coisas em vez de outras. Evocamos então certos motivos para justificar as nossas decisões.

2. Fatos e valores

Todos estes motivos podem ser apoiados em fatos, mas têm sempre implícitos certos valores que justificam ou legitimam as nossas preferências.

Exemplo:

O dia 18 de Março de 2009 é o dia mais importante da semana, era domingo.

Fato: O dia de 18 de Março de 2009 foi efetivamente um domingo.

Valor implícito : O domingo como o dia mais importante da semana.

3.Fato

Um fato é algo que algo que pode ser comprovado, sobre o qual podemos dizer que a afirmação é verdadeira ou falsa. Os fatos são igualmente susceptíveis de gerarem consensos universais.

4. Valor

Podemos definir os valores partindo das várias dimensões em que usamos:

a) os valores são critérios segundo os quais valorizamos ou desvalorizamos as coisas;

b) Os valores são as razões que justificam ou motivam as nossas ações, tornando-as preferíveis a outras.

Os valores reportam-se, em geral, sempre a ações, justificam-nas.

Exemplo: Participar numa manifestação a favor do povo timorense,pode significar que atribuímos à Solidariedade uma enorme importância. A solidariedade é neste caso o valor que justifica ou explica a nossa ação.

Ao contrário dos fatos, os valores apenas implicam a adesão de grupos restritos. Nem todos possuímos os mesmos valores, nem valorizamos as coisas da mesma forma.

5. Tipos de valores

Os valores não são coisas nem simples ideias que adquirimos, mas conceitos que traduzem as nossas preferências. Existe uma enorme diversidade de valores, podemos agrupá-los quanto à sua natureza da seguinte forma:

Valores éticos: os que se referem às normas ou critérios de conduta que afetam todas as áreas da nossa atividade. Exemplos: Solidariedade, Honestidade, Verdade, Lealdade, Bondade, Altruísmo...

Valores estéticos: os valores de expressão. Exemplo: Harmonia, Belo, Feio, Sublime, Trágico.

Valores religiosos: os que dizem respeito à relação do homem com a transcendência. Exemplos: Sagrado, Pureza, Santidade, Perfeição.

Valores políticos: Justiça, Igualdade, Imparcialidade, Cidadania, Liberdade.

Valores vitais: Saúde, Força.

6. Hierarquização dos Valores

Não atribuímos a todos os nossos valores a mesma importância. Na hora de tomar uma decisão, cada um de nós, hierarquiza os valores de forma muito diversa. A hierarquização é a propriedade que tem os valores de se subordinarem uns aos outros, isto é, de serem uns mais valiosos que outros. As razões porque o fazemos são múltiplas.

Exemplo:

A maioria da população mundial continua a passar graves carências alimentares. Todos os anos morrem milhões de pessoas por subnutrição. Não é de querer que hierarquia dos seus valores destas pessoas a satisfação das suas necessidades biológicas não esteja logo em primeiro lugar.

7. Polaridade dos Valores

Os nossos valores tendem a organizar-se em termos de oposições ou polaridades. Preferimos e opomos a Verdade à Mentira, a Justiça à Injustiça, o Bem ao Mal, a beleza à fealdade, a generosidade à mesquinhez. A palavra valor costuma apenas ser aplicada num sentido positivo. Embora o valor seja tudo aquilo sobre o qual recaia o ato de estima positiva ou negativamente. Valor é tanto o Bem, como o Mal, o Justo como Injusto..

terça-feira, 24 de março de 2009

Se os tubarões fossem homens

Se os tubarões fossem homens, perguntou ao senhor K. a filha de sua senhoria, eles seriam mais amáveis com os peixinhos? Certamente, disse ele. Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, lhe fariam imediatamente um curativo, para que não morresse antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres tem melhor sabor do que os tristes. Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões. Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar. O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam evitar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e avisar imediatamente os tubarões, se um deles mostrasse tais tendências. Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, iriam proclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de argaço e receberia um título de herói. Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardim que se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarões, e a música seria tão bela, que seus acordes todos os peixinhos, como orquestra na frente, sonhando, embalados, nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões. Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões. Além disso, se os tubarões fossem homens também acabaria a idéia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os menores. Isso seria agradável para os tubarões, pois eles teriam com maior freqüência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc. Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens."
BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. São Paulo, Brasiliense, 1982.
Questões: 1) Quem são os peixinhos e os tubarões, nessa espécie de alegoria? 2) Para que dispensar cuidados aos peixinhos? 3) Qual a necessidade de promover festas? Dêem exemplos de promoção dessa natureza para a realidade em que vivemos. 4) Existe alguma semelhança entre as escolas dos peixinhos e as nossas? 5) Há uma razão que faz ser importante a formação moral dos peixinhos. Qual? 6) Trace um paralelo entre as guerras dos peixes e as dos homens. 7) Qual o significado de os peixes serem mudos? 8) Vocês conhecem alguns “heróis” que se sacrificaram em prol dos "tubarões"? 9) Segundo Brecht, a pintura, a música e o teatro podem estar a serviço da ideologia. Discutam isso a partir do texto. 10) Que tipo de religião o autor critica na alegoria? 11) Vocês identificam alguma relação entre a "civilização no mar" e a divisão social do trabalho entre os homens? Fonte:CORDI, Cassiano et. al. Para Filosofar. São Paulo: Gráfica Ltda., 1995. Recebi este texto hoje do Professor Bento - Professor de Filosofia de Diadema - SP. Obrigado e um grande abraço, Marise.

domingo, 22 de março de 2009

A Radicalidade da Filosofia

A filosofia é um saber radical porque vai à raiz dos problemas. Para o filósofo não existem respostas conclusivas: cada resposta é um momento do questionamento filosófico, é um patamar na busca da verdade, que serve de apoio para a colocação de novas questões, mais profundas e abrangentes.

Em filosofia não há outra saída: nada pode deixar de ser questionado, nem mesmo o que parece inquestionável. Quanto mais óbvia uma ideia nos parecer, mais necessário é interrogarmo-nos acerca da sua verdade ou consistência. Com isto não devemos ficar com a ideia de que em filosofia as respostas não são importantes. Não devemos pensar que os filósofos se limitam a questionar por questionar, que tudo é incerto.

Muito pelo contrário: o que caracteriza o questionamento filosófico é o facto de ser um caminho para a verdade, orientado por um espírito de rigor e de coerência racional. O questionamento filosófico é uma busca do sentido de tudo: da vida humana, do universo, do tempo, da morte...

Enquanto busca do sentido, o filosofar dá sentido, em primeiro lugar, à ignorância que é o seu ponto de partida, em segundo lugar, ao mundo enquanto objecto de interrogação. Ao tentar compreender o porquê de todas as coisas, o filósofo está perante o mundo como um construtor de puzzles: começa por separar as peças, por baralhá-las para as poder ver uma a uma sem estar preso a relações ilusórias; depois começa a encaixar as peças formando pequenas ilhas de sentido que, por vezes permitem ter uma ideia, ainda que muito vaga, do todo.

Mas para que esta imagem do construtor de puzzles se pudesse adequar ao filósofo teríamos que imaginar um puzzle com um numero quase infinito de peças, em constante mudança e do qual o próprio construtor faz parte.

Fonte: http://www.espanto.info/av/pcfil.htm

O valor do Conhecimento

Com frequência escutamos pessoas falando sobre a importância de ter conhecimento. Alguns chegam a falar que vivemos na sociedade do conhecimento. Parece haver uma força cultural que nos impele a assumir o objetivo prioritário de ter conhecimento.
Por outro lado, se observarmos aquilo que o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C) escreveu no primeiro parágrafo de um dos seus livros: "todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer". Podemos concluir, então, que o impulso para conhecer vem pelo menos de dois lados: da natureza e da cultura.
Fonte: Jornal Mundo Jovem e Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da PUC-RS - Abril 2009- ano 1, número 2. E você concorda? Por quê?

sábado, 21 de março de 2009

A mentirosa liberdade - Lya Luft

"Liberdade não vem de correr atrás de ‘deveres’ impostos de fora, mas de construir a nossa existência"

Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e, pior, na alma – como se fosse algodão-doce colorido. Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não estar bem enquadrados, medo de não ser valorizados pela turma, medo de não ser suficientemente ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.

Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que chamo a síndrome do "ter de". Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher com calma. Medicados como somos (a pressão, a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo recorremos a expedientes, porque nossa libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.

Ilustração Atômica Studio

Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, moderno, valorizado e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos. Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadíssimo e cruel: temos de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos 30, 40 anos se temos 60, e 50 se temos 80 anos de idade. A deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos discernir as coisas que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar, analisar e curtir – ou nos falta o que vem depois: maturidade?

Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que você vai ser? O que vai estudar? Como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer? E um Viagra para melhorar ainda mais? Ainda aguenta os chatos dos pais? Saiba que eles o controlam sob o pretexto de que o amam. Sai dessa! Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?

Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no fundo desinteressantes, como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda. Descobrir o que queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso. É possível estar contente e ter projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortuna. Sem cumprir tantas obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura, desorientada, em crise. Liberdade não vem de correr atrás de "deveres" impostos de fora, mas de construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobra tão pouco tempo. Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões e melancolia para aguentar a vida, sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de ter feito.

Lya Luft é escritora

Fonte: Revista Veja - Edção 2105 - 25/03/2009

O que está faltando?

sexta-feira, 20 de março de 2009

O Bom Senso

René Descartes

Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem.

E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não considerarmos as mesmas coisas.

Pois é insuficiente ter o espírito bom, o mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes, e os que andam muito devagar podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam.

René Descartes Em sua célebre obra O Discurso do Método

quarta-feira, 18 de março de 2009

Perguntas? O que é uma pergunta filosófica?

1) Que é uma pergunta?

Palavra ou frase com que se interroga. Indagação feita com o intuito de obter uma resposta. Ditado: "Quem pergunta quer saber". Tipos de perguntas: Que é isto? Que horas são?

2) Que é uma pergunta filosófica?

As questões filosóficas não são pontuais, isoladas, mas estabelecem redes, conectam-se a outras questões, tecendo um campo mais amplo de investigação. A pergunta filosófica relaciona-se com a admiração, a crítica, a reflexão e a vivência do sujeito. A pergunta filosófica sintetiza o objetivo central da filosofia, ou seja, inclui o conhecimento de si mesmo, a relação do sujeito com o próximo e a consciência do mundo que o rodeia.

3) Ensinar a pensar é ensinar a perguntar?

Sim. Observe alguns livros de filosofia. Os autores, em cada capítulo, partem de questões provocativas. Tomemos como exemplo o capítulo III, Que é Bem e que é Mal?, do livro de S. E. Frost Jr., Ensinamentos Básicos dos Grandes Filósofos. Eis as perguntas iniciais: Qual a medida do bem e do mal? Como podemos saber se um ato é bom ou mal? Existe, na própria natureza do universo, um código de leis que determine o bem e o mal? Ou é a bondade e a maldade uma questão de relação entre um ato e outros atos?

4) Como reaprender a perguntar?

Admirar-se, espantar-se com o que ocorre diariamente e daí elaborar uma pergunta. Não se deve conformar com o que foi dito pela mídia ou pela boca de uma autoridade. É preciso buscar algo que esteja por detrás das aparências. "Para pressentir no mundo outra realidade, precisamos cavar muita terra como quem busca ouro. A filosofia é uma longa atividade de escavação".

5) Em que consistiam as perguntas de Sócrates?

As perguntas de Sócrates não tinham o objetivo de obter uma resposta definitiva. O que ele queria era, através de um encadeamento de perguntas e respostas, aprofundar o conhecimento acerca de um determinado tema. Preocupava-se em passar da opinião ao conceito, ou da doxa a episteme, sem, contudo, chegar a uma conclusão sobre o assunto proposto.

Lembrete: "O alvo da filosofia é fazer as perguntas certas, não descobrir as respostas certas".

6) Quem sou eu é uma pergunta filosófica?

Informar o nome, o estado civil, o endereço e a idade não é resposta filosófica. Mesmo acrescentando alguns dados, como por exemplo, excelente professor de Direito ou coisas semelhantes, ainda não é uma resposta filosófica. Para ser filosófica, a resposta tem a ver com vivência, atitude de reflexão e estado de admiração. O exemplo de Santo Agostinho é pertinente: Dizia que todas as noites, antes de adormecer, repassava o seu dia para ver como fora com as suas palavras, os seus pensamentos e os seus atos. Se percebesse que tinha ofendido o seu próximo, pedia silenciosamente o seu perdão.

7) Toda a pergunta precisa de resposta?

Não. Há muitas perguntas que fazemos simplesmente no intuito de apresentar um tema ou uma questão. É como esquentar o motor do carro antes de pegar a estrada. A pergunta que precisa de resposta é aquela que prende a nossa atenção, é aquela que diz respeito a uma necessidade peremptória do nosso espírito imortal.

8) Como fazer perguntas relevantes?

As perguntas que contribuem para a construção do conhecimento são perguntas relevantes. Deve-se tomar consciência se as nossas perguntas se dirigem para tal propósito.

Para reflexão: "Desde que entramos no ensino fundamental, ou mesmo antes, somos geralmente ensinados a dar respostas a questões formuladas por outras pessoas. O mero responder pode consistir em um bloqueio no processo de construção do conhecimento, pois não costumamos observar os limites de nossas respostas".

FÁVERO, Altair Alberto et all. (Org.) Um Olhar sobre o Ensino de Filosofia. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2002. (Coleção filosofia e ensino)

segunda-feira, 16 de março de 2009

As Principais Características da Filosofia

Aristóteles diz-nos que a Filosofia começa com o espanto, com o reconhecimento da ignorância. De fato, quem reconhece a sua ignorância, não admite ficar nessa condição, uma vez que a ignorância é, no fundo, a incapacidade de dar sentido à vida e ao universo. É essa a mensagem da alegoria da caverna quem não se sabe ignorante vive fechado numa representação ilusória da vida: tudo, então, conspira para que os homens vivam acorrentados a um cotidiano estéril e sem perspectivas.

Por isso a Filosofia começa por ser uma reivindicação de liberdade: o filósofo reconhece a sua razão como a capacidade mais importante do ser humano, na verdade é um conjunto de capacidades: a capacidade de pensar, de explicar os fenômenos, de calcular, de prever, de projectar, de sonhar, de imaginar, de criar e, também, de destruir, pois a racionalidade não está isenta de erro e errar é uma possibilidade que está aberta ao ser humano porque, lá bem no âmago destas capacidades a que chamamos "razão", o que temos a dar sentido a tudo o que os homens são, é a liberdade.

Ora, se há liberdade, tem que haver uma motivação e um quadro valorativo que oriente o uso da liberdade.

Quer na Grécia, quer na Índia, se fizermos o esforço de ver como filhas de um mesmo movimento de emancipação, a filosofia ocidental e a filosofia oriental, desde o início que essa motivação e esse quadro valorativo estão bem estabelecidos: o valor fundamental que dá sentido à indagação filosófica é a verdade. A filosofia é uma busca da verdade, uma busca de sentido.

E essa busca apresenta-se-nos, na palavra grega "filosofia" como amor à sabedoria.

Creio que as interpretações mais correntes da definição etimológica da palavra "filosofia" têm banalizado este "amor" é que esse amor é mesmo Amor, não se trata duma simples expressão relativa à intensidade dessa busca da sabedoria, mas antes, de um projecto de elucidação dos problemas fundamentais com vista ao aperfeiçoamento moral de quem o empreende e à libertação de todos os homens da ignorância causadora de injustiças e de desigualdades geradoras de sofrimento. Hoje talvez nos tenhamos afastado desse ideal, mas isso não significa que ele não faça parte do movimento cultural (espiritual) que deu origem à Filosofia.

Convém não esquecer que a Filosofia e os saberes racionais dela derivados, têm origem numa busca da verdade, orientada para um uso autêntico da liberdade e para uma cada vez mais completa aproximação do viver comum ao ideal da sabedoria, encarada ao mesmo tempo como a posse da verdade acerca da vida e do universo e como o uso de todas as capacidades humanas (que constituem o núcleo significativo da racionalidade), ao serviço do verdadeiro, levando a que os homens conheçam a verdade e a pratiquem, ao nível do pensamento, do discurso e da acção.

Isto faz com que a Filosofia seja um saber radical. A Filosofia é radical porque vai à raiz dos problemas: o filósofo aprofunda ao máximo o seu questionamento, indo muito para além dos limites da ciência, pois esta está limitada pelo observável, não podendo ir para além da experiência efectiva da realidade. O filósofo pode ir mais longe, acabando por se expor mais ao erro, mas abrindo muitas vezes vias que mais tarde a ciência irá explorar com sucesso. E isto está de acordo com a diversidade do humano: há homens que são exploradores, que gostam da aventura e que se perdem pelo mundo na busca do esclarecimento dos enigmas, mas também há homens que preferem construir uma casa, cultivar os campos, produzir artefactos. Sem estes últimos os primeiros não poderiam partir à aventura e sem os aventureiros, os construtores ficariam fechados num mundo muito limitado. Muitos cientistas são aventureiros, como é natural, pois a ciência faz parte dessa aventura da busca do sentido, mas os filósofos chegam a ir para lá do que parece razoável e, nesse sentido, estão muito próximos dos artistas, quando estes não param de dar largas à sua criatividade. A ciência só vai até onde o método experimental, e os métodos dele derivados, permitem ir: o único limite da ciência é o método científico e neste sentido podemos dizer que a ciência partilha da mesma exigência de autonomia que caracteriza a filosofia, pois a ciência deve ser independente de toda a pressão externa e de todo o tipo de preconceito, no entanto, a autonomia da ciência é relativa: os cientistas não podem ir para além dos princípios fundamentais que orientam a investigação em cada uma das áreas da ciência. A ciência é um saber colectivo e o cientista só pode investigar de forma autêntica, integrado numa comunidade científica e especializando-se numa área restrita.

O pensamento filosófico é pessoal uma vez que cada filósofo não só vê o mundo à sua maneira, como também se questiona a partir das suas inquietações, envolvendo-se integralmente no seu questionamento: coloca-se em causa ao reconhecer a sua ignorância e faz uma verdadeira revolução interior ao procurar quebrar os limites do senso comum dentro do qual foi educado e que, com o passar dos anos, formou um conjunto de camadas de inconsciência que lhe roubou a visão correcta da realidade. Para readquirir essa visão é necessário enfrentar os fantasmas que condicionam os homens e os impedem de viver uma existência autêntica, que deve ser encarada como uma vida plena, completamente liberta de constrangimentos que impeçam a liberdade e o seu pleno usufruto, a que os homens costumam chamar felicidade. Esses fantasmas são: o medo, a culpa e a inveja.

Comecemos pela inveja: ela pode definir-se como a incapacidade de vermos os outros como seres iguais a nós, com o direito inalienável de serem livres e felizes. Não é filósofo, nem alguma vez perceberá de filosofia, quem inveja os outros, ou quem se julga superior a qualquer outro ser humano. Quem julga que os outros lhe podem roubar a felicidade, ou a importância, não é autónomo, pois só o é quem consegue assumir-se como a personagem principal da sua vida. Quem inveja vive em função daquilo que julga ver nos outros, não é, pois independente, não pensa nem age por si.

A culpa é um reflexo da liberdade, pois nasce da consciência que temos da nossa responsabilidade. No entanto, se é verdade que cometemos acções de que mais tarde nos arrependemos, também não deixa de ser verdade que podemos aprender com os nossos erros. E a culpa muitas vezes nasce duma apreciação errada da realidade e das nossas acções. Ela representa sempre um bloqueio da nossa capacidade de decidir e causa um sofrimento que pode ser destrutivo. Por isso, o que temos que fazer é olhar o passado como uma lição que nos pode ajudar a evoluir e nunca como uma limitação da nossa liberdade e da nossa criatividade.

O medo é, talvez, o fantasma mais "lógico", pois se for exagerado acaba por nos paralisar. Há medos colectivos, que levam a que comunidades inteiras se fechem ao exterior (o filme "A Vila" é um bom exemplo disso), por essa razão grande parte do globo terrestre ficou por explorar pelo homem ocidental, muitos séculos depois deste possuir a tecnologia que lhe permitiria cruzar o Atlântico e circunavegar a Terra.

Na nossa vida o medo pode paralisar-nos e convencer-nos de que não vale a penha sonhar e querer evoluir espiritual e materialmente. Por isso, a Razão é fundamental para iluminar a nossa existência e para nos levar a compreender as circunstâncias em que nos encontramos inseridos a cada momento. Temos, então, que desenvolver a nossa capacidade racional de compreender, e de formular, explicações coerentes sobre o funcionamento da realidade, sem que fiquemos presos a preconceitos e a formas supersticiosas de explicar aquilo que nos acontece. Este é, talvez, o maior contributo da filosofia para a nossa vida: não está em causa, quando estudamos filosofia, um aumento dos nossos conhecimentos, mas um refinamento da nossa capacidade de interrogar e de esclarecer problemas e enigmas. Por vezes a nossa maneira de encarar as coisas muda radicalmente, sem que, com isso tenhamos saído do ponto onde nos encontrávamos, tal como quando nos encontramos numa sala escura e acendemos a luz: os objectos que passamos a ver já lá estavam, mas nós não os víamos, embora pudéssemos saber que esses objectos lá estavam, o simples facto de podermos vê-los altera tudo. Quando reconhecemos a nossa ignorância e tomamos a decisão de procurar a verdade, e nada mais do que a verdade, a inveja, o medo e a culpa esfumam-se e deixam na nossa mente uma confiança renovada na nossa capacidade de resolver os problemas que a vida nos colocar.

Temos, pois, a autonomia como a característica-chave da filosofia: os filósofos fazem um uso pleno da sua liberdade e seguem um caminho de independência face aos poderes que limitam a relação dos homens com o mundo. A filosofia é um saber independente dos outros saberes e dos poderes instituídos nas sociedades, bem como dos valores dominantes, sejam eles de origem social, cultural ou religiosa. Por esta razão temos uma longa lista de filósofos que morreram pelas suas ideias e pelo ideal de emancipação que habita no âmago da inquirição filosófica. Sócrates é um desses filósofos e o seu exemplo é de tal forma eloquente que qualquer forma de menosprezo da sua participação na história da filosofia não pode deixar de ser encarada como uma prova indesmentível de estupidez.

Por tudo isto se pode concluir a filosofia é um exercício profundo da racionalidade e, enquanto saber racional, os seus conteúdos, embora assentem numa aventura pessoal do pensar, são universais: quando um filósofo se interroga, não está à procura de uma resposta que satisfaça a sua curiosidade emocional e subjectiva, dirige-se à Razão enquanto faculdade de pensar, procura estabelecer um quadro racional que dê sentido a realidade. O filósofo não quer persuadir os outros de que tem razão, mas procura, acima de tudo, que os outros homens, sejam eles filósofos ou não, reconheçam a validade dos argumentos empregues em defesa de uma tese racionalmente formulada e orientada para a descoberta da verdade acerca do real. Por exemplo, ao questionar-se sobre o homem, o filósofo procura esclarecer a natureza de todos os homens, independentemente das características individuais que tornam os homens diferentes entre si.

Mas não devemos confundir a universalidade da filosofia, enquanto exigência de racionalidade, com qualquer forma de dogmatismo. A filosofia é, desde a sua origem, um saber anti-dogmático, para os filósofos não há verdades inquestionáveis e absolutas, imutáveis e desligadas da realidade que efectivamente vivemos, uma realidade em constante mudança, marcada pela acção transformadora do homem sobre a Natureza e pelos grandes movimentos que marcam a tecitura histórica do mundo.

A filosofia é marcada pela historicidade inerente à condição humana, nada que se refira ao homem, encarado como indivíduo ou como espécie, foge à mudança, pois o tempo faz parte da existência humana e todos os homens estão condenados a ser e a passar, pois somos mortais e temos a consciência da nossa mortalidade e da evanescência de tudo o que criamos.

Assim, a filosofia é marcada pela história, tem uma tradição duas vezes milenar que serve de base à indagação filosófica em cada momento histórico. E a par da tradição existe a inovação: em cada época surgem novos problemas que vêm enriquecer o património da racionalidade filosófica e cada filósofo, ao assumir a sua aventura filosófica, é original e inovador, acrescenta algo aos modos de ver que são próprios da filosofia. Por isso a filosofia está sempre aberta ao espanto e ao alargamento dos horizontes do saber e do viver sob o signo da verdade.

Fonte: http://www.espanto.info/av/pcf.htm

sábado, 14 de março de 2009

O que é o Problema?

Na nossa vida cotidiana dizemos que temos um problema, quando nos surge uma dificuldade que nos impede de atingir um qualquer objetivo. Se estou a fazer um bolo, por exemplo (isto não é coisa que eu faça freqüentemente, pelo que se o fizer, de certeza que me verei a braços com muitos problemas…), seguindo uma receita, posso descobrir que só tenho 6 ovos, quando a receita exige 8. Trata-se de uma dificuldade, certo?

Mas há dificuldades e dificuldades… Ora vejamos: se tiver muita confiança com os vizinhos do lado posso tocar-lhes à campainha e ver se têm dois ovos para me dispensar. Se não for esse o caso, sempre posso descer à rua e comprar ovos. Se estes passos forem possíveis, então a coisa fica resolvida por aqui, a dificuldade desaparece e deixa de ser um problema.

Mas, e se nada disto resultar? Se os meus vizinhos do lado não me falarem, ou se na casa ao lado não morar ninguém? E se à hora em que eu estiver entretido a fazer o bolo o comércio estiver fechado? Ou se nas lojas os ovos se tiverem esgotado? Como é? A simples dificuldade torne-se num problema maior, não é? O que fazer então?

Primeiro tenho que analisar a situação com o máximo de cuidado. Devo ler a receita para ver se os ovos são mesmo indispensáveis. A resposta é quase óbvia, pois nestas coisas da doçaria, não é preciso ser-se um entendido para se saber que se a receita não for seguida, as coisas têm uma grande probabilidade de correr mal… No caso de não poder dispensar os ovos, posso procurar outras receitas de bolos que dispensem os ovos ou permitam uma utilização de uma menor quantidade de ovos. Se isto funcionar, o problema foi solucionado. Pois sim, mas o mais certo é as novas receitas exigirem outros ingredientes, alguns deles exóticos e mais difíceis de encontrar do que 2 ovos…

O que fazer? Poderia desistir do bolo. Não resolvia o problema, mas deixava de estar metido numa alhada. Mas e se eu me tivesse comprometido a fazer o bolo? Teria que procurar uma solução. E como? Talvez inovando!

Ora se tiver todos os outros ingredientes em quantidades generosas, posso tentar remediar a situação, posso ver se posso substituir parte dos ovos por natas, por exemplo. E, para não arriscar demasiado posso pôr à prova a minha conjectura utilizando três ovos, deixando os outros para procurar outra solução, caso esta não surta o efeito desejado.

Delineado o plano de ação, resta pô-lo em prática. Se daqui resultar um bolo aceitável, então encontrei uma solução aceitável para o problema, ou seja, o que era uma dificuldade em alcançar um objetivo, não só foi ultrapassado com sucesso, como alargou a minha capacidade de resposta em situações análogas, agora posso escrever esta variante junto à receita antiga. Pode até ser que os meus convidados gostem tanto do resultado que me peçam a receita e esta passe de mão em mão como um bolo inventado por mim (como diz o adágio, a necessidade é a mãe da invenção). Mas é claro que a coisa pode não resultar, mas, como guardei 3 ovos por precaução, sempre posso procurar outra solução, quanto mais não seja procurando a receita de um doce que possa substituir o bolo.

Escusado será dizer que poderia ainda retirar vários ensinamentos deste episódio, como o de planear melhor as minhas compras, ou o de não me comprometer com acções para as quais eu não esteja bem capacitado. E este tipo de conclusão não deixa de ter suma importância, pois do simples ato de fazer bolos pude retirar ensinamentos úteis e importantes para a vida.

Ora, como este não é um site de culinária, esta referência à prática da doçaria só pode estar aqui a título ilustrativo. Em primeiro lugar, convém chamar a atenção que este exemplo pertence ao senso comum, ao nível do qual as dificuldades são relativamente fáceis de resolver, havendo um abismo entre este saber e a filosofia e a ciência. Contudo, temos no exemplo dado acima dados suficientes que nos permitirão compreender o que é um problema e como os saberes racionais tentam resolver problemas.

Como já foi dito, um problema é uma dificuldade em alcançar um objetivo. No caso da filosofia e da ciência, em suma dos saberes racionais, o objetivo é conhecer, explicar, interpretar e compreender a realidade. Pelo que os problemas surgem quando nos deparamos com o desconhecido. Mas a filosofia e a ciência resolvem os problemas de forma distinta, mas muitas vezes complementar.

No caso do exemplo dado acima, a filosofia interviria no momento em que o problema surge, colocando as possíveis questões que possam emergir da situação problemática, bem como, no fim, no retirar das conseqüências, digamos, existenciais de toda a odisséia. À ciência caberia o trabalho de análise profunda das informações concretas sobre a situação e do mapeamento de possíveis vias de solução, com vista à elaboração de hipóteses de resposta. Com estas hipóteses na mão, haveria que as testar experimentalmente. Em caso de sucesso, ter-se-ia aberto a via a um progresso do saber e a um recuo do desconhecido.

Mas o exemplo do bolo é muito redutor, pois há problemas tão profundos, tão profundos, que não há forma de lhes sondar o fundo. É como estar no mar alto com uma sonda que vá até aos 100 metros de profundidade. Enquanto o fundo se situa aquém desse valor, vamos conseguindo saber com rigor a profundidade, mas quando a profundidade do fundo for maior do que o comprimento da sonda, estamos face ao desconhecido, temos que procurar orientarmo-nos por outras vias e podemos até ficar com a noção de que temos que largar o nosso conhecimento, ou seja, nesse caso temos que abrir os cordões à bolsa e comprar uma sonda com mais alcance. Mas tudo seria simples se assim fosse, mas muitos dos problemas de que se ocupa a filosofia são insondáveis em toda a sua profundidade, ou seja, não há sonda que lhes apalpe o fundo. Só nos resta mergulhar nesses problemas tentando ir cada vez mais fundo. Mas, como é bom de ver, este procedimento tem riscos e não podemos levá-lo a cabo sem instrumentos que nos permitam agüentar a ausência de oxigênio e o aumento da pressão!

Pois é, em ciência utilizam-se instrumentos de observação e de medição que permitem chegar aonde nunca poderíamos ir só com os nossos sentidos, com a “vista desarmada”, como costuma dizer-se. Mas, e no caso da filosofia? Ela também utiliza instrumentos na sua busca da verdade?

É claro que sim! Em primeiro lugar, tal como o mergulhador tem que munir-se de equipamento que lhe permita ir ao fundo sem sofrer conseqüências irremediáveis, para a sua saúde, bem como deve estudar com profundidade o local que escolheu para o seu mergulho, assim também filósofo tem que se munir do equipamento que as ciências lhe fornecem, tem que estar a par do conhecimento científico do seu tempo, para evitar, pelo menos não cair no erro de pensar que o problema que o preocupa não tem respostas que permitam chegar o mais fundo possível.

É que a investigação científica está limitada pelo método científico, ao ponto de podermos dizer que um problema só é científico se puder ter uma solução alcançada através do método científico. Assim, os físicos podem investigar o problema acerca da origem do universo, porque podem observar fenômenos que os aproximam do instante inicial em que tudo começou, aplicando aos resultados da investigação a computação matemática que permite reconstituir, com um rigor apreciável, esse puzzle gigantesco. Já o problema de saber se há vida depois da morte, ou se Deus existe, está fora do âmbito da investigação científica, pois o método científico só pode ser aplicado em relação ao que é acessível através da experiência. Mas a filosofia não está limitada desta forma.

É que a reflexão é um dos principais instrumentos que o filósofo utiliza na sua exploração dos problemas. O filósofo interroga-se, procurando através da Razão, aplicada com método e rigor lógico, colocar em primeiro lugar questões que lhe permitam ir o mais fundo possível. E depois ensaia respostas que, mesmo que não possam ser provadas empiricamente, têm que ser logicamente válidas, e que devem caber dentro do horizonte do possível.

É que há uma diferença apreciável entre possível e o real. A ciência tem que se ater ao real, àquilo que é concreto, factual, que pode ser conhecido através da experiência, mesmo que essa experiência esteja muito longe da nossa experiência quotidiana. O real é o que acontece, aconteceu ou está a acontecer. O possível é o que ainda não aconteceu (é possível que o Sol nasça amanhã), o que nunca aconteceu mas que podemos admitir que venha a acontecer (por exemplo, nunca ganhei no totoloto, mas admito que no futuro isso venha a acontecer, mesmo que o grau de probabilidade desse acontecimento seja muito reduzido), o que nunca aconteceu e que consideramos que não acontecerá, mesmo que nada o impeça (Por exemplo, que a Lua se venha a despenhar sobre a Terra, ou que, de repente, tudo o que neste momento existe desapareça pura e simplesmente). Também há possibilidades que podem ser consideradas, mesmo contrariando as leis que, tanto quanto sabemos regem o funcionamento do universo, nesse caso essas possibilidades têm uma natureza meramente lógica, ou seja, podemos pensá-las, mesmo sabendo que, tanto quanto sabemos acerca do funcionamento do universo, elas sejam de todo improváveis. Por exemplo, posso imaginar uma situação em que consiga deslocar-me instantaneamente até um ponto distante daquele em que me encontro, embora isso me pareça fisicamente impossível.

Ora, ao explorar o possível para melhor explorar o real, a filosofia muitas vezes abre vias de investigação que mais tarde são percorridas pela ciência.

É, por exemplo, possível que Deus exista. Mas a sua inexistência também é uma possibilidade. Sendo assim, a filosofia pode explorar uma grande multiplicidade de possibilidades. E quem o faz está a libertar-se das limitações do seu ponto de vista sobre a realidade, está a alargar os horizontes do seu pensamento, ao levar a sua indagação até aos limites do pensável, ou seja, até ao rebordo mais extremo deste mundo que, como se adivinha pelos resultados da especulação filosófica, é apenas um limite provisório, porque é sempre possível ir mais longe.

Fonte: http://www.espanto.info/av/pr.htm

Senso Crítico

1. Idéias básicas sobre o Senso comum:

· Saber Imediato. Nível mais elementar do conhecimento baseado em observações ingênuas da realidade. Está freqüentemente ligado a resolução de problemas práticos do cotidiano.

· Saber Subjetivo. Construído com base em experiências subjetivas .

· Saber heterogêneo. Resulta de sucessivas acumulações de dados provenientes da experiência, sem qualquer seletividade, coerência ou método. Trata-se de uma forma de saber ligado ao processo de socialização dos indivíduos, sendo muito evidente a influência das tradições e idéias feitas transmitidas de geração em geração.

· Saber Não Crítico. Conhecimento comum.

2. Conceito

Senso Crítico é a busca da verdade pelo questionamento do “eu” do “outro” e do “mundo”.

3. Espírito crítico e espírito de crítica

Espírito crítico é a atitude amadurecida do homem que busca com seriedade a verdade, suprema virtude da mente.

O espírito crítico pondera razões, confronta motivos, busca o desvelamento da verdade, que tranqüiliza as exigências da razão, dissipa as trevas da ignorância e promove o progresso da mente.

Espírito de crítica é o espírito de contradição.

O espírito de crítica é o indício de uma desorganização mental, de uma superficialidade irresponsável que conduz ao ceticismo, à inanição; nasce do nada e não conduz a coisa alguma, ou nasce da inquietação pessoal e conduz à inquietação de muitos (1).

4. O papel da filosofia

A tarefa da Filosofia é desenvolver o senso crítico do homem, que implica a superação das concepções ingênuas e superficiais sobre os homens, a sociedade e a natureza; concepções essas forjadas pela “ideologia” social dominante.

O resultado desse processo é a ampliação da consciência reflexiva do homem, voltada para dois setores fundamentais:

- a consciência de si mesmo: crítica de si próprio enquanto pessoa e de seu papel individual e social (autocrítica).

- a consciência do mundo: compreensão do mundo natural e social e de suas possibilidades de mudança .

5. Estigma e preconceito

Nossas concepções ingênuas forjaram “ideologias” e estigmatizaram “povos”.

Não paramos para pensar se as atitudes de alguns indivíduos referem-se ou não à totalidade das pessoas. Exemplo:

- o judeu é ganancioso;

- o negro é indolente;

- os americanos são superficiais.

6. Passagem do espírito crítico para o espírito não crítico

A lei de evolução é inexorável. Neste sentido, podemos passar de uma situação não crítica para uma que seja crítica, da seguinte forma:

- de forma espontânea: quando novas crenças se chocam com as antigas e requerem uma mudança;

- de forma provocada: quando deliberamos por nós mesmos uma mudança em nossos hábitos e atitudes .

7. Pensador crítico

O espírito crítico arranca o pensador das limitações da particularidade, situando-o no plano das intencionalidades globais, originárias e finais do movimento da existência.

Para J. Ladrière, a crítica é um recuo em direção ao momento originário da existência e também um mergulho na obscuridade do futuro, na tentativa de discernir as melhores possibilidades do devir.

A crítica consiste “num discernimento, num esforço de separar o que pode ser reconhecido como válido daquilo que não o é, a fim de reencontrar as orientações autênticas das intencionalidades constitutivas” (2).

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Questões para serem discutidas em grupos na sala de aula:

1) O que é senso crítico?

2) Qual a distinção entre espírito crítico e espírito de crítica?

3) Qual o papel da Filosofia?

4) Como se dá a passagem do espírito não crítico para o crítico?

Temas para o debate:

1) É fácil adquirir o olhar crítico? Em caso contrário, o que dificulta tal aquisição?

2) O pensador crítico e as generalizações da existência. Comente.

Referências

(1) RUIZ, J. A. Metodologia Científica - Guia para Eficiência nos Estudos. São Paulo: Atlas, l979.

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(2) LADRIERE, J. Filosofia e Práxis Científica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, l978

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