terça-feira, 16 de junho de 2009

A marca de cada um

Um artigo muito interessante da Revista Vida Simples - Outubro de 2008.

A marca de cada um - Por Eugenio Mussak

Do leitor Ricardo Mainieri: "Como se manter fiel às suas idéias, e preferências num mundo cada vez mais esteriotipado?" Por Eugenio Mussak

Estereotipia é uma técnica usada em gráficas para produzir cópias que são, então, chamadas de estereótipos. A palavra grega stereos passa a idéia de alguma coisa dura que é capaz de deixar sua marca em uma superfície mole, como o tipo da gráfica sobre o papel. Essa técnica permitiu que se fizessem muitas cópias, não só de textos mas também de obras de arte. Hoje, qualquer pessoa pode ter em casa uma cópia da Monalisa ou de Guernica, por exemplo. O curioso é que, mesmo tendo visto muitas dessas cópias, quando você depara com o original, a emoção é outra.

Por que isso ocorre? Ora, porque a cópia não tem a personalidade que desejamos para nos emocionar. O autor não tocou nela, não deixou ali impressa sua alma junto com a tinta. Cópias são estéreis, não têm DNA, são produto, não são causa, são decoração, não arte. Pegando carona nesse conceito, as pessoas que parecem carregar uma característica forte que foi apenas recebida de outros, sem contestação, começaram a ser chamadas de cópias, clichês, filhotes, e o conjunto de características recebeu o nome de estereótipos.

Assim ficou fácil qualificar as pessoas e seus grupos, afinal, são marcas duras sobre suas personalidades moles. Simples assim, esse conceito. Ou seria “pré-conceito”? Afinal, todos sabem que as louras são burras, os gaúchos são machistas, os baianos são preguiçosos, os judeus são sovinas, as mulheres são ciumentas, os homens são infiéis e os políticos são corruptos. Nada disso é uma verdade absoluta, mas vá convencer as pessoas de que os estereótipos só existem para dificultar a comunicação e azedar as relações. Os estereótipos são assim, marcam as pessoas com um ferro em brasa imaginário e delimitam seu território.

Sou meu reflexo no espelho?

Repare que, sem querer, estamos esbarrando com situações defi nidas por estereótipos o tempo todo. Meu amigo Claudio, por exemplo, um argentino gente finíssima, me explicou que só demonstra alguma arrogância quando vem ao Brasil, porque as pessoas simplesmente esperam que ele seja assim. Também tem o Mário, meu amigo de Lisboa, engenheiro, professor, empresário, entendido em vinhos e arte ibérica, uma das pessoas mais inteligentes e antenadas que eu conheço. Impossível aplicar uma das famosas “piadas de português” a esse gentleman lisboeta. Seguindo na mesma linha, poderia citar muitas outras pessoas com profissões, nacionalidades, características físicas, idades e religiões que não apresentam nenhum dos traços preconcebidos pelo estereótipo que os acompanha simplesmente por ser quem são.

Afinal, de onde surgem os estereótipos? Eles são, necessariamente, ruins? Como fazer para evitar que os estereótipos se transformem em caricaturas que enquadram as pessoas e as condenam a viver um papel que não escolheram e que nem sequer aprovam? Como alguém pode manter a identidade e ser fiel aos seus valores em uma sociedade que rotula as pessoas? Perguntas que incomodam, principalmente porque não têm respostas convincentes.

O médico francês Jacques Lacan, que passou da neurologia para a psiquiatria e desta para a psicanálise, disse coisas que podem nos ajudar a entender um pouco o mistério dos estereótipos. Por exemplo: “Eu sou o que vejo refletido sobre mim nos olhos dos outros”. Ou ainda: “Com freqüência, os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam”. Pois é, parece que nós, huamanos, fazemos a representação da realidade através da identidade com o grupo a que pertencemos. Realmente, não há como negar que o ser humano é um animal gregário, que depende do grupo para sobreviver física e emocionalmente. Quanto a isso, não resta dúvida. Como também não se pode discutir que os traços culturais servem para criar elementos de distinção grupal e que eles conferem uma sensação de conforto e segurança.

Então está explicado por que criamos grupos e classificamos as pessoas, mas – e sempre tem um mas – daí a aceitar que as pessoas sejam carimbadas e recebam atributos artificiais, e se conformem com a situação, há uma imensa distância. Por isso eu gostei muito daquela propaganda na TV que propõe às pessoas uma reflexão, perguntando: “Será que não está na hora de você rever seus conceitos?” E faz isso depois de mostrar algumas cenas em que pessoas reagem mal a determinadas situações, como uma mulher branca casada com um negro, um homem mais velho com uma mulher mais nova, ou o contrário. Em um dos episódios, em um hall de entrada de um edifício de luxo, uma madame recomenda a outra mulher, vestida de maneira simples, que suba pelo elevador de serviço, para depois descobrir que se trata da nova moradora que acabara de comprar o apartamento de cobertura. Realmente, está na hora de rever os conceitos, porque, quando eles são formatados por antecipação, são, na verdade, preconceitos.

Cópias são chatas

Voltando a falar de arte, vamos concordar, as cópias são chatas e têm menos valor. Eu, que gosto muito de arte, vivo às voltas com essa realidade. Em minha primeira viagem a São Paulo, ainda adolescente, visitei o Masp e me apaixonei pela obra de Modigliani. Aqueles pescoços longos exerceram sobre mim um fascínio sensorial e sensual. Em minha ilusão quase infantil, prometi que ainda teria uma obra do pintor italiano de vida breve e desregrada. E cumpri minha promessa. Anos depois, comprei uma gravura dele na loja do museu Thyssen-Bornemisza, em Madri. E hoje, onde está a gravura? Confesso que não tenho a menor idéia. Quando voltei com ela para casa, meu entusiasmo em emoldurar e pendurar a cópia rapidamente arrefeceu, pois ela era apenas isso, uma cópia, uma reprodução barata, ainda que muito bem feita.

Respeito as cópias, mas prefiro os originais. Com relação às pessoas, também tenho esse sentimento. Prefiro as originais. Dispenso as cópias, os clichês, os estereótipos. Adoro personalidade, força de opinião, caráter. E digo isso não porque é politicamente correto apoiar a força da personalidade – isso seria um estereótipo –, mas porque pessoas singulares sempre são mais interessantes, atrativas; provocam polêmica, discussão, pensamento. Os estereotipados são chatos, comportam-se como gado obediente, parece que não têm opinião.

Estou sendo cruel?

Possivelmente, mas, acredite, essa crueldade também recai sobre mim, pois com freqüência sinto que eu também obedeço a alguns estereótipos, traços culturais fortes que, quando confrontados, acabam por provocar algum desconforto. Por exemplo, não sou fanático por futebol, mas às vezes me vejo discutindo lances e estratégias em um grupo de torcedores. Por quê? Ora, simplesmente para ter assunto, para rir um pouco, para exercitar minha memória (foi o Carlos Alberto que fez o último gol na Copa de 70, na vitória de 4 x 1 sobre a Itália) e minha capacidade argumentativa (na seleção do Telê faltaram pontas e na do Parreira faltou espírito de equipe) e, sei lá, para me sentir participante. Por tudo isso, mas não pelo estereótipo de que homens têm que gostar de futebol e que as mulheres nunca vão entender isso. Sem chance de ser visto no Maracanã com a camisa de um time, de calça arregaçada até o joelho e radinho de pilha no ouvido.

No ótimo filme Encontrando Forrester há uma discussão velada sobre os estereótipos sociais e o esforço que as pessoas fazem para ser aceitas pelo grupo. Trata da relação entre dois indivíduos antagônicos, um estudante secundarista, negro e pobre, e um excêntrico gênio da literatura. No decorrer da trama, o jovem talento emergente Jamal Wallace é ajudado pelo escritor William Forrester a encontrar seu caminho na literatura, ao mesmo tempo que ajuda o escritor a se libertar de sua condição de ermitão esquisito.

Mas há a trama paralela, que descreve a relação do jovem do Bronx com sua comunidade. Ele é um prodígio, mas esconde sua condição para não ser rejeitado. Seu desempenho escolar é acima da média, mas ele erra propositalmente algumas questões das provas, para não ser considerado “diferente”, e trata de se impor pelo esporte, o que lhe dá mais status em um ambiente em que vale a força física.

Ele nega sua condição e aceita o estereótipo do grupo para poder sobreviver. Mas, claro, no fim prevalece sua essência, com ajuda de seu mentor intelectual, que o salva de si mesmo e lhe abre a perspectiva de uma vida mais rica de realizações. O discurso do escritor na reunião da escola vale o filme. O problema das classes sociais, os estereótipos culturais e raciais estão presentes com muita força, ainda que o roteiro dirija a trama para outro foco. Uma história fascinante, que mistura literatura, preconceito, relações humanas e o encontro de pessoas com seus destinos.

Falando em destino, Fernando Pessoa, que interpretou a alma humana como poucos poetas, recomenda: “Para ser grande, sê inteiro/ Nada teu exagera ou exclui/ Sê tudo em cada coisa/ Põe quanto és/ No mínimo que fazes”. Parece até que ele está nos lembrando que o que interessa mesmo é o que real mente somos, e não o que os outros querem que sejamos, colocando, em nosso corpo, marcas que às vezes grudam em nossa alma.

Estereotipados são chatos, comportam-se como gado obediente, não têm opinião.

Fonte: Revista Vida Simples - Edição Nov 2008

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