domingo, 10 de janeiro de 2010

O quiproquó do Plano de Direitos Humanos, by Paulo Ghiraldelli



O Plano Nacional de Direitos Humanos  (na íntegra em PDF) que agora está na berlinda não é bom porque foi iniciado por Fernando Henrique Cardoso e ruim porque foi alavancado por Lula. O Plano não é ruim porque a direita política e outros setores da mídia se insurgiram contra as cláusulas que interferem flagrantemente na liberdade de imprensa, nem porque a esquerda governista fustiga com ele o agronegócio. O quiprocó provocado pelo Plano tem outra história, evidente para qualquer um que teve a paciência de ler o documento antes de se alinhar aos grupos de pressão social já postos. Seu problema está na sua abrangência e mal acabamento.

Filosofia é filosofia, política é política. Quando filósofos ou outros teóricos sobem para postos de comando na máquina de governo e não distinguem a política da filosofia de uma maneira inteligente, tudo fica difícil. Quem criticou FHC por ele ter dito “esqueçam o que escrevi” agiu ou de modo muito tolo ou de modo mal intencionado. Pois FHC queria dizer algo mais ou menos assim: não vou governar praticamente, no cotidiano, com o que escrevi, pois caso eu pudesse fazer isso não estaríamos em uma democracia e, talvez, nem mesmo seríamos humanos. A redação final do Decreto não levou em consideração essa verdade de FHC. O documento saiu, ao final, enorme e como uma colcha de retalhos em que todo tipo de idéia que circulou nas esquerdas – das mais autoritárias até as mais generosas – nos últimos quarenta anos recebeu ali o seu feudo. É uma peça teórica. Serviria para um jovem aluno de pós graduação em ciências humanas, a partir dali, ter uma noção do conteúdo de um espectro político e doutrinário largo – do centro às esquerdas – posto no Brasil das últimas quatro ou cinco décadas. Não tem nenhuma utilidade governamental.

O plano é teórico em um sentido comum do termo. Há no plano todas as idéias que alguém pode imaginar a respeito de “produzir a República dos sonhos” de centenas de estudantes de primeiro e segundos anos de sociologia ou de filosofia. O resultado disso é que, agora, estamos todos envolvidos em uma discussão não mais adulta, e sim uma discussão entre pais e adolescentes.

Tudo se passa, agora, da seguinte forma. Um pai que quer ver os filhos “vencerem na vida”, mais ou menos independente de ideologias, e discute na mesa com seus muitos filhos jovens, entre, cada um de uma tendência política, questões do cotidiano. Um filho quer a “reforma agrária já” e o outro quer um “estado ateu” diante de um terceiro que quer o “estado agnóstico”. Há um filho que se diz “Anarco-Emo” e que não quer estado nenhum, mas quer antes do poder de estado para dissolver o estado. Há o filho que quer “parar a morte no campo” por decreto e há aquele que lembra dos crimes da Ditadura Militar, que ele não viu e que denomina por meio do jargão horrível “anos de chumbo”. Um filho está preocupado com a TV e o quanto ela pode fazer mal para os jovens (este é, na verdade, o (a) pré-adolescente, que ainda não descobriu que vão censurar os filmes de sexo que ele adora). Há ainda o que acredita que tudo se resume em resolver o problema das concessões de rádio e TV (o que mobiliza o Congresso hoje em dia, pois é o que Parlamento mais faz). Dois filhos desejam punir a Igreja Católica e outros dois querem “pegar o Bispo Macedo de pau”. Há um filho religioso, mas ele já tomou um “pedala Robinho” dos mais velhos e não falou nada, no máximo conseguiu dizer que “as religiões afro também deveriam ser respeitadas”. Há aquela filha que lembrou que “o maior sufoco” na sociedade é sofrido pela mulher. Ela também é a porta voz, na mesa do jantar, das reivindicações de dois irmãos, um gay e a outra lésbica, que não abriram a boca para nada durante a confusão – pois não são bobos de deixarem o pai perceber quem são. Um filho mais velho afirma que não poderia haver “revanchismo” (os mais novos não tem a menor idéia de onde ele tirou essa palavra). Os menores perguntam para o pai se é possível que o governo dê “bolsa vídeo-game”. Uma das filhas, tida com a alienada pelos irmãos, disse que se é para censurar, então que se censure o Orkut o twitter de um bando de amigas que colocam fotos semi-nuas lá ou aparecem de noite peladinhas para os namorados. Quando ela diz isso o irmão mais próximo de idade dela dá um grito: “Pai, a Ana levantou a blusa ontem na webcam para um monte de garotos”. A conversa só fica amena quando a mãe, que não diz nada, apenas “comam meninos que vai esfriar”, põe a macarronada na mesa.

Tudo isso aí acima, com esse grau de urgência e, de certa forma, ingenuidade, é o Decreto de FHC-Lula que, enfim, saiu publicado pelo governo petista.

O que pode fazer o pai, na mesa do almoço, faltando só alguns minutos para voltar ao trabalho num escritório infernal, com um patrão que é o próprio demônio, com seus filhos, todos felizmente na USP, PUC e Mackenzie? Ele levanta da mesa e diz: “filhos, no jantar tem mais bate papo”. Ele vai ao trabalho e torce para que os meninos comecem a lapidar as idéias, ampliar sonhos práticos e direcionar os teóricos. No fundo ele torce para que os meninos sejam felizes, apenas isso. Felicidade, para ele, é simples, é o “mundinho burguês”, como diriam seus filhos. Ele quer ver cada um casado, com sua casa própria e um bom emprego. Duvido que o governo Lula tenha outra intenção que esta, do pai. O próprio Lula é um pouco isso. Ela vai esperar a segunda rodada, a da janta.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo.

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