terça-feira, 5 de maio de 2009

A distinção entre argumentação e demonstração

“O que é que distingue a argumentação de uma demonstração formalmente correta?

Antes de tudo, o fato de, numa demonstração, os signos utilizados serem, em princípio, desprovidos de qualquer ambiguidade, contrariamente à argumentação, que se desenrola numa língua natural, cuja ambiguidade não se encontra previamente excluída. Depois, porque a demonstração correta é uma demonstração conforme a regras explicitadas em sistemas formalizados. Mas também, e insistimos neste ponto, porque o estatuto dos axiomas, dos princípios de que se parte, é diferente na demonstração e na argumentação.

Numa demonstração matemática, os axiomas não estão em discussão; sejam eles considerados como evidentes, como verdadeiros ou como simples hipóteses, não há qualquer preocupação em saber se eles são, ou não, aceites pelo auditório.

Como o fim de uma argumentação não é deduzir consequências de certas premissas, mas provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento, ela não se desenvolve nunca no vazio. Pressupõe, com efeito, um contato de espíritos entre o orador e o seu auditório: é preciso que um discurso seja escutado, que um livro seja lido, pois, sem isso, a sua acção seria nula.”

Perelman

Tanto a demonstração como a argumentação são manifestações da racionalidade. Mas tratam-se de usos diferentes da razão: no caso da demonstração, a razão é usada para estabelecer verdades universais que se apresentam como conclusões de raciocínios formalmente válidos e assentes axiomas (princípios) universais e cientificamente verdadeiros. Na demonstração não há auditório, ou seja, quem demonstra fá-lo seguindo procedimentos racionais e objetivos, sendo indiferente, do ponto de vista demonstrativo, saber quem irá tomar conhecimento da demonstração.

No caso da argumentação, os seus axiomas são estabelecidos caso a caso, consoante o auditório. De facto, a argumentação versa sobre o que é verosímil, provável ou desejável. Nela não está presente o pressuposto de que tem que haver uma verdade universal, estabelecida de forma objectiva e independentemente do contexto sócio-cultural em que se desenrola a argumentação. Os axiomas da argumentação resultam de um acordo, tácito ou estabelecido de forma consciente, entre o orador e o auditório. Assim, o que é verosímil num contexto, pode não o ser noutro, o mesmo se passa com o provável e o desejável. Por exemplo, numa sociedade dominada por crenças de carácter mítico-religioso, pode ser verosímil que um homem de fé consiga caminhar sobre as águas, para um determinado grupo social pode ser desejável a subida das taxas de juro, enquanto que para outros isso pode ser visto como uma calamidade. Para certos auditórios pode ser provável a visita de extraterrestres, enquanto que para outros isso pode ser encarado como uma crença sem sentido. E o orador tem que estar atento a essas diferenças.

Isto porque na argumentação o que importa são os efeitos do discurso (seja qual for a sua forma) sobre o auditório, pois o objetivo central do ato de argumentar, é provocar um efeito em determinado auditório, conseguir a sua adesão e, em muitos casos, levá-lo a tomar esta ou aquela atitude face a determinados objectos culturais ou sociais (e não só), conduzi-lo a efectuar um determinado comportamento, como no caso de um discurso eleitoral, o seu objectivo e levar os membros do auditório a votarem num partido ou num candidato. Se os membros do auditório votarem noutro partido ou não votarem, os objetivos da argumentação não foram alcançados.

A argumentação é uma forma de ação, de ação comunicativa. A demonstração não é uma ação, em sentido próprio, nem procura mover à ação, ela é neutra do ponto de vista comunicativo, pois a verdade lógica e científica não tem a ver com a subjectividade, nem se move dentro dum universo axiológico (valorativo). A argumentação lida com valores, os valores são o seu elemento de eleição. Estamos perante algo com que já nos confrontámos quando demos a distinção entre juízos de fato e juízos de valor: os juízos de fato pertencem por direito ao campo científico, o mesmo da demonstração, enquanto os juízos de valor encontram na vida prática o seu elemento de manifestação e estão ligados à ação, em todos os seus níveis e em todas as suas áreas.

Outra característica fundamental da demonstração, é que ela usa linguagens formalizadas, não contaminadas pela polissemia da linguagem natural. Cada símbolo, cada termo, cada enunciado, têm apenas um significado e uma interpretação possível. Por isso a definição dos conceitos é um procedimento fundamental em ciência, pois qualquer ambiguidade mata o rigor e a objectividade.

No caso da argumentação, já não é assim, pois nela a razão apoia-se na linguagem natural, nas línguas tal como são faladas no contexto cultural a que pertence o auditório. E isso permite uma explosão em termos de expressão e de comunicação, pois um orador pode jogar com a ambiguidade, pode explorar as palavras para infundir o riso, ou para usar a ironia. Há um mundo de possibilidades que é praticamente inesgotável.

Não é possível demonstrar que determinado candidato à Presidência da República será mau Presidente, se eleito. Mas é possível persuadir um auditório dessa probabilidade e de levá-lo a aceitar como verosímil essa tese, conduzindo-o a concluir que a eleição desse candidato não é desejável.

Ora, na demonstração utilizam-se argumentos lógico-matemáticos, com um rigor lógico inquestionável (nós demos o silogismo como um exemplo, ainda que bastante rudimentar, de demonstração lógica). Mas na argumentação também se usam argumentos (como não poderia deixar de ser, pois, caso contrário, o termo “argumentação” estaria desajustado), mas estes argumentos são mais abertos nas suas possibilidades de exploração.

A argumentação (legítima) deve ser coerente, ou seja, não pode violar os princípios lógicos da razão, nem usar argumentos falaciosos. E os argumentos que podem ser utilizados como instrumentos retórico-argumentativos, são de três tipos:

1. Argumentos quase-lógicos. Estão ligados ao domínio do pensável, do que pode ser pensado e do que deve ser pensado. Quando um orador afirma que uma tese oposta à sua (ou um argumento) não tem sentido, não tem sustentabilidade lógica, está a usar um argumento quase-lógico. O mesmo se passa se utilizar enunciados lógicos para sustentar uma tese, apelando à sua razoabilidade interna (à sua racionalidade, à sua aceitabilidade racional).

2. Argumentos sobre a estrutura do real. Trata-se de argumentos que têm uma radicação ontológica: referem-se ao que existe, ao que é real e ao que não é admissível como fazendo parte da realidade. E há que partir do princípio que o real é o que é admitido pelo auditório como existente. Assim, há auditórios que consideram reais entidades que são irreais para outros auditórios: para um auditório de pessoas crentes o demónio pode ser real, enquanto que para um auditório de advogados, isso já não é verdade. Por isso o orador deve referir-se à realidade tal como esta é vista pelo auditório.

3. Argumentos que fundam a estrutura do real. São argumentos que se referem ao que torna possível a realidade, têm, para usarmos uma terminologia filosófica, uma dimensão metafísica (é de notar que a ontologia e a metafísica podem ser considerados termos sinônimos). Para um cristão, o mundo pode ter a estrutura que tem porque Deus o criou assim, da mesma forma o mal existe por causa do pecado de Adão. Mas para outro auditório estas explicações não terão sentido.

Fonte: http://www.espanto.info/av/ad.htm

Imagem: http://www.animaforum.com.br/imagens/101-bg.jpg

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